ODS 1
Produtos à base de frango na Europa alimentam desmatamento e grilagem no Cerrado
Investigação da ONG Earhtsight aponta que soja para produção de ração é cultivada em fazendas envolvidas em ilegalidades na Bahia
Investigação da ONG britânica Earthsight aponta que produtos à base de frango vendidos pelo gigante do fast-food McDonald’s e por alguns dos principais supermercados europeus estão ligados a desmatamento ilegal, grilagem de terras, violações de direitos e corrupção no Cerrado brasileiro. A Earthsight afirma ter analisado imagens de satélite, decisões judiciais e registros de exportação para rastrear parte das 1,4 milhão de toneladas de soja exportadas do estado da Bahia para a União Europeia pelas exportadoras multinacionais Cargill e Bunge entre 2021 e 2024. Parte dessa soja – usada para produzir ração para frangos na Europa – foi produzida por fazendeiros acusados de crimes ambientais e outras violações da lei no Brasil.
O relatório – batizado de Ingrediente Secreto – da Earthsight conecta ações de desmatamento realizadas pela Mizote Empreendimentos, pela Franciosi Agro e pelo Grupo Horita, gigantes do agronegócio com fazendas no oeste da Bahia, desde janeiro de 2021 às importações da UE de soja brasileira. Essas importações, aponta a ONG, correm o risco de não estar em conformidade com o novo Regulamento de Desmatamento da União Europeia (EUDR) devido à data limite da lei de dezembro de 2020 para cadeias de suprimentos livres de desmatamento. Embora o foco do regulamento em florestas exclua grande parte do Cerrado, menos densamente florestado, a análise de dados de satélite da Earthsight mostra que as áreas limpas dentro das fazendas de soja das duas empresas desde 2021 eram parcialmente compostas por florestas em dezembro de 2020.
A investigação da Earhsight acompanhou o caminho da soja dessas fazendas no oeste da Bahia até a Europa. Depois de ser exportada da Bahia pela Bunge e pela Cargill, parte dessa soja chega à Holanda e é transformada em ração animal. Milhões de frangos alimentados com essa ração são abatidos pela Plukon, a quarta maior produtora de aves da Europa, que abastece milhares de supermercados em todo o continente. A Earthsight identificou produtos de frango da Plukon no Carrefour e no Intermarché na França, no Albert Heijn na Holanda e nas lojas Edeka na Alemanha. A Plukon também fornece para a rede McDonald’s na Europa.
Somente a quantidade de soja exportada pela Bunge do Cerrado baiano para a UE é suficiente para produzir 428 milhões de coxas de frango por ano. “Essa soja contaminada, usada como ração em granjas europeias, é o ingrediente secreto de produtos populares à base de frango, que ligam consumidores incautos a atos de destruição e violação de direitos no Cerrado brasileiro”, afirma o relatório da Earthsight, que se define como uma “organização sem fins lucrativos que usa investigações aprofundadas para expor crimes ambientais e sociais, injustiças e as ligações com o consumo global”.
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosVice-diretor da Earthsight, o pesquisador Rubens Carvalho aponta a responsabilidade das empresas envolvidas na cadeia da soja. “As grandes traders, os fabricantes de alimentos e varejistas precisam parar de tornar os consumidores europeus cúmplices da destruição do Cerrado. Eles devem garantir que a soja ligada ao desmatamento e às violações dos direitos das comunidades não entre em suas cadeias de suprimento. Infelizmente, apesar de anos de promessas e compromissos, eles têm falhado nessa tarefa. A UE precisa se manter firme e garantir que o Regulamento de Desmatamento da UE seja totalmente aplicado a partir do final deste ano”, afirma.
O Regulamento de Desmatamento da União Europeia (EUDR) exige que os produtos comercializados na UE sejam livres de desmatamento e produzidos em conformidade com as leis relevantes dos países produtores, como as relacionadas à corrupção e aos abusos dos direitos humanos. O Brasil e outros países têm resistido à chamada lei anti desmatamento da União Europeia. No começo de setembro, comunicado dos ministros Carlos Fávaro (Agricultura) e Mauro Vieira (Relações Exteriores) pede o adiamento da entrada em vigor da EUDR a regulação europeia sobre commodities livres de desmatamento.
Ameaça no Cerrado
O relatório Ingrediente Secreto lembra que o Cerrado é um extenso bioma composto de campos, veredas, savanas e matas que sustentam 5% das espécies do planeta e funcionam como um importante sumidouro de carbono. A Earthsight destaca que o Cerrado também está no epicentro de um violento processo de expansão agrícola que destruiu metade de sua vegetação nativa nas últimas décadas. “Em 2023, a maior parcela do desmatamento do Cerrado se concentrou no estado da Bahia, onde as três empresas investigadas recentemente pela Earthsight cultivam soja em centenas de milhares de hectares: o Grupo Horita, o Grupo Franciosi Agro e o Grupo Mizote”, aponta a investigação.
De acordo com a ONG, a análise de dados de satélite disponibilizada pelo MapBiomas sugere que a Franciosi Agro e a Mizote desmataram mais de 23 mil hectares de vegetação nativa do Cerrado desde janeiro de 2021. Entre março de 2022 e maio de 2023, 5.778 hectares de desmatamento foram detectados na fazenda Barra Velha, de propriedade da Mizote, localizada no município de Correntina e usada para produção de soja e algodão. “Embora a agência ambiental da Bahia, Inema, tenha autorizado a limpeza de 2.995 hectares em Barra Velha para expansão agrícola, a Earthsight não conseguiu localizar as licenças necessárias para os 2.783 hectares restantes desmatados, sugerindo que esse desmatamento foi ilegal. O Observatório da UE classifica partes da fazenda como florestas em dezembro de 2020, incluindo partes da área desmatada pela Mizote. Imagens de satélite de alta resolução obtidas pela Earthsight confirmam que trechos de floresta densa estavam entre as áreas desmatadas”, afirma o relatório.
A ONG aponta que algo semelhante aconteceu na Fazenda Santa Paula, da Mizote, em Barreiras. Entre janeiro de 2022 e maio de 2023, cerca de 5.500 hectares de vegetação nativa foram destruídos, de acordo com o MapBiomas. “Durante a visita da Earthsight à região no início de junho de 2023, nossos investigadores documentaram incêndios extensos na propriedade. No entanto, só conseguimos identificar licenças para a limpeza de 2.869 hetares em Santa Paula durante o período de 2022-2023, revelando um padrão aparente de conversões ilegais de terras nas fazendas de soja da Mizote”, destaca a investigação. De acordo com a Earthsight , a Mizote informou que havia obtido as licenças necessárias para todas as conversões em suas fazendas, mas não forneceu nenhuma evidência para comprovar essa afirmação. A Mizote recebeu inúmeras multas do Ibama, totalizando mais de R$ 5,8 milhões entre 2018 e 2021; a Mizote disse que está contestando todas as multas. De acordo com a Earthsight, a soja dessas fazendas da Mizote deve ser considerada não compatível com a EUDR devido à proibição do regulamento sobre desmatamento legal e ilegal após dezembro de 2020.
Milhares de hectares de vegetação nativa — parte da qual classificada como floresta pelo Observatório da UE — também foram desmatados dentro de propriedades da Franciosi Agro no oeste da Bahia após a data limite da EUDR de 31 de dezembro de 2020. Em 2022, o grupo obteve autorização do Inema para desmatar 2.543 hectares em sua fazenda Grande Leste, em São Desidério. Entre março e julho de 2022, a ONG Aid Environment detectou 62 alertas de incêndio e 1.928 hectares de vegetação desmatada dentro da fazenda. Ao norte da Grande Leste. fica o complexo da fazenda Santa Isabel, comprado pela Franciosi Agro em 2020. É composto por mais de 20 propriedades nos municípios de Luis Eduardo Magalhães e Barreiras, “com várias delas compartilhando o mesmo nome ou referidas de maneiras variadas em diferentes documentos, tornando o desmatamento e as ilegalidades mais difíceis de identificar”, conforme o relatório da Earthsight.
Entre junho e agosto de 2021, 1.902 hectares de desmatamento foram detectados no complexo da fazenda Santa Isabel, incluindo dentro de áreas protegidas reconhecidas como reservas legais, áreas dentro de propriedades rurais que os produtores são obrigados a preservar de acordo com o Código Florestal Brasileiro. De acordo com a lei, as reservas legais no Cerrado devem representar pelo menos 20% da área total de uma fazenda. A ONG afirma, no entanto, que, em 2021, líderes do agronegócio do oeste da Bahia pressionaram com sucesso o governo estadual para permitir que eles suprimissem vegetação nativas nas reservas legais dentro de suas fazendas e as realocassem para outras áreas, mesmo que as reservas originais ainda estivessem intocadas.
Isso efetivamente permitiu, de acordo com a investigação da ONG, que eles desmatassem a vegetação nativa do Cerrado dentro de suas fazendas, transferindo suas obrigações de conservação para áreas completamente diferentes. “Embora a regulamentação tenha sido revogada em 2022 após uma contestação legal pelo Ministério Público da Bahia, esses produtores não foram obrigados pelo Inema a restaurar suas reservas legais em seus locais originais. Com isso, o Ministério Público da Bahia decidiu abrir inquéritos civis contra diversas agroindústrias – entre elas a Franciosi Agro – o que pode acabar obrigando-as a recompor as reservas legais dentro dos limites de suas fazendas, além de preservar aquelas que já tenham estabelecido em outras áreas”, destaca o relatório.
A Investigação da Earthsight sobre a soja também alcança o Grupo Horita, outro gigante do agronegócio no oeste da Bahia. De acordo com o relatório, o Grupo Horita também teve uma participação na perda do Cerrado: “entre 2002 e 2019, os proprietários do Horita foram multados em quase R$ 22 milhões pelo Ibama devido a violações ambientais”. O Inema encontrou mais de 11.mil hectares de desmatamento aparentemente ilegal entre 2012 e 2018 na fazenda Centúria do Horita, no município de Estrondo. Embora esse desmatamento tenha ocorrido antes da data limite de dezembro de 2020 da EUDR, sua natureza ilegal faz com que a soja produzida nesta fazenda não esteja em conformidade com a regulamentação.
O relatório Fashion Crimes, publicado pela Earthsight em abril de 2024, expôs evidências de grilagem de terras contra o Grupo Horita na produção de algodão. Horita é acusado pelo Ministério Público da Bahia de adquirir ilegalmente uma propriedade de 2.169 hetares – fazenda Alegre – na comunidade tradicional de fundo e fecho de pasto de Capão do Modesto, no município de Correntina.A área está sendo usada como reserva legal para a fazenda de soja e algodão Sagarana de Horita, a quase 150 km de distância.
Respostas e conclusões
A Earthsight destaca que, apesar de vínculos com desmatamento, grilagem ou violência contra comunidades tradicionais no Cerrado, tanto a Horita quanto a Franciosi Agro são certificadas pela Round Table on Responsible Soy (RTRS) – um esquema de certificação que visa garantir que as cadeias de fornecimento de soja sejam éticas e sustentáveis. “Entretanto, como mostra esta investigação, falhas no padrão e nos processos da RTRS correm o risco de facilitar a lavagem verde de desmatadores do Cerrado”, aponta o relatório. Em resposta às descobertas da Earthsight, a RTRS suspendeu a certificação da Horita e da Franciosi Agro enquanto realiza uma investigação sobre sua conformidade.
Até o lançamento da investigação, nesta quinta (26/09), o Plukon Food Group e o Intermarché não haviam respondido aos pedidos de comentários feitos pela Earthsight. O Carrefour afirmou ter iniciado uma investigação em resposta às descobertas da ONG. Edeka, Albert Heijn e De Heus enfatizaram seus compromissos com os direitos humanos em todas as suas cadeias de suprimentos e com o fornecimento de soja sustentável. A Edeka disse à Earthsight que pretende garantir cadeias de suprimentos de soja livres de desmatamento e conversão a partir de 2025.
O supermercado Albert Heijn afirmou que, desde 2015, toda a soja em suas cadeias de suprimentos foi coberta por créditos da Round Table on Responsible Soy (RTRS) – um padrão voluntário de sustentabilidade. A Edeka disse à Earthsight que pretende expandir seu uso de soja certificada pela RTRS, mas não especificou um prazo para essa meta. A De Heus disse que se comprometeu a usar 100% de soja certificada pela RTRS ou equivalente desde 2015, e a usar apenas soja certificada para a produção da empresa na Europa desde 2019. A empresa não esclareceu se conseguiu implementar esse compromisso.
Em resposta às descobertas da Earthsight, o McDonald’s France negou comprar soja de fazendas brasileiras ligadas ao desmatamento e ilegalidades. A empresa afirma que toda a soja usada para alimentar os frangos do McDonald’s France foi certificada como não-OGM e, portanto, segregada, e que a soja em sua cadeia de suprimentos originária da América Latina é certificada pela ProTerra. A Rede McDonald’s na Alemanha, Holanda e Reino Unido não respondeu à solicitação de comentário.
Na sua conclusão, o relatório alerta que, neste período que antecede a entrada em vigor do EUDR, prevista para janeiro de 2025, “setores econômicos com algumas das maiores pegadas de desmatamento do mundo e um longo histórico de violações de direitos humanos estão tentando atrasar e enfraquecer” a nova legislação europeia.
A Earthsight recomenda que a União Europeia deve resistir aos pedidos de adiamento e aplicar o EUDR no prazo estabelecido; ampliar o EUDR para abranger não apenas florestas, mas também outras áreas arborizadas (Other Wooded Land, OWL, em inglês), como o Cerrado, a fim de evitar efeitos colaterais indesejados em outros ecossistemas; e não tratar as certificações fornecidas por esquemas voluntários como prova do cumprimento da lei para assegurar a aplicação efetiva e integral do EUDR. “A investigação da Earthsight mostra como, sem o EUDR, as cadeias produtivas da UE continuarão a impulsionar abusos ambientais e de direitos humanos em todo o mundo”, afirma o relatório.
Relacionadas
Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade