Enfrentando e vencendo os desafios de diferentes ciclos políticos no Rio, desde 2006, tendo até mesmo corrido risco de descontinuidade, como chegou a ser denunciado por organizações ambientalistas em 2021, além de inúmeros dilemas urbanos característicos de uma cidade marcada por tantas desigualdades sociais, o Programa Hortas Cariocas resiste. Essa iniciativa da Prefeitura do Rio atualmente envolve 56 unidades comunitárias e escolares, inseridas em todas as regiões, embora a maior parte se concentre nas zonas norte e oeste.
Leu essa? Ailton Krenak: ‘Agroecologia devia acontecer agora em uma escala planetária’
Como exemplo de desafio e também de potencialidade desse esforço de ampliar ações de agroecologia urbana no Rio, se destaca a comunidade de Manguinhos, na zona norte, onde está plantada a maior horta comunitária urbana da América Latina, projeto que já foi reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2020, como parte das ações globais essenciais ao alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Embora seja considerada um modelo de solução para o enfrentamento da insegurança alimentar e vitrine de engajamento social para a produção orgânica, essa horta, criada em 2013, tinha sido interditada entre novembro de 2022 e julho de 2023, por problemas de segurança enfrentados nesse território de dilemas históricos relacionados à violência. “Com muita persistência, nos orgulhamos de termos conseguido reativar esse espaço, onde temos feito melhorias”, destaca Vinícius Rocha, engenheiro agrícola ambiental que atua no Programa desde 2022.
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosSegundo Rocha, parte da área tinha passado a ser usada para descarte de lixo e outra sofreu invasões. Foi preciso investir forte na limpeza e recuperação do solo, entre outras iniciativas para a retomada. Atualmente, 50% do espaço já voltou a produzir. “A horta de Manguinhos teve um papel fundamental no avanço desse Programa no Rio e essa reconquista foi muito importante para nós e para a comunidade”, destaca. Na pandemia da Covid-19, esse espaço contribuiu para alimentar cerca de 800 pessoas da comunidade.
O engenheiro agrícola também se orgulha de outro exemplo do Hortas do Rio, que, em 2023, alcançou o consumo diário de 400 gramas de folhosas, legumes e verduras (FLV), por cerca de 500 pessoas inseridas nas áreas atendidas na cidade. Essa é a quantidade ideal mínima para dietas saudáveis indicada pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e a Organização Mundial de Saúde (OMS).
A estatística, segundo ele, tem vinculação com o histórico de engajamento promovido pelas ações do Programa que, no ano passado, produziu cerca de 77,26 toneladas de alimentos. Desde então, passou-se a investir mais amplamente na sistematização dos dados sobre a produção para gerar séries comparativas, o que não vinha acontecendo anteriormente. Encabeçado pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Clima (SMAC), essa iniciativa integra o Programa AlimentaRio, juntamente com o Cozinhas Sustentáveis, que está em processo de implementação e, a partir deste ano, deverá beneficiar os alimentos produzidos nas hortas da cidade.
Reforço na alimentação ajuda a custear bolsas de trabalho
Nas escolas municipais, os temperos, hortaliças frescas e outros alimentos produzidos nas hortas são utilizados para melhorar a qualidade da merenda escolar, podendo também ser doados aos pais e às comunidades. Além disso, os espaços de plantio funcionam como ambientes pedagógicos envolvendo inúmeras disciplinas.
Por outro lado, nas hortas comunitárias, 50% da produção se destina à comercialização e os recursos contribuem para a complementação da bolsa paga aos voluntários envolvidos em atividades como plantio, rega, colheita e manutenção dos canteiros. O Programa tem 279 bolsistas, que recebem de R$ 500 a R$ 1 mil, por mês, dependendo do nível de responsabilidade de cada participante. “Assim enfrentamos vários problemas simultaneamente, desde amenizar a fome na cidade, a gerar inclusão social e fortalecer a autoestima das comunidades”, analisa Rocha. Ele acrescenta que a iniciativa também inclui ações de doações. No ano passado, por exemplo, os alimentos foram doados a pessoas em condição de vulnerabilidade social, mapeadas pela Secretaria Municipal de Saúde.
Para fechar o ciclo orgânico de produção e consumo, os restos de alimentos são levados para compostagem, o que contribui para a superação de outro grande desafio do programa, que é a garantia de adubo orgânico em quantidade suficiente para suprir a demanda das hortas. Para vencer esse dilema, Vinícius conta que foram realizadas rodadas de capacitação nas comunidades e firmadas parcerias com organizações que fornecem composto orgânico sem custo para a SMAC. Nesse rol se incluem a Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb) e a empresa Organosolo.
Como parte do processo de avanço do Programa, o engenheiro informa que estão sendo iniciadas experiências com as chamadas Hortas Ancestrais. Já são quatro (Manguinhos, Madureira, Morro da Formiga e Sepetiba). Esses são espaços de produção de ervas medicinais muito usadas em cultos religiosos, sobretudo, de religiões de matrizes africanas. “Já fizemos ações de capacitação para que as pessoas saibam o significado dessas hortas e valorizem o conhecimento ancestral de uso dessas plantas. Esses espaços devem contribuir para fortalecer o respeito interreligioso e resgatar tradições culturais que são importantes para as comunidades”, conclui Rocha.
Brasilândia, exemplo de agroecologia urbana
Em uma megacidade como São Paulo, as hortas urbanas são apontadas como soluções de baixo custo não somente para a saúde das comunidades periféricas que, passam a consumir mais alimentos orgânicos que ajudam a produzir, mas também como alternativas fundamentais para a redução de ondas de calor, melhoria da qualidade do ar e proteção do solo em tempos de agravamento da crise climática. “Em espaços pequenos, temos hortas agroecológicas que conseguem beneficiar uma rede de vizinhança”, afirma Marcella Arruda, presidente do Instituto A Cidade Precisa de Você.
A essa iniciativa se vincula o Programa Ecocidade que, pela perspectiva da agroecologia urbana, atua junto a três hortas parceiras na comunidade de Brasilândia, zona noroeste da capital paulista. Esses espaços regenerativos ocupam terrenos que antes eram usados como lixões, além de ambientes ociosos no entorno de linhas de transmissão de energia e áreas verdes de equipamentos públicos como unidades de saúde.
Para educar as novas gerações e mobilizá-las a pensar sobre a origem dos alimentos e a importância dos modos de produção assegurados por práticas ancestrais, como os plantios agroecológicos, as hortas parceiras atuam com atividades pedagógicas que permitem aos estudantes observarem todo o ciclo de crescimento das plantas, desde o brotar das sementes até a colheita dos frutos e a produção de adubo a partir de resíduos orgânicos. “Na comunidade de Brasilândia, as mulheres são maioria das pessoas ligadas às hortas. Elas contribuem com um conhecimento ancestral sobre a produção de alimentos orgânicos que vem de memórias afetivas de ligação com a terra de onde vieram. Muitas delas vieram das regiões norte e nordeste do Brasil, onde já tinham plantado e perderam esse vínculo ao chegarem em São Paulo, quando passaram a sobreviver de outras atividades”, observa Marcella.
Inspirado no movimento chamado Revolução dos Baldinhos, de Florianópolis (SC), cidade pioneira no engajamento dos moradores para a compostagem urbana que pretende se tornar referência nacional com o Programa Lixo Zero 2030, a comunidade de Brasilândia passou por atividades de capacitação e foi mobilizada a separar o lixo orgânico, a fim de transformá-lo em adubo para as hortas. Entre setembro de 2022 e dezembro de 2023, foram doadas mais de 300 mudas, implantadas três composteiras e realizadas 15 oficinas que mobilizaram mais de 500 moradores em ações de educação ambiental e alimentar.
A participação no projeto Ecocidade permite aos moradores, sobretudo às mulheres do bairro, se integrarem à organização de eventos onde são servidos lanches e refeições preparadas com alimentos orgânicos. Dessa forma, a iniciativa também impulsiona a geração de renda extra por meio desse movimento em torno de todo o ciclo dos alimentos saudáveis.
Marcella destaca que, antes do projeto Ecocidade e da vinculação com políticas públicas como o Programa Sampa mais Rural, as ações eram muito fragmentadas. Com essa iniciativa, mais de 400 hortas da capital paulista ganharam mais visibilidade e estão sendo apoiadas. Além de outras atividades, essa política também possibilita a prática de ecoturismo rural nessas áreas de produção de alimentos agroecológicos na maior cidade do país.
Em 2022, representantes do projeto participaram do festival de curtas Megacities ShortDocs, em Paris. Lançada na França, há cerca de dez anos, essa programação tem enfoque nas questões de cidadania em megacidades globais. O vídeo do Ecocidade correlaciona temas como empreendedorismo, gestão sustentável do território e inovação comunitária, recebendo uma premiação pelo grupo ETI Empreendedorismo, Território e Inovação da Universidade de Sorbonne, com o tema “Cidade em 15 minutos”.
Marcella também informa que o programa está desenvolvendo um jogo que sistematiza o projeto, promovendo a agricultura urbana e a economia circular, a partir dos bairros da cidade. Essa metodologia pedagógica visa à sensibilização pública sobre o tema e já foi testada por 20 iniciativas da capital que atuam com hortas urbanas e resiliência comunitária.
“Como acreditamos na importância do compartilhamento de experiências, buscando destacar os múltiplos benefícios das hortas da cidade, contemplando a viabilidade econômica, a importância socioambiental e a relação da vizinhança com essas hortas, criamos um jogo que conecta presente, passado e futuro. Assim, articulamos as iniciativas cidadãs e moradores dos bairros para reconhecer os recursos presentes nos seus territórios e organizar planos de ação para a sua transformação socioambiental e construirmos, a partir de redes de bairros sustentáveis, uma Ecocidade”, conclui Marcella.