Por uma memória esportiva sem ódio nem dor

Incluir a tolerância e a boa convivência na formação dos torcedores pode ajudar a desatar o nó da violência no futebol, mas precisa começar - de preferência, pelas crianças

Por Gustavo de Almeida | ODS 16 • Publicada em 11 de março de 2022 - 08:45 • Atualizada em 1 de dezembro de 2023 - 18:12

Homens carregam ferido em conflito de torcedores antes do jogo Cruzeiro x Atlético-MG, no domingo (6): um morto. Reprodução

O futebol é para mim uma espécie de “cordão de prata” da infância: é quando criança que definimos nosso time, e na minha geração, com o nosso pai – a parte que nos levava ao estádio sempre lotado. Esse “cordão de prata”, aquele mito que durante a noite “prende” nossa alma ao corpo e nos deixa sonhar com segurança, nos conduz sempre ao que um dia fomos e ao que somos em essência.

Somos o nosso pai, somos a nossa infância, o primeiro subir na arquibancada, o primeiro urro de gol, os ídolos.

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E ao longo da vida, vamos nos tornando outra pessoa, alguém novo, com preconceitos, limitações, conquistas, conhecimentos. O “cordão de prata”, porém, continua lá: a memória do pai ao nosso lado, o cheiro do medo quando o outro time ataca. Não nos esquecemos.

Por sorte, são pouquíssimas as memórias que tenho de violência relacionada ao futebol na minha infância. Uma briga nas cadeiras inferiores durante o Flamengo 0 x 0 Botafogo do tri de 1979 (aquele em dois anos), algumas correrias, e aquele momento que sempre aconteceu no velho Maracanã, quando alguém a uns 50 metros discute com outra pessoa e todo mundo começa a se levantar – metade desses não sabe nem por que levantou.

Mas tudo mudou muito, junto com o mundo – aquele futebol não cabia mesmo nesse mundo. Ou talvez o contrário.

Em 2022, tivemos um morto numa briga campal entre torcedores de Cruzeiro e Atlético-MG; o goleiro do Bahia apedrejado e com risco de perder a vista; o volante Villasanti, do Grêmio, internado com traumatismo craniano devido a uma pedrada; e um a torcida do Paraná Clube invadindo o campo depois da queda do time para a segunda divisão do Estadual. Fico imaginando qual a memória que as crianças torcedoras desses times guardarão para a vida adulta.

O volante Villasanti e a pedra que o feriu, no ataque ao ônibus do Grêmio, que provocou adiamento do Grenal 435. Reprodução do Twitter
O volante Villasanti e a pedra que o feriu, no ataque ao ônibus do Grêmio, que provocou adiamento do Grenal 435. Reprodução do Twitter

Por conta desses fatos tristes, escrevi um fio no Twitter sobre o meu procedimento com meu filho de seis anos: ensino a ele que os quatro clubes do Rio têm grandes histórias. O nosso, claro, é o Flamengo. Ficamos chateados quando o Flamengo perde, e felizes quando ganha. Mas reconhecemos o valor de todos.

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Conto para ele que o Vasco foi o primeiro clube de futebol a aceitar pessoas da classe trabalhadora. Falo de Garrincha, Nilton Santos e Didi, e conto que em 1957 esse Príncipe Etíope caminhou, descalço, do Maracanã até General Severiano a fim de pagar promessa que fez para seu Botafogo ser campeão. Já falei até de Nelson Rodrigues e do Fluminense lendário, de Castilho, Píndaro e Pinheiro. Um dos melhores amigos (e xará) dele é tricolor, e nas vezes recentes em que perdemos o Fla-Flu e ele mostrou raiva, eu digo: “Cara, pelo menos seu amigo está feliz; na próxima a gente ganha”.

Ele me chega da escola outro dia e diz que o amiguinho vascaíno se recusou a sentar ao lado dele por causa de um estojo com o escudo do Flamengo. Conta que o amiguinho – 6 anos – fala que “odeia  o Flamengo”. Uma criança de seis anos falar “odeio” é meio triste, a menos que ela esteja se referindo a pedrinha no sapato ou feriado com chuva. Claro que deu desânimo – mas no fundo talvez em algum momento da minha vida eu tenha aprovado esse tipo de coisa. Restou dizer: “Tudo bem, João, você vai ensinar a ele que ser amigo é mais importante”.

Não quero ser “politicamente correto” – e não tem nada a ver com isso. Só não quero que meu filho faça um curso de ódio através do futebol – e se o preço disso for ele não torcer tanto pelo Flamengo (o que acho difícil), que seja.  Aqui não se trata de ideologia ou de “lacração”, como se fala no Brasil de extrema polarização dos dias de hoje. Trata-se de princípios – e isso é até coisa de conservador, nunca de reacionário – e valores básicos da convivência humana.

Precisamos de Princípios, mais do que nunca. Pouco importa qual partido político ou ideologia defenda o Princípio. É vexaminoso que alguém ache que o combate ao racismo seja “coisa de esquerda”. Não é. É algo universal. Usei o futebol para isso, com meu filho, e deu certo – me lembrei que meu primeiro ídolo era negro, o grande Geraldo Assobiador. Aliás, foi a primeira pessoa conhecida que chorei a morte, em 1976, e lá se vão mais de 40 anos. Assim, escolhi o impressionante Gérson, não o Canhotinha de Ouro, mas o meia que hoje está no Olympique de Marselha. O do “vapo-vapo” que meu filho começou a imitar sozinho.

Meu filho admira o negro Gérson a tal ponto de escrever cartas para os franceses do Olympique pedindo que “devolvam o Gérson, já que vocês não estão escalando”.

(Infelizmente não dará mais certo, já que, conforme o previsto, Gérson já está jogando o fino. Vai ser ídolo lá também, óbvio.)

Mostrei uma foto do Gérson com a camisa do Fluminense – “veja, João, ele já jogou no time do seu amigo”. E ficou tudo bem.

O futebol não foi feito pro ódio. ÓBVIO que foi feito para a rivalidade e a zoação. É claro que recebi centenas de memes depois dos vices contra Palmeiras (2021) e Atlético Mineiro (2022) e é assim mesmo.

Mas me assusta que muitas vezes a linha seja desnecessariamente cruzada – que logo a coisa se transforme em ameaça, xingamento, pedradas, e até mesmo no próprio clube, como foi o caso do Bahia. Não se enganem: tudo isso é o ódio.

Não precisamos ensinar o ódio, já nascemos com ele. É o ódio da perda para o outro, da fome, da dor, da guerra, é o ódio quando se sente frio ou calor, é o ódio do diferente, do que pensa outra coisa, do que faz outra coisa e que você não aprova.

A gente já conhece bem, não é necessário que o futebol nos ensine. Não preciso odiar um vascaíno – nunca. Posso respeitar, sacanear pelas quedas à segunda divisão, zoar quando o Flamengo vence, mas jamais deixar de dizer que o Vasco é gigante, que teve Roberto Dinamite, Juninho Pernambucano, Ademir Queixada, Barbosa, Fontana, Vavá.

E teve Aldir Blanc e tem Paulinho da Viola e Martinho da Vila. Não posso odiar nada que o Paulinho da Viola ame, seria um contrasenso tenebroso.

Enfim, surpreendentemente, eu que tenho só 2.500 seguidores, vi minha postagem alcançar cifras inacreditáveis – mais de 900 mil visualizações. Nos meus 15 minutos (ok, foi mais) de “influencer”, recebi algumas respostas – ok, a minoria – de rubro-negros mais ou menos assim:

“Tá maluco, só tem um grande no Rio”

“Tá de sacanagem kkkkk teu filho vai virar vascaíno”

“Chamar o Foguinho de grande é brincadeira hahaahah”

Tentei explicar que o que define grandeza é a História. Fiquei feliz em ver que mais de 90% das respostas eram favoráveis, de vários torcedores. E sim, de vários outros torcedores também li hostilidades.

Cabe deixar claro: eu me reconheço nesses malucos que me atacaram. Já xinguei, já fui pra janela, já fiz piadas que diminuíam a história. Mas como eu disse no fio, “de idiota já basta eu”. Daí a importância de cada vez mais fazer nossos filhos entenderem a grandeza da história e dos princípios, de dar a eles uma herança que os faça avançar a uma sociedade melhor, a uma vida melhor, com mais paz, mais esporte, mais saúde – e não a loucura e a hostilidade que alimentamos no estádio, na escola, nas ruas.

E depois, filho, é você quem vai me ensinar.

Este não é um texto sobre militância ou coisa do tipo. Se você é militante, ok, cada um sabe de sua vida. Mas entendo hoje que a luta contra o ódio e contra o racismo é bandeira obrigatória de TODOS os que participam do debate público hoje em dia, seja de direita ou de esquerda.

Volto ao Geraldo, meu primeiro ídolo. Ele me ensinou o que era morte – aos oito anos de idade, quando partiu por causa de uma operação de amígdalas. E depois veio Adílio e eu pensava que Deus tinha me devolvido o Geraldo (tipo naquela música do João Nogueira, “troquei de mal com Deus porque levou meu pai”). Para mim, foi extremamente importante ter o Geraldo como ídolo antes do Zico, porque primeiramente enxerguei um negro como parte da minha visão de vida, como um irmão.

Outro dia, vimos um Fla-Flu e mais uma vez o nosso escrete da Gávea perdeu. Terceiro Fla-Flu seguido. Vejam bem: é tarde para mim. Não tenho mais cura. Mas eu disse pro João: “Pelo menos seu amigo JF vai ficar feliz, né? E é assim mesmo, outro dia a gente ganha”.

Não estou querendo biscoito e nem uma medalha. Isso nada mais é do que minha obrigação. Estou pedindo apenas que essa ideia seja propagada. Que nossas crianças cresçam curtindo zoar o amigo, apostar vestir camisa do outro (Zico, deus rubro-negro, já vestiu a camisa do Vasco, no jogo em homenagem ao Dinamite), sem estresses, traumas, nem brigas.

Futebol é um cartão postal que os filhos guardam para sempre, um cartão postal do local em que o pai vive nos campos de nossa memória. Para mim, é um cartão postal de subir a rampa da arquibancada do Maracanã, do cachorro-quente da Geneal, da fila para comprar ingresso, do Zico, do Nunes na madrugada de Tóquio, do Adílio. É esse cartão-postal de um senhor que partiu aos 55 anos depois de viver anos inesquecíveis com os filhos de 1978, gol do Rondinelli, até 1983, o tri brasileiro sobre o Santos. Costumo usar uma poesia: que meu pai se foi em 1984 porque o Zico também foi embora, para a Udinese. Fora da poesia, foi um infarto com AVC.

E o que mais tenho dele é a convivência com o Flamengo do Zico (me levou a escrever um livro jamais publicado chamado “O velho e o Zico”, à la Hemingway), aqueles anos incríveis de muita alegria. Por que nossos filhos devem ter ódio na memória? Para quê? Para que ensinar isso?

A culpa seguramente não é da criança, nunca. E tenho esperança. Vou imprimir uma foto do Zico com a camisa do Vasco ao lado do Roberto e pedir pro João dar de presente ao amigo. E mostrar que é possível brincar, gritar da janela (quando perdemos pro Palmeiras ouvi muitos gritos na janela aqui em Botafogo e eu acho que É ASSIM MESMO), zoar, sem necessariamente ensinar que aquele outro torcedor é um inimigo mortal a ser odiado.

Gustavo de Almeida

Jornalista, tem passagem por LANCE!, Extra, Globo.com, Infoglobo, Jornal do Brasil e revista ISTOÉ. Trabalha com consultoria política e escreve roteiros de cinema e séries. Passou cinco anos como assessor de imprensa da Polícia Militar do Rio de Janeiro, no auge das UPPs. Escreveu nos livros "Ser Flamengo, Paralelos" e "1981 - O primeiro ano de nossas vidas" (de Mauricio Neves). Tem um livro ainda não publicado intitulado "O Velho e o Zico", sobre sua relação com seu pai e o maior jogador de todos os tempos.

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