ODS 1
Violência em São Luís ampliou tragédia da rebelião em Pedrinhas
Especial 'Complexo de Pedrinhas: marcas de uma barbárie' | Conflito entre facções incluiu chacinas, tiroteios, toques de recolher e incêndios a ônibus; menina de seis anos morreu queimada em ataque na periferia
Na noite do dia 3 de janeiro de 2014, uma mãe grita em meio a um ataque a ônibus “Moço, tem piedade! Deixa eu sair com as crianças!”. Segundos depois, o coletivo em que a mãe e duas crianças estavam pega fogo, incendiado violentamente. A ação tem a autoria do grupo criminoso Bonde dos 40, uma das facções recentemente consolidadas no estado do Maranhão. Foi nessa noite que foi feita a vítima mais improvável da rebelião continuada no Complexo Penitenciário de Pedrinhas.
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A mãe se chama Juliane Carvalho, de apenas 22 anos, e as crianças são duas meninas: uma de seis anos, Ana Clara, e outra de apenas 1 ano, Lorane Beatriz. As três haviam acabado de subir no veículo às 20h07, no bairro Vila Sarney, na periferia de São Luís, retornando para casa. Os funcionários das empresas de ônibus naquele dia estavam parando o serviço por conta do toque de recolher imposto por facções na cidade de São Luís. Em dias de motim no Complexo de Pedrinhas, por conta da rebelião que já durava quase um ano, a população era obrigada a se recolher por conta dos tiroteios e incêndios que esses grupos provocavam.
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Veja o que já enviamosLogo depois delas, um homem de boné entra no coletivo e ordena que todos desçam; dá tempo para que as pessoas o façam e joga gasolina. Outros seis homens, alguns menores de idade, auxiliam no ataque ameaçando as pessoas e encharcando o veículo com gasolina. O fogo é aceso e os gritos começam.
Na parte da frente do ônibus, além do motorista e da cobradora, só estão a mãe e as crianças. A gasolina jogada pelo homem não cai apenas no chão; por ter sido atirado também para cima, o líquido inflamável molha a calça de Ana Clara que estava sentada no banco mais próximo à porta e também as costas de Juliane, que abraça a filha mais nova, virando de costas para o homem, após ver que sua súplica para sair não foi ouvida.
O fogo começa tão rápido que Juliane não consegue ver mais nada e precisa recuar para o meio do ônibus, já que a saída da frente está tomada pelas chamas. O que ela não sabe é que Ana Clara tinha ficado no meio do fogo: ela tentou fugir sozinha, mas não teve condições e caiu na escada, onde ficou queimando. A cobradora também não vê a menina em meio as chamas e foge pulando por cima da criança. Márcio Ronny, 37 anos, que também está no coletivo, tenta salvar Ana Clara, vendo o desespero de sua mãe. Para apagar as chamas, o homem abraça o corpo da menininha que lembra muito sua própria filha.
Ana Clara faleceu três dias depois do ocorrido, deixando a cidade de luto e o país indignado: ela teve 95% de seu corpo queimado; Márcio. 75%; Juliane 40%, e Lorane, 20%. Outras vítimas também precisaram de atendimento médico, mas nada tão grave quanto deles. Do ônibus, que um dia havia sido verde, só restou uma carcaça retorcida e em cinzas. Após semanas no hospital, Juliane, mãe de Ana Clara, deixou São Luís com a família e foi morar em outro estado.
O sentimento em toda a cidade era de insegurança, pois a rebelião em Pedrinhas extrapolara os muros das unidades. Naquela chamada noite do terror, policiais interceptaram ligações telefônicas que teriam vindo do Complexo de Pedrinhas, dando a entender que os ataques foram uma represália por conta de operação realizada pela Tropa de Choque da Polícia Militar no presídio que apreendeu aparelhos de TV, celulares e armas, entre outros materiais proibidos. O ataque à cidade era uma resposta do crime organizado que queria ter o controle do tráfico de entorpecentes na cidade e comandar tudo de dentro dos presídios.
Além do ônibus na Vila Sarney, outros três foram incendiados na mesma noite. Duas delegacias também foram alvos de tiros. E esse ataque não foi isolado. A prática de incendiar ônibus ocorria na cidade desde outubro de 2013, quando o conflito no Complexo de Pedrinhas se intensificou. A sensação era de descontrole do poder público. São Luís vivia constantemente em toque de recolher, escolas e universidades suspendiam as aulas, o comércio fechava mais cedo, instituições públicas liberavam os funcionários, enquanto servidores das polícias Militar e Civil precisavam ter cuidado redobrado com tiroteios. Foi nessa época que Pedrinhas recebeu o título nacionalmente de pior penitenciária do país. (link primeira matéria). Foi nesse contexto que Diane*, uma imigrante argentina e moradora da capital, perdeu seu filho para a guerra das drogas.
História de amor e ódio de uma mãe
O período de rebelião continuada em Pedrinhas coincidiu com a época em que o filho de Diane, Agustín*, esteve preso por assalto. Já era a segunda prisão do jovem, que era usuário de drogas e estava em situação de rua. O assalto era para manter o vício, que tinha desde a adolescência. Morador da periferia, o menino cresceu cheio de dificuldades de aprendizado, taxado como burro e encrenqueiro pelos professores; nunca teve acesso a qualquer tratamento ou acompanhamento em relação à sua saúde mental.
Depois de abandonar a escola e já viciado em drogas, Agustin precisou sair da casa da mãe após ter vendido quase tudo que ela tinha. Diane conta ter feito tudo o que pode para ajudar o filho: o colocou em clínica de reabilitação para o uso de drogas, conseguiu que ele entrasse para uma escolinha de futebol, pagou um psiquiatra que diagnosticou o rapaz com Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), provavelmente a base de muitos dos seus problemas na infância.
Diane tentou que seu filho fizesse tratamento para o transtorno de forma gratuita, mas não conseguiu. “Procurei por todas as políticas públicas disponíveis na época, todas, todas. Tentei de tudo para que Agustín pudesse se livrar daquela doença que era o vício, porque era isso, meu filho estava doente, mas foi tudo em vão. Não existia nenhum tipo de política pública para uma mãe com um problema como o meu”, conta ela, 10 anos depois dos massacres de Pedrinhas.
A situação do sistema penitenciário era tão precária que Diane decidiu, junto a outras mães, esposas e familiares de pessoas encarceradas em Pedrinhas, criar uma associação para lutar por condições mais dignas. Foi a mãe de Agustin, ainda preso no complexo, que batizou a associação com o nome de Revoar no final de 2013. Quando alguém era preso, raramente a família era notificada, não recebiam informações sobre onde o parente estava, qual era a condição de saúde e o que deveria ser levado para o uso pessoal deles. A associação, além de ser um instrumento de denúncia, também era um espaço de acolhimento entre pessoas que estavam passando pela mesma situação. Os pais – com apoio de estudantes da UFMA e do grupo PAJUP (Programa de Assessoria Jurídica Universitária Popular) – davam orientações e organizavam atos de protesto.
Agustín foi solto após cumprir o período de encarceramento em regime fechado e progredir para o regime semiaberto, em 2014, mas não voltou para a casa da mãe – a decisão, explica Diane, foi pelo desgaste com o rapaz e por proteção aos seus outros dois filhos, mais novos, Diane conta que vivia uma relação de amor e ódio com Agustín. Amor imenso de uma mãe, por alguém que ela gerou e criou. Ódio por tudo que ela teve que passar por causa do vício dele e da falta de alternativas.
Numa noite de julho de 2014, Diane sonhou com Agustín e sabia que ele não estava mais vivo. Seu filho do meio já tinha recebido a notícia que o irmão mais velho havia sido assassinado, mas não quis falar para a mãe até o reconhecimento oficial. Agustín morreu sozinho, assassinado com oito tiros – a famosa casinha (armadilha para matar alguém). Tinha apenas 22 anos. Na periferia, os comentários eram que ele havia sido morto por uma dívida com traficantes de drogas, que a ordem teria partido dos chefes das facções criminosas, de dentro do Complexo Penitenciário de Pedrinhas. “Nunca quis saber nada. Nem como morreu, nem quem matou, nada, nada. Doía muito perder meu filho daquela forma (…). Meu filho amoroso, esperto, que foi tão sonhado e esperado, mas que também me trouxe muito ódio, muita raiva”, confidencia Diane, dez anos depois da morte de Agustín.
Muitas outras mães de periferia passam pelo mesmo luto enquanto os problemas de segurança pública vêm sendo enfrentados apenas através do encarceramento em massa e do policiamento ostensivo, soluções punitivas e e não preventivas. “Eu queria não precisar desejar que a justiça fosse feita contra quem matou meu filho, que eles fossem presos; queria meu filho saudável aqui em casa, como meus outros filhos. Queria que Agustín tivesse a oportunidade de ter uma vida”, desabafa Diane.
Cidade sitiada
Chacinas, execuções, tiroteios e incêndios faziam parte de uma disputa pelo controle territorial do tráfico de entorpecentes por duas facções, empresas do crime. Com isso, além dos dados oficiais de 64 pessoas assassinadas dentro do Complexo, em 2013 e 2014, foram registradas 1.900 mortes violentas em São Luís – o equivalente a quase três homicídios por dia. Grande parte dessas mortes está relacionada ao crescimento do crime organizado no estado.
No Maranhão, a taxa de homicídios aumentou 400% entre 2000 e 2012, segundo a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), o exato mesmo período em que os motins no Complexo Penitenciário começou a se intensificar e a ter relatos de decapitações: em 2010, uma rebelião de 27 horas terminou com 18 presos assassinados e 20 feridos. Como aconteceria na rebelião continuada de 2013 e 2014, no massacre de 2010, três encarcerados foram decapitados.
O perfil das vítimas dos homicídios também ajudou no levantamento da motivação desses crimes: as vítimas são, em sua maioria, homens (92%) e negros (85%); o mesmo perfil dos encarcerados e um perfil semelhante – com uma maioria de mulheres – de quem vive em vulnerabilidade social nas periferias, alvos do crime organizado. Também contribuiu para o aumento da violência o uso de armas de fogo, que chega a 54% nos homicídios praticados no Maranhão e 74% nos crimes de morte cometidos em São Luís.
Naquela época, São Luís chegou a ser a 2ª capital brasileira com maior índice de crescimento do número de homicídios, perdendo apenas para Maceió (AL). A capital maranhense também estava entre as 50 cidades mais perigosas do mundo, subindo de posição a cada ano. Em 2011, chegou ao 27º lugar; em 2013, subiu para 15º.
A morte de Ana Clara, uma menina inocente de seis anos, foi o estopim para a mobilização da população que implorava pela contenção da rebelião. Foi a primeira morte a virar motivo de revolta contra a forma que o Poder Público estava lidando com a crise na segurança pública – ainda que pessoas estivessem sendo assassinadas todos os dias. Nas periferias de São Luís o clima ainda era de medo; a sensação era de que poderiam ocorrer chacinas no Complexo de Pedrinhas e na periferia, mas o conflito entre as facções só passou a ser considerada um problema de estado quando afetou as pessoas consideradas inocentes.
Guerra das drogas
O motivo da rebelião continuada no Complexo Penitenciário de Pedrinhas foi a denúncia dos maus tratos, tortura e outras diversas violações de direitos humanos, além da completa falta de estrutura das unidades. Quem comandava os motins e ataques na cidade foram os grupos criminosos, em especial duas facções: Bonde dos 40 e Primeiro Comando do Maranhão.
O B40 era o grupo que dominava a maioria do território na Grande São Luís, que compreende a capital e os municípios metropolitanos Raposa, São José de Ribamar e Paço do Lumiar. Também era a facção que assumia a autoria da maioria dos ataques e motins. Dez anos após a rebelião, o B40 continua com a hegemonia da maioria dos territórios, porém, atualmente, também chegaram a São Luís o Comando Vermelho (facção do Rio de Janeiro) e o PCC (facção de São Paulo).
Enquanto os crimes letais violentos em 2013 tinham uma forte ligação com o Complexo de Pedrinhas, atualmente, a queda no número de homicídios também tem relação. O Governo do Maranhão anunciou, no final de 2023, uma forte queda no número de assassinatos em comparação com dez anos atrás. Segundo dados da SSP-MA foram registrados 240 crimes letais violentos em 2023, enquanto 2013 registrou 807.
O Governo do Estado credita essa redução ao forte investimento que o Maranhão fez em segurança pública (link outra matéria), contudo, pesquisadores da área acreditam que a “pacificação” dos territórios é uma política das próprias facções, como argumenta o presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos do estado, Luís Pedrosa. “As facções são as principais responsáveis porque eles não querem a polícia entrando nas periferias para atrapalhar o negócio deles”, afirma, acrescentando ainda que a redução dos homicídios se deve, ainda, ao forte impacto das regras desses grupos, como não poder matar sem permissão, não entrar ou assaltar em território inimigo e não “caguetar” (dar informações) para a polícia. Além disso, os bairros na capital estão divididos e estabilizados entre as facções.
No entanto, mesmo com o número de mortes reduzindo historicamente na capital, o Maranhão foi um dos cinco estados brasileiros que teve aumento de assassinatos em 2023 comparado ao número de 2022. O aumento foi de 1,8%, enquanto o país registrou queda de 4%. Foram 1.837 mortes violentas, o que demonstra que o interior do estado é que mais sofre com a violência atualmente, em especial na zona rural.
*Nomes foram trocados a pedido da família
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Jornalista e mestra em Comunicação pela UFMA (Universidade Federal do Maranhão. É cofundadora da agência Sebá Comunica e assessora de comunicação na pauta dos Direitos Humanos. Metade maranhense e metade carioca, é apaixonada por leitura e escrita criativa.