A bula do poder no Carnaval reza que os presidentes das escolas devem vir à frente do desfile, metidos na fantasia de líder e guia, emulando os antigos patronos, banqueiros de bicho. Presidenta da Mangueira (e filha do morro berço da escola), Guanayra Firmino fez diferente de todos em 2024: passou ao lado dos cantores, atrás da bateria, sambando rasgado avenida afora.
Leu essa? Festa da desigualdade
Jamais por acaso, outra característica – mais significativa – a distingue: é a única mulher negra no comando de uma escola grande, no meio do enclave branco e quase todo masculino dos mandachuvas da batucada. Prova, mais uma, de que a festa inventada pelos pretos atravessa o samba da urgente agenda da diversidade.
O poder carnavalesco se mantém, há décadas, praticamente todo branco, mazela que se expressa, aos olhos do público, no evento anual que aponta a campeã, a leitura das notas dos jurados. Sucedem-se fotos de avaliadores brancos – em 2024, dos 36, apenas três (menos de 10%) são negros. Parece a folia norueguesa. No gênero, não melhora muito, com 10 mulheres e 26 homens.
O predomínio da branquitude influencia decisivamente o julgamento. Mestre-sala e porta-bandeira, por exemplo, são esquadrinhados por profissionais do balé clássico e funcionários do Theatro Municipal. Assim, danças mais leves recebem mais notas 10, o que causa a uniformização dos estilos. Ficou famosa a alegação de dois julgadores, ano passado, penalizando a porta-bandeira da Mangueira, Cinthya Santos, por “excesso de vigor” na apresentação – seja lá o que isso signifique.
Agora em 2024, a guardiã do pavilhão da Estação Primeira conseguiu a nota máxima, com estilo bem mais leve e enquadrado. Amenizou o jeito visceral e intenso de dançar (lindo, por exclusivo na atual geração) em nome da disputa. E garantiu as quatro notas 10.
O jogo dos bambas ainda produz imagens ao mesmo tempo emblemáticas e aviltantes. O protocolo manda os artistas curvarem-se na direção das cabines, após as apresentações. Resulta na ofensa de virtuoses pretos conhecidos mundo afora, como Selminha Sorriso (porta-bandeira da Beija-Flor), Ciça (mestre de bateria da campeã Viradouro) e Evelyn Bastos (rainha de bateria da Mangueira), desmanchando-se em mesuras na direção de pessoas quase todas brancas, encasteladas em andares superiores. Mais brasileiro, impossível.
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Veja o que já enviamosOutra: inexistem sambistas entre os jurados. Na luta por credibilidade, a Liga Independente das Escolas de Samba, organizadora do espetáculo, seleciona mestres, doutores, portadores de títulos e diplomas, que só agora, com as políticas de ação afirmativa, estão deixando de ser quase exclusivamente brancos.
São negros todos os inventores das escolas de samba – de Paulo da Portela a Cartola, de Carlos Cachaça a Djalma Sabiá, de Dona Eulália da Beija-Flor a Sebastião Molequinho, entre muitos outros. Mas na fase contemporânea do espetáculo, os criadores estão confinados ao chão da fábrica. Cantores, mestres de bateria, casais de mestre-sala e porta-bandeira, passistas, rainhas de bateria e componentes em geral são, na imensa maioria, afro-descendentes.
O cenário vai ficando mais escandinavo conforme se sobe a pirâmide hierárquica do paticumbum. Entre os diretores de Carnaval, sete escolas têm brancos no cargo que, na prática, fica abaixo apenas do presidente. Com os carnavalescos, é ainda pior: apenas quatro das 12 (um terço) escalam negros para a função de criar e desenvolver fantasias e alegorias.
“Assim como o doloroso processo que vivemos fora do universo de fantasias do Carnaval, o mundo das escolas de samba foi dominado pela branquitude que resolveu pautá-lo para benefícios próprios, privilegiando (como sempre) sua maneira de contar as histórias”, escreveu André Rodrigues, carnavalesco (negro) da Portela, em artigo para a revista Rio Já. “Os negros que faziam cultura nos anos 1930 – o que perfeitamente poderia ser o Modernismo Carioca – negociaram seus espaços no comando da manifestação para não sucumbir às duras investidas das organizações brancas sobre a festa”.
Com o avanço da demanda por diversidade, as grifes carnavalescas estão crescentemente pressionadas a mudar. Ao mesmo tempo em que enredos avançam na exaltação de personagens e episódios invisibilizados nos relatos oficiais, ainda patinam para serem mais diversos nos espaços de poder. Essa batida precisa ganhar ritmo mais acelerado.
Excelente artigo. Informativo, esclarecedor, mais do que apropriado num momento de esforço de combate ao racismo estrutural. Parabéns!”
Moacir José / São Paulo, capital