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Samba e poesia contra tiro e milícia

ODS 16 • Publicada em 20 de setembro de 2022 - 08:29 • Atualizada em 20 de setembro de 2022 - 09:00

“Não sou do tempo das armas/ Por isso ainda prefiro/ Ouvir um verso de samba/ Do que escutar som de tiro”

Esses versos de Paulo César Pinheiro foram a primeira coisa que me veio à cabeça quando vi a chocante conclusão de pesquisa do Instituto Fogo Cruzado em parceria com o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da UFF: 20% da área urbana habitada da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (retiradas a cobertura vegetal, áreas rurais e bacias hidrográficas) está sob o domínio de algum grupo armado. O Mapa dos Grupos Armados é o resultado trágico de décadas de fracasso na segurança pública; viver sob ameaça permanente das armas é a triste rotina de 4,$ milhões de pessoas, mais de um terço (36,6%) da população do Grande Rio.

“O galo já não canta mais no Cantagalo/ A água não corre mais da Cachoeirinha”

Assim começa “Nomes de favela”, samba gravado por Pinheiro em 2003, quando a situação já era dramática para quem morava em comunidades como estas – a primeira na Zona Sul, a outra na Zona Norte. Tiro era parte da rotina.

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Volto mais 20 anos: ouvi tiro de perto, pela primeira vez em 1982, quando jornalistas visitaram a área das antigas palafitas da Baixa do Sapateiro, favela do Complexo da Maré, levados pelas autoridades que fariam a inauguração da Vila do João – conjunto habitacional na vizinhança batizado com o nome do último general-presidente da ditadura. Deu para ver a alguns quilômetros de distância o chefe do tráfico e meia dúzia de seguidores atirando para o alto mas em nossa direção, como um sinal de que a obra não afetava os negócios. Eram tiros de revólver: Taurus, sempre Taurus, com munição da CBC, o monopólio da bala, as marcas prediletas dos grupos criminosos armados, uma tradição de (mais de) 40 anos

“Menino não pega mais manga na Mangueira/ E agora que cidade grande é a Rocinha!”

Como jovem jornalista, acompanhei o avanço do controle dos traficantes armados pelas áreas faveladas do Rio, inclusive nessas duas. Mas o estudo recém-lançado mostra que, principalmente na capital, as milícias são as maiores responsáveis pela opressão das áreas controladas por grupos armados. A área do Grande Rio dominada por milícias cresceu 387% em 16 anos (entre 2005 e 2021). Na capital, o estudo aponta que as milícias controlam 74,2% das áreas ocupadas por grupos armados – a cidade tem 29,4% do seu território urbano, dominado por grupos armados, mas as quadrilhas do tráfico hoje são minoria.

“Ninguém faz mais jura de amor no Juramento/ Ninguém vai-se embora do Morro do Adeus”.

O samba de Paulo César Pinheiro cita dois conhecidos redutos do Comando Vermelho, a facção criminosa mais antiga do Rio, nas duas últimas décadas do século passado. O Morro do Juramento era a base de Escadinha (José Carlos dos Reis Encina), famoso por ter fugido de helicóptero do prédio da Ilha Grande em 1986; foi no Adeus que Uê (Ernaldo Pinto de Medeiros) ganhou manchetes após ser expulso do CV e fundar a facção Amigos dos Amigos.

Durante quatro décadas, os agentes de insegurança pública do Rio promoveram uma guerra às drogas sem qualquer resultado – ou com péssimos resultados. As facções se armaram e se organizaram cada vez mais para enfrentar as operações policiais; multiplicaram-se os tiroteios e as mortes – de envolvidos nos conflitos e de inocentes; as disputas por territórios, necessários no enfrentamento com a polícia, entre facções alimentaram a rotina de violência.

“Prazer se acabou lá no Morro dos Prazeres/ E a vida é um inferno na Cidade de Deus”

Nos últimos 20 anos, a violência do Rio teve a marca da ascensão das milícias, chefiadas, quase na totalidade, por policiais ou ex-policiais. Agentes da insegurança pública, incapazes de enfrentar o poder do tráfico com sua estúpida política de guerra às drogas, passaram a competir diretamente com as facções do crime. Começaram por controlar serviços, legais e ilegais, que, em áreas do tráfico, eram apenas um negócio paralelo. Hoje, milicianos, em muitos casos, adicionaram o comércio de drogas a seus negócios – o que potencializou o conflito entre as facções do tráfico e as milícias paramilitares.

Arsenal apreendido com milícia na Zona Oeste: 20% da área urbana do Grande Rio sob o domínio de grupos armados (Foto: Divulgação / PCERJ - 18/04/2018)
Arsenal apreendido com milícia na Zona Oeste: 20% da área urbana do Grande Rio sob o domínio de grupos armados (Foto: Divulgação / PCERJ – 18/04/2018)

Se a vida já era um inferno na Cidade de Deus quando Paulo César Pinheiro fez este samba no começo do século, em nada melhorou 20 anos depois quando, ainda controlada pelo Comando Vermelho, está cercada por áreas dominadas pelas milícias que cobiçam a tomar o controle da favela. A Zona Oeste – onde está a Cidade de Deus – é a área da Região Metropolitana do Rio onde as milícias mais avançaram. Pelo Mapa dos Grupos Armados, de todo o território da Zona Oeste ocupado por grupos armados, 86,8% está dominado pelos milicianos; as três facções do tráfico, além do CV, Terceiro Comando Puro e Amigos dos Amigos, ficam com a pequena porcentagem restante.

“Não sou do tempo das armas/ Por isso ainda prefiro/ Ouvir um verso de samba/ Do que escutar som de tiro”

O estudo mostra que o som de tiro, na capital, é mais comum na Zona Norte, onde o domínio do Comando Vermelho e das outras facções é maior. O motivo é trágico: os milicianos da Zona Oeste são pouco incomodados pela polícia – de onde vem a maioria de seus quadros, muitos na ativa como provam as poucas operações realizadas contra as milícias. Num caso violento de concorrência desleal, a polícia do Rio concentra suas ações em áreas das facções do tráfico – com a intenção, aparentemente óbvia, de enfraquecer os traficantes para beneficiar milicianos.

A insegurança no Rio é um grande negócio: a guerra às drogas é uma ação de marketing obtusa e homicida. O agente da violência do Rio não é a droga; é o tiro; e seria mais fácil controlar e conter as armas – apesar de Bolsonaro e sua simpatia por milícias armadas – do que impedir o consumo de drogas e seu comércio que atravessam os séculos. A guerra às drogas interessa a policiais mais em busca de poder do que empenhados no combate o crime, aos fabricantes de armas e munições e à grande facção hipócrita da sociedade.

O Mapa dos Grupos Armados leva tristeza, depressão e um sabor de fracasso e impotência a todos que amam este o Rio de Janeiro. Para enfrentar esses sentimentos, que tal um samba?

“Pela poesia dos nomes de favela/ A vida por lá já foi mais bela/ Já foi bem melhor de se morar/ Mas hoje essa mesma poesia pede ajuda/ Ou lá na favela a vida muda/ Ou todos os nomes vão mudar”

 

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