(Beatriz Mac Dowell Soares*) – A história da doação de sangue no Brasil é marcada por polêmicas e lutas. Antes de se tornar uma prática voluntária e chegar ao controle de qualidade do sangue doado dos dias de hoje, percorreu-se um longo caminho. Durante a década de 1970, o plasma era vendido no Brasil. Parte líquida do sangue, o plasma é usado para a produção de hemoderivados (medicamentos produzidos pelo fracionamento industrial do plasma humano), que tratam hemofilia, Aids, câncer, doenças renais e imunodeficiências.
Naquela época, doadores pobres e malnutridos doavam o seu plasma por um lanche simbólico. Foi com a Reforma Sanitária – movimento que surgiu também nos anos 70, que defendia a “saúde para todos” e culminou com a criação do SUS – é que se deu início também à luta pela proibição da venda de plasma.
No início da década de 1980, com o surgimento do HIV e sem testes mais apurados para o controle de doenças, os receptores acabavam sendo contaminados. Nesse cenário, foi criada uma política pública para o fortalecimento e a consolidação da rede de hemocentros no país, para assegurar um sangue de qualidade.
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Veja o que já enviamosEram tantas mortes por transfusão de sangue que o assunto ganhou visibilidade na sociedade, e o movimento da Reforma Sanitária conseguiu incluir um artigo na Constituição Federal, proibindo a comercialização do sangue e garantindo a gratuidade do ato.
Agora, com a tramitação no Senado da Proposta de Emenda Constitucional 10/2022, também conhecida como PEC do Plasma, o cenário pode mudar, sob o risco de se voltar aos tempos da comercialização de sangue pelos mais vulneráveis (a PEC foi aprovada na quarta-feira, 4/10, na Comissão de Constituição e Justiça).
O rigor na qualidade do sangue
Não foi uma luta fácil para se chegar até a proibição da venda de sangue: 13 anos após a promulgação da Consituição Federal, foi aprovada a Lei nº 10.205, de 21 de março de 2001, que regulamentou o parágrafo 4º do art. 199, relativo à coleta, ao processamento, à estocagem, à distribuição e à aplicação do sangue, de seus componentes e derivados.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2001, definiu o tema: “O sangue seguro começa comigo”, para representar o “Dia Mundial da Saúde”, instituindo que um doador precisaria se adequar a requisitos técnicos.
Os testes de triagem de sangue para identificar anticorpos contra os vírus das hepatites, da Aids e de outras doenças e novas tecnologias de testes, inclusive os de ácido nucleico (NAT), para identificar partículas dos vírus, alçaram a qualidade do sangue a outro patamar. Ainda assim, existe a janela imunológica (período em que não se identificam os anticorpos ou as partículas de vírus), o que pode deixar passar sangue contaminado. Por isso, sempre é necessário muito rigor na entrevista do doador e nos exames de sangue realizados.
Hemobrás: única autorizada a processar o plasma
O crescimento e o fortalecimento da política pública para a coleta e a doação de sangue despertou o interesse do país em cessar o descarte do plasma excedente do uso terapêutico para fracioná-lo para obtenção dos hemoderivados. Houve várias iniciativas estaduais, mas, em 2004, com a criação da Hemobrás, vinculada ao Ministério da Saúde, todo o controle do excedente do plasma passou a ser responsabilidade da empresa, a única autorizada a processar o componente para transformá-lo em medicamentos.
É preciso colocá-la em funcionamento pleno para que todo plasma de qualidade excedente da coleta de sangue total possa ser processado. Este será o momento de se ter uma regulamentação específica para a doação do plasma com fins industriais, que não necessariamente precisará ser remunerada.
Em outras palavras, ainda se descarta sangue dos doadores. A situação não é mais grave porque as células do sangue vermelhas (hemácias) e outras são aproveitadas quase integralmente e sazonalmente ficam em baixa nos hemocentros do país, mas não se morre mais como se morria por falta de sangue.
O que é o plasma? E a separação do plasma?
O sangue é constituído de células (hemácias e leucócitos), partículas celulares, como as plaquetas, e, do plasma, parte líquida do sangue. Este representa mais de 50% do volume do sangue e é composto por água (mais de 90% de sua composição), sais minerais e diversas proteínas. Tem como principal função transportar o seu conteúdo para todo o organismo. As proteínas do plasma, com funções distintas, são essenciais para o bom funcionamento de vários processos fisiológicos. O déficit ou a ausência delas podem levar ao aparecimento de sintomas específicos para cada uma das deficiências, com denominações diversas.
Após a coleta do sangue para fins transfusionais, há uma etapa muito importante, chamada de “processamento do sangue” (processo físico), que separa os concentrados de hemácias, leucócitos e plaquetas do plasma. Todas as partes do sangue passam a ser chamadas de hemocomponentes. Já as proteínas são extraídas por processo de “fracionamento do plasma”, que é um processo físico-químico, para obtenção de imunoglobulinas, albumina e fatores de coagulação. São os chamados de hemoderivados.
Mesmo que todo o plasma nacional excedente hoje seja processado, as imunoglobulinas (Ig) e as proteínas (anticorpos) que estão no plasma serão insuficientes para atender a todos os pacientes com imunodeficiência hereditária ou adquirida.
No caso das pessoas com imunodeficiência hereditária, a dependência às Igs é vitalícia, assim como a dependência das pessoas com hemofilia e outras deficiências à reposição de hemoderivados. No caso dos pacientes com imunodeficiência hereditária, a situação é mais grave, porque ainda não se tem previsão de imunoglobulinas recombinantes.
Problemas de importação de medicamentos existem, tanto no Ministério da Saúde (MS) quanto nas Secretarias Estaduais de Saúde (SES), mas por que há anos não têm faltado no Brasil produtos importados para pessoas com hemofilia, Aids, hepatites e outras doenças? Porque há políticas nacionais exitosas e reconhecidas internacionalmente, que integram a estrutura do Ministério da Saúde, delegadas às áreas técnicas do ministério.
Como a Coordenação Nacional de Sangue e de Hemoderivados (CNSH/SAS/MS), que planeja a aquisição dos produtos para as pessoas com hemofilia, com no mínimo um ano de antecedência, assim como as de Aids, hepatites, imunização e outros. As coordenações gerenciam a distribuição dos produtos/medicamentos para os estados, os municípios e até os serviços de saúde específicos para certas doenças.
A solução para toda essa questão não é a criação de uma PEC do Plasma. A solução é um planejamento de curto, médio e longo prazos. Não se constrói uma fábrica para fracionamento de plasma da noite para o dia. Ao acrescentar no artigo 199 da Constituição o parágrafo 5º, ficará permitida a coleta de plasma pelas iniciativas pública e privada. Aí estará embutida a “compra do plasma”.
Depois de uma luta histórica que acabou com o horror na hemoterapia no país, depois das milhares de mortes por espoliação, hepatites e Aids que ocorreram, a aprovação da PEC do Plasma será um grande retrocesso, e um revés histórico no esforço de uma geração de pesquisadores e legisladores.
*Beatriz Mac Dowell Soares é médica, formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), doutora em Ciências da Saúde pela UnB e ex-gerente geral de Sangue e Hemoderivados da Anvisa