Os filhos de Camilla, Michelle e Angélica, com idades entre 1 e 15 anos, enfrentam dificuldades alimentares significativas. Alguns chegam a passar mal devido à aversão à textura da comida ou são internados por falta de nutrientes. Além das adversidades alimentares, essas mães ainda lidam com conselhos inadequados: “deixa passar fome que uma hora ele come”. Dados por pessoas que não compreendem a realidade de um autista com seletividade alimentar, caso dessas crianças.
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“Às vezes as pessoas nos criticam, mas só quem convive com um autista sabe o que é lidar com a seletividade alimentar todos os dias, porque ela não dá trégua. É muito difícil, mas a gente não pode desistir”, desabafa a pastora Angélica Freitas, do Rio de Janeiro.
No Brasil, estima-se que existam 2 milhões de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), segundo o IBGE. Pesquisas apontam que 89% das crianças com esse diagnóstico têm seletividade alimentar e outras dificuldades com a comida, persistindo até a vida adulta. Logo, não se trata simplesmente de obrigar a criança a comer: ela não consegue.
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Veja o que já enviamosA nutricionista Fernanda Lins, especializada em nutrição materno-infantil no Instituto do Autismo (IDA), explica que a seletividade alimentar pode ser causada por sensibilidade sensorial, levando à aversão a sabores, cheiros, texturas, formas e/ou temperaturas específicas.
Outras causas incluem fobias, traumas relacionados a alimentos e questões ritualísticas, onde a pessoa sente a necessidade de comer certos alimentos com utensílios específicos e em horários e locais determinados. Além da seletividade, o transtorno alimentar pode também levar à compulsão.
“É frustrante inventar refeições várias vezes ao dia”
Os dois filhos da técnica de enfermagem Camilla Alves têm TEA. Enquanto Pietro, 15, come bem, Eloísa, de 2, desenvolveu seletividade alimentar severa há alguns meses. A menina tem dificuldade com texturas como a de uma coxinha, que é arenosa, e alimentos mais frios. Aceita apenas líquidos como leite, iogurte e suco, e três tipos de frutas: uva, morango e maçã. Chega a vomitar com cheiros fortes como o do mamão. Por falta de nutrientes, desenvolveu anemia e hipoglicemia, sendo internada várias vezes por não suprir suas necessidades alimentares.
“Não é fácil lidar com a seletividade. É frustrante inventar refeições várias vezes ao dia para ela, que na maioria das vezes recusa, porque não é só não querer comer, é não conseguir”, desabafa a mãe.
A professora Michelle Anelhe dos Santos já tentou estratégias como bater legumes no liquidificador ou fazer bolinhos fritos com arroz e feijão, mas hoje os filhos Samuel, 6, e Theo, 2, percebem os sabores e recusam o que é oferecido. Só comem proteína, bebem suco de uva e não aceitam água. Ela tentou técnicas como o BLW, montando comidas no prato em formatos de bichinhos e cores diversas, mas nem sempre dá certo. “Isso afeta muito o meu psicológico. Nossa preocupação constante em levar tudo para eles em todos os lugares”, conta a carioca.
Angélica Freitas entende bem. Seu filho único, Miguel Asafe, de 13, comia “até jiló” quando criança, mas a partir dos dois anos e meio passou a rejeitar alimentos, comendo apenas biscoitos e tomando uma vitamina: “A seletividade alimentar desorganiza a nossa casa. É muito complicado sair para a casa de alguém, ir a algum restaurante ou mesmo em viagens, porque ele não vai comer. Atrapalha bastante, mas precisamos persistir”, frisa a carioca.
Fernanda Lins explica que não há um plano nutricional modelo a ser aplicado às preferências alimentares e restrições individuais dessas pessoas. O que se pode fazer é rastrear possíveis alergias que possam prejudicar o comportamento e a saúde delas, e a partir daí traçar estratégias de terapia alimentar para suprir as necessidades de cada um.
“Processo longo, demorado, difícil e doloroso”
O neto de 7 anos da pedagoga e psicóloga Solange Aroeira ingere apenas leite com suplementos, todos de cor marrom. Perdeu a janela de aprendizagem da mastigação, entrando no transtorno evitativo da alimentação (Tare), onde a criança consome menos de 10 tipos diferentes de alimento, explica a avó. “Para ele, é uma dor mastigar e engolir um alimento”.
Coordenadora de curso de psicologia da Faculdade Lusófona (SP) e especialista no tema, Solange auxilia a sua e outras famílias com terapias, seja para a criança, ajudando na fala, no sensorial e na motricidade, seja dando suporte emocional aos pais: “Não é algo que você cura, mas se adapta. Quando atendo famílias nessas condições, ajudo a entenderem que há um ser ali com limitações, então precisamos pensar nas possibilidades para inserir, aos poucos, uma alimentação saudável. É um processo longo, demorado, difícil e doloroso.”
Leis visam melhorar condições para essas pessoas
O país tem se preocupado com o tema e já existem projetos de lei para melhorar a alimentação desse público. No Rio de Janeiro, foi sancionada recentemente uma lei que estabelece o Programa de Terapia Nutricional para Pessoas com Transtorno de Espectro Autista. Entre os objetivos, está incentivar a articulação entre as redes públicas de atendimento a pessoas com TEA, desenvolvendo estratégias alimentares relacionadas à seletividade alimentar desse transtorno.
Estados como Mato Grosso, Paraná e Goiás têm projetos semelhantes em análise, assim como a Câmara dos Deputados. Um dos objetivos do PL do deputado José Nelto (PP-GO) é desenvolver dietas adequadas para minimizar a seletividade alimentar e os comportamentos compulsivos na alimentação.
Outro projeto em tramitação na Câmara é permitir à pessoa com TEA entrar em qualquer local com alimentos para consumo próprio e objetos de uso pessoal. Uma das escolas onde a filha de Camilla estudou chegou ao absurdo de deixar a criança com fome por não permitir que ela levasse seu próprio alimento: “Não aceitavam que levasse comida de casa, e ela passava muitas horas com fome, chegando a ter crises de hipoglicemia”, relata a mãe.
Michelle e Angélica relatam que as escolas de seus filhos tentam inserir novos alimentos com ajuda de mediadoras. “É importante que as escolas conheçam a seletividade e estudem sobre isso para apoiar as famílias”, destaca Michelle.
Solange opina que qualquer lei sobre o tema deve considerar também os hábitos alimentares dos responsáveis, para que desde cedo os filhos nessas condições observem uma diversidade saudável de alimentos na mesa: “O ideal é apresentar a alimentação e insistir, mas nunca forçar nada”, enfatiza.