Vivir sabroso, a novidade sustentável na América Latina

Vitória de Gustavo Petro e Francia Márquez na Colômbia vai muito além de uma simples alternância de poder entre direita e esquerda

Por Agostinho Vieira | ODS 10ODS 17 • Publicada em 23 de junho de 2022 - 07:34 • Atualizada em 29 de outubro de 2022 - 12:12

Gustavo Petro e Francia Márquez celebram a sua vitória no Movistar Center, em Bogotá: vivir sabroso na pauta política (Foto: Robert Bonet/NurPhoto via AFP)

Depois de Pedro Castilho, no Peru, Gabriel Boric, no Chile, Alberto Fernández, na Argentina, Luis Arce, na Bolívia, e López Obrador, no México, a eleição de Gustavo Petro e Francia Márquez, na Colômbia, pode até parecer apenas a continuação de uma grande onda de partidos de esquerda que vem varrendo a América Latina. Parece, mas não é. A vitória da coligação Pacto Histórico é diferente. Ela traz um frescor, um cheiro de inovação e de sustentabilidade que muitas vezes falta aos colegas do resto do continente, inclusive no Brasil. Esse espírito pode ser traduzido na frase, muitas vezes repetida na campanha, pela vice-presidente Francia Márquez Mina: “Vou trabalhar para que todos possam vivir sabroso neste país”.

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Vamos combinar que não é todo dia que a gente ouve um candidato a qualquer coisa prometer lutar para que todos “vivam gostoso”. É mais comum ver e ouvir alguém dizer que uma Arepa Colombiana é sabrosa, ou que um Ajiaco sabroso pode esquentar as noites de Bogotá. A melodia de uma salsa, boa para dançar agarradinho, também pode ser sabrosa. Mas, o que é esse tal de vivir sabroso? Como ele foi subir no palanque? No Pacífico colombiano, nas comunidades rurais, de onde vem a liderança negra Francia Márquez, a expressão serve como crítica ao progresso desenfreado, insustentável, que não respeita os desejos locais de cuidado com a terra, com a comunidade e com o meio ambiente. Aliás, o mesmo meio ambiente que nos discursos de Francia Márquez é chamado criativamente de “casa grande”, sem qualquer relação com a vergonhosa história da escravidão no Brasil. Entre as suas bandeiras está criação do Ministério da Igualdade e o incentivo à luta global em defesa da casa grande (o meio ambiente).

Ou seja, quando a chapa Petro-Márquez fala em vivir sabroso está defendendo um outro modo de vida, distante do desenvolvimento extrativista, que tem marcado a história da Colômbia e de outros países do continente, e da política de terra arrasada. Outro ritmo, outros valores, outra realidade. Lembrando uma frase famosa de Mahatma Gandhi, “A Terra fornece o suficiente para satisfazer a necessidade de todos os homens, mas não a ganância deles”.

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Um discurso absolutamente coerente com o programa de governo do Pacto Histórico, que prega a redução gradual do modelo extrativista para eliminar a dependência econômica do carvão e do petróleo. Isso em um país que tem o petróleo como item número um da sua balança comercial. A proposta aprovada pelos eleitores inclui também a proibição da exploração de combustíveis fósseis não convencionais. Traduzindo: os projetos piloto de fracking no país serão interrompidos, enquanto os contratos e licenças para exploração de hidrocarbonetos não serão renovados, nem serão assinados novos. A mineração a céu aberto também é outro ponto que o programa do governo busca proibir. Vai dar certo? Não sei. É difícil, mas é corajoso, inusitado e está em linha com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, documento da ONU assinado por 195 países do mundo, incluindo o Brasil. São ações fundamentais para qualquer país que queira, de verdade, enfrentar a crise climática.

Os discursos de campanha também estão perfeitamente alinhados com a história de Gustavo Petro e Francia Márquez Mina. Ela, a primeira mulher preta a ocupar o cargo de vice-presidente na Colômbia, foi a ganhadora, em 2018, do Goldman Environmental Prize, um dos mais importantes prêmios ambientais do planeta. Aos 14 anos, Márquez já militava no combate aos garimpeiros ilegais que atuavam nas margens do rio Ovejas, departamento de El Cauca. Os invasores derrubaram florestas e cavaram covas profundas, destruindo o fluxo natural do rio e matando milhares de peixes. Em protesto, Francia Márquez e as mulheres da sua comunidade, percorreram 350 milhas até a capital do país. Em Bogotá, elas passaram 22 dias protestando nas ruas. Em dezembro de 2014, finalmente, houve um acordo. As autoridades concordaram em tomar medidas para erradicar a mineração ilegal da região de El Cauca. Todas as máquinas e retroescavadeiras encontradas operando ilegalmente na região foram apreendidas e destruídas.

Ou seja, o vivir sabroso que vem da Colômbia para nos inspirar, não tem a ver com viagens, consumo, entretenimento e ostentação. É uma história de luta em busca de um mundo melhor para todos, homens, mulheres, brancos, negros, indígenas, animais e natureza. Usando outra expressão popularizada por Francia Márquez, “eu sou porque somos”. Uma pessoa só existe através das outras, por causa das outras. Em seu primeiro discurso após ser eleita (ver acima), Márquez voltou a se inspirar em um poema de escritor uruguaio Eduardo Galeano para citar “los nadies”, como ela chama a quem representa: Los nadies: los hijos de nadie, los dueños de nada. Los nadies: los ningunos, los ninguneados, corriendo la liebre, muriendo la vida, jodidos, rejodidos…Que o discurso de Gustavo Petro e Francia Márquez se transforme em prática, e que a América Latina seja um lugar mais sobroso para se vivir.

Agostinho Vieira

Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Foi repórter de Cidade e de Política, editor, editor-executivo e diretor executivo do jornal O Globo. Também foi diretor do Sistema Globo de Rádio e da Rádio CBN. Ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1994, e dois prêmios da Society of Newspaper Design, em 1998 e 1999. Tem pós-graduação em Gestão de Negócios pelo Insead (Instituto Europeu de Administração de Negócios) e em Gestão Ambiental pela Coppe/UFRJ. É um dos criadores do Projeto #Colabora.

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