A 38ª edição da publicação Conflitos no Campo Brasil, elaborada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) com o balanço dos dados de 2023, revela poucas mudanças no quadro de violência ligada a questões agrárias no primeiro ano de governo do terceiro mandato do presidente Lula: foram registrados 2.203 conflitos, um aumento de quase 10% em relação a 2022, e o maior número desde o início dos levantamentos, em 1985, superando os 2.130 contabilizados em 2020, até então o ano com o primeiro lugar em conflitos. Houve queda no número de violência contra pessoas – incluindo uma diminuição significativa, de quase 34%, no número de assassinatos: foram 31 homicídios em 2023, 16 a menos do que os 47 registrados no campo em 2022.
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Apesar da queda no número de vítimas fatais, o relatório da CPT, lançado nesta segunda-feira (22/04) na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em Brasília, aponta para uma crescente escalada de ações armadas contra trabalhadores sem terra, posseiros, indígenas, quilombolas e outras comunidades do campo, com o aumento de 45% dos casos de pistolagem em conflitos pela terra – classificados como a ação de agentes contratados para atentados contra comunidades (sem vítimas fatais), ameaças e intimidação. Foi o segundo tipo de violência contra a posse e a ocupação de terras que mais teve registros de ocorrência em 2023: 264 casos, crescimento de 45% em relação ao ano de 2022 e também o maior número registrado pela CPT nas ocorrências deste tipo de violência contra a coletividade das famílias — um total de 36.200 famílias atingidas. A invasão de terras foi a violência mais comum registrada – 359 casos, um pequeno aumento em relação aos 349 de 2022.
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Veja o que já enviamosDe acordo com o documento da CPT, os trabalhadores sem-terra foram os principais alvos das ações de pistolagem, com o registro de 130 ocorrências, seguidos por posseiros (49), indígenas (47) e quilombolas (19). Destruição de pertences (101), casas (73) e roçados (66) também foram ações violentas contra a permanência dos povos em seus territórios. Os casos de pistolagem se multiplicam. Em dezembro de 2023, camponeses da Comunidade Marielle Franco, no município de Lábrea, no sul do Amazonas, foram expulsos à bala da área onde viviam. O acampamento Dina Guerrilheira, do MST, que ocupa terras públicas da União no norte de Tocantins, vem sofrendo ameaças de pistoleiros desde outubro. Agora em março, pistoleiros ameaçaram de expulsão 80 famílias de pequenos agricultores e posseiros que vivem no Acampamento Terra Santa, na zona rural em Porto Velho, Rondônia.
O relatório destaca que, dos 2.203 conflitos no campo registrados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) em 2023, a maior parte é relacionada aos conflitos por terra (78,2%), representando 1.724 ocorrências – também foram listadas ocorrências de trabalho escravo rural (251) e conflitos pela água (225). Em relação ao ano de 2022, houve um aumento de 7,6% no número de ocorrências violentas no “Eixo Terra”, com impacto nas vidas de 187.307 famílias. “Os números revelam uma intensificação da violência contra os povos da terra, das águas e das florestas, que vivem sob a mira dos conflitos no campo no Brasil. Do total de conflitos por terra em 2023, 92,1% é referente às Violências contra a Ocupação e a Posse e/ou contra a Pessoa (1.588), representando um aumento de 4,3% nos registros de violência nesse eixo em relação ao ano anterior”, ressalta o documento.
De acordo com a publicação, elaborada pela equipe do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno (Cedoc), “o principal agente causador das violências no Eixo Terra foi o Fazendeiro, responsável por 31,17% das violências, seguido da categoria Empresário, com 19,71%, o Governo Federal, com 11,02%, Grileiro, com 9,06% e o Governo Estadual, com 8,31%”. O documento destaca ainda que houve uma diminuição nos números de violências causadas pelo Governo Federal, passando de 240, em 2022, para 175 ocorrências, em 2023, uma diminuição de 27,1%. “Algumas mudanças de atuação do novo governo podem justificar a diminuição desses números, com a abertura de canais de diálogos com movimentos e organizações de luta no campo, como a criação do Ministério dos Povos Indígenas e do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA)”, ressalta o texto.
O relatório da CPT aponta ainda que a discrepância entre os números de violência contra comunidades e de ações de resistências nos conflitos por terra continuou na tendência de crescimento iniciada em 2016: em 2023, 92,1% dos registros de conflitos são relativos a violências, enquanto as ações de resistências representam apenas 7,9% das ocorrências. As análises no relatório apontam que esse quadro é resultado da escalada da extrema direita desde o governo Bolsonaro, que “preparou o terreno para que o agronegócio avançasse inescrupulosamente contra as comunidades do campo, que enfrentam cotidianamente invasões de suas terras e territórios, pistolagem, incêndios criminosos, contaminação por agrotóxicos, grilagem e desmatamento”.
O documento mostra ainda que “agrupando as categorias de agentes causadores de violências identificados como fazendeiros, grileiros e grandes arrendatários, em 2023, foram registradas ocorrências de pistolagem (165), invasão (181), grilagem (86), desmatamento ilegal (67) e e incêndios (34) como algumas das violências promovidas por eles no Eixo Terra”.
Indígenas como alvo: 30 estupros de mulheres yanomamis
Nos três eixos de conflitos (Terra, Água e Trabalho) registrados pelo Centro de Documentação Dom Tomás Balduino (Cedoc/CPT), há uma categoria de Violência contra a Pessoa, com foco diretamente nos indivíduos como alvo, e não à coletividade. Em 2023, a CPT registrou 554 ocorrências, que afetaram 1.467 pessoas. Foram 31 assassinatos – queda de 34% em relação a 2022. Os indígenas foram maioria entre as vítimas fatais: 14 mortos; a CPT registrou ainda nove homicídios de trabalhadores sem terra; quatro de posseiros e três de quilombolas, além de um funcionário público. Das 31 vítimas de homicídios em 2023, sete eram mulheres: quatro indígenas, uma posseira, uma sem terra e uma quilombola, Mãe Bernadete Pacífico, liderança e ialorixá executada a tiros no Quilombo de Pitanga dos Palmares, na Bahia.
As mulheres foram vítimas de outras violências no contexto dos conflitos no campo: ameaças de morte (45 vítimas), intimidação (36), estupro (30) e a tentativa de assassinato (13). A CPT destaca a explosão (aumento de 2.900%) dos registros de estupro; em 2022 houve um caso. Todas as 30 mulheres eram yanomamis, vítimas de garimpeiros que permanecem em suas terras.
As comunidades indígenas também foram a categoria que mais sofreu violência nos conflitos por terra, com 29,6% do total de ocorrências registradas no relatório, uma triste rotina que vem desde o primeiro ano (2019) do Governo Bolsonaro. Em 2023, não foi diferente: com um crescimento de 10,8% em relação a 2022, indígenas foram vítimas em 470 ocorrências de violências por terra.
Mais casos de trabalho escravo
O relatório anual Conflitos no Campo Brasil, publicado pela CPT, também aponta 251 casos de trabalho escravo: a fiscalização resultou no resgate de 2.663 pessoas trabalhando em atividades rurais análogas à escravidão em 2023. Os números são os maiores da última década, tanto o de casos identificados com o de trabalhadores resgatados. O número de casos subiu 22% em comparação com 2022, o aumento no número de trabalhadores resgatados foi de 21%.
Os estados com maior número de casos de trabalho análogo à escravidão no campo foram Minas Gerais (58), Pará (21), Goiás (17), Piauí (14), Paraná (14), Rio Grande do Sul (13) e São Paulo (13). “É importante frisar que o crescimento nos casos registrados e de trabalhadores libertos tem relação direta com o aumento considerável no número de fiscalizações realizadas nos últimos três anos, tanto no campo quanto na cidade”, ressalta a publicação da CPT