Polícia da Bahia mata uma pessoa negra a cada sete horas

Monitoramento da Rede de Observatórios de Segurança mostra que estado mais negro do Brasil (79,4%) tem o maior porcentagem de vítimas negras da letalidade policial (94,6%)

Por Oscar Valporto | ODS 10ODS 16 • Publicada em 7 de novembro de 2024 - 05:01 • Atualizada em 12 de novembro de 2024 - 09:50

Pessoas negras, jovens principalmente, são as principais vítimas da letalidade policial de acordo com monitoramento da Rede Observatórios: a Polícia da Bahia mata uma pessoa negra a cada sete horas (Ilustração: @alb.art / Rede de Observatórios de Segurança)

Estado com a maior porcentagem de população negra do país (79,7% de pretos e pardos, de acordo com o IBGE), a Bahia também tem o maior índice de vítimas negras da letalidade policial. Em 2023, foram 1702 pessoas mortas pela polícia baiana e a população negra representou 94,6% do total (1610), uma vítima a cada sete horas. A matança de pretos e pardos pela polícia baiana faz parte da quinta edição do boletim Pele Alvo – Mortes Que Revelam Um Padrão, elaborado pela Rede de Observatórios da Segurança, que monitora a violência em nove estados brasileiros. Das 3.167 vítimas da letalidade policial com identificação de raça e cor nestes estados,  87,8% eram pessoas negras.

Claramente o uso da força letal para o enfrentamento a violência urbana não tem funcionado porque a Bahia tem cinco entre os 10 municípios em que a polícia mais matou e, ainda assim, nosso estado continua com a criminalidade em alta

Ana Paula Rosário
Pesquisadora da Rede de Observatórios de Segurança na Bahia

A rede realiza esse levantamento desde 2019 e a Bahia, presente desde o começo da série histórica, é o único estado em que o número de pessoas assassinadas pela polícia aumentou todos os anos. Em 2023, foi único estado entre os monitorados – os outros são Amazonas, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo – a ultrapassar a marca de mil vítimas da letalidade policial. A polícia baiana, a que mais mata, foi responsável por quase a metade dos casos (47,5%) de pessoas negras mortas em ações policiais de todos os nove estados sob monitoramento da Rede de Observatórios da Segurança.

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Apenas em uma semana de 2023, de 28 de julho a 4 de agosto, foram noticiadas 32 mortes decorrentes de intervenção policial na Bahia. A rotina garantiu o topo do ranking da Rede de Observatórios de letalidade policial ao estado pelo segundo ano consecutivo; em 2022, a Bahia havia chegado, pela primeira vez, à liderança essa trágica lista, com um total de 1.465 vítimas. “Claramente o uso da força letal para o enfrentamento a violência urbana não tem funcionado porque a Bahia tem cinco entre os 10 municípios em que a polícia mais matou e, ainda assim, nosso estado continua com a criminalidade em alta”, afirma a pesquisadora Ana Paula Rosário, graduanda em Ciências Sociais e integrante da rede na Bahia.

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No levantamento da rede, os municípios baianos no ranking da letalidade policial são – pela ordem, em números absolutos – Salvador (458 mortes), Feira de Santana (78), Jequié (74), Eunápolis (33) e Camaçari (32). De acordo com a 18º edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2023, das 10 cidades com as maiores taxas de mortes violentas intencionais (por 100 mil habitantes) registradas no Brasil, seis são baianas: Camaçari (90,6), Jequié (84,4), Simões Filho (75,9), Feira de Santana (74,5), Juazeiro (74,4) e Eunápolis (70,4) – o estado é o segundo com maior índice de vítimas de morte violenta atrás apenas do Amapá e o primeiro em número absoluto.

São números chocantes: 243 crianças e adolescentes entre 12 a 17 foram mortos em ações policias. Não são jovens mortos em guerra de facções. É a força do estado matando pessoas tão jovens. Não é possível que o país não tenha outra forma de tratar seus jovens, mesmo aqueles, envolvidos com a criminalidade, que não seja na bala, no tiro. Isso é uma vergonha para o Brasil: esse dado deveria chocar e fazer a gente parar tudo o que está fazendo para pensar como mudar isso

Silvia Ramos
Cientista social e coordenadora-geral da Rede de Observatórios de Segurança

O ano de 2023 foi também o primeiro da gestão do governador Jerônimo Rodrigues, o terceiro eleito pelo PT, que governa o estado desde 2006 com Jacques Wagner, hoje líder do governo no Senado, e Rui Costa, hoje ministro-chefe da Casa Civil do governo Lula – cada um ficou oito anos no cargo. Sob o governo Rodrigues, preto e médico, a polícia repete o figurino violento. “O caso da Bahia é um escândalo, é inaceitável. Desde que a gente começou a monitorar, houve um aumento de 161% no número de mortes pela polícia. Nenhuma dinâmica explica isso a não ser o fato de que os policiais vão para a rua com a orientação de eliminar os suspeitos e com a certeza de que nada vai acontecer”, enfatiza a cientista social Silvia Ramos, coordenadora-geral da rede de Observatórios.

Ana Paula Rosário lembra que, durante o seu mandato de governador, o hoje ministro Rui Costa definiu como um gol a operação policial que terminou com 12 mortes no bairro do Cabula, em Salvador. “O discurso das autoridades é sempre o mesmo: mais polícia para combater a violência, a lógica é sempre a do punitivismo. De usar a violência para conter a violência”, aponta.

A pesquisadora afirma que o racismo estrutural perpassa as instituições de segurança pública na Bahia – como em outros estados do Brasil – e não vê qualquer sensibilidade das autoridades estaduais para o problema. “É uma situação trágica: a faixa etária das vítimas da letalidade policial está concentrada entre 18 e 29 anos. Há um extermínio da juventude negra”, destaca. De acordo com o monitoramento, 62% das vítimas da polícia da Bahia em 2023 tinha entre 18 e 29 anos. “Cabe a nós, da sociedade civil, ativistas, chamar a atenção dos responsáveis pela segurança. Mas, infelizmente, não temos visto qualquer resultado”.

A letalidade policial desde 2019: Bahia mantém curva ascendente (Tabela: Rede de Observatórios de Segurança)
A letalidade policial desde 2019: Bahia mantém curva ascendente (Tabela: Rede de Observatórios de Segurança)

Racismo enraizado nas corporações

Nos nove estados monitorados (Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo), foram 4.025 vítimas da letalidade. Destas, em 3.169 casos, foram disponibilizados os dados de raça e cor, sendo que 2.782 (87,8%) dos mortos eram pessoas negras. “Não é aceitável nem justificável a morte de uma pessoa negra a cada quatro horas pelas mãos de agentes de uma instituição que deveria zelar pela vida. Nosso objetivo ao ressaltar esses dados é denunciar a urgência de um debate público acerca do racismo na segurança e incentivar o desenvolvimento de políticas públicas que mudem o rumo desta realidade”, afirma a cientista social Silvia Ramos.

Desde 2020, quando foi apresentado o primeiro Boletim pela Rede de Observatórios, o padrão das pessoas mortas por agentes de segurança estaduais se mantém: a população negra – e jovem – é a grande maioria das vítimas. “Ano após ano, vemos a reafirmação de que a violência da polícia tem cor, idade e endereço. São milhares de jovens negros, muitos que nem chegaram a atingir a maioridade, com suas vidas ceifadas sob a justificativa de repressão ao tráfico de drogas”, acrescenta a coordenadora da rede de Observatórios.

É um viés racial muito radical, muito declarado, muito pouco sutil. O que nós vemos nesses números é um racismo extremamente enraizado nas forças de segurança. É um padrão muito repetitivo: ao longo dos anos, aumenta e diminui o número de mortos pela polícia mas, o que não se altera, como o eletocardiograma de um morto, é essa diferença racial, entre brancos e negros. É como o Brasil tivesse escolhido esse caminho e não se importasse

Silvia Ramos
Cientista social e coordenadora-geral da Rede de Observatórios de Segurança

A juventude como alvo também é uma característica da letalidade policial destaca pela cientista social Silvia Ramos. “São números chocantes: 243 crianças e adolescentes entre 12 a 17 foram mortos em ações policias. Não são jovens mortos em guerra de facções. É a força do estado matando pessoas tão jovens. Não é possível que o país não tenha outra forma de tratar seus jovens, mesmo aqueles, envolvidos com a criminalidade, que não seja na bala, no tiro. Isso é uma vergonha para o Brasil: esse dado deveria chocar e fazer a gente parar tudo o que está fazendo para pensar como mudar isso”, desabafa Silvia Ramos em entrevista ao #Colabora.

Nem todas as notícias foram ruins nos números obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) junto às Secretarias de Segurança Pública e órgãos correlatos. Quatro estados registraram reduções significativas na letalidade policial: Amazonas ( 40,4%), Maranhão (32,6%), Piauí (30,8%) e Rio de Janeiro (34,5%) – ainda que, em todos eles, a grande maioria das vítimas seja negra. “Nós temos números mais baixos e mais altos dependendo de cada ano, de cada governador ou de cada contexto, mas eles são permanentemente enviezados racialmente. E é um viés racial muito radical, muito declarado, muito pouco sutil. O que nós vemos nesses números é um racismo extremamente enraizado nas forças de segurança. É um padrão muito repetitivo: ao longo dos anos, aumenta e diminui o número de mortos pela polícia mas o que não se altera, como o eletocardiograma de um morto, é essa diferença racial, entre brancos e negros. É como o Brasil tivesse escolhido esse caminho e não se importasse”, desabafa Silvia Ramos.

População negra na mira da polícia: racismo enraizado nas forças de segurança (Arte: Rede de Observatórios de Segurança)
População negra na mira da polícia: racismo enraizado nas forças de segurança (Arte: Rede de Observatórios de Segurança)

Pela primeira vez, em cinco edições do Pele Alvo, o Rio fechou o ano (2023) abaixo dos mil óbitos. Mesmo assim, é o segundo estado que mais registrou mortes provocadas pela violenta força policial. Desde 2019, o Rio reduziu em 52% o número de vítimas, mas em 2023 ainda foram 871 vidas interrompidas por intervenção de agentes de segurança – 86,9% das vítimas eram negras, ou seja, um caso a cada 13 horas. Com tiroteios e ações policiais violentas noticiadas constantemente, o estado se destaca por uma política de segurança ineficaz, resultando em 403 jovens de 12 a 29 anos mortos em ações policiais.

No Ceará e no Pará, apesar de os dados gerais registrarem leves quedas de 3,3% e 16,0% respectivamente, o número de vítimas negras aumentou, comprovando claramente o perfil do alvo de ações violentas da polícia. “Mais do que mostrar números, aumentos e reduções, este relatório deixa evidente como as políticas atuais de segurança adotadas nos estados tiram vidas, traumatizam famílias e interrompem histórias”, comenta Silvia Ramos.

Além da Bahia, o boletim da Rede de Observatórios da Segurança destaca preocupação com os estados de São Paulo e Pernambuco, onde a tendência de queda da letalidade policial foi invertida. As ações do atual governo, que iniciou o mandato em 2023, provocaram instabilidade no cenário policial de São Paulo com a militarização da Secretaria de Segurança Pública e um aumento de 21,7% no número de mortes causadas pela polícia. “Esse indicador de segurança é extremamente resultante de cadeia de comando: entra o Governo Tarcísio e há um aumento de 21%.”, ressalta a coordenadora da rede.

O boletim destaca que houve uma redução de investimento em programas de prevenção em São Paulo, incluindo o uso das câmeras corporais. O estado interrompeu seu histórico de redução no número de óbitos e registrou no ano passado 510 casos, sendo negras 66,3% das vítimas e 52,3% com faixa etária entre 12 e 29 anos.

Entre os estados monitorados para o boletim Pele Alvo, Pernambuco foi o que registrou o maior aumento no número de mortes, com 28,6% mais vítimas que em 2022. Além disso, o número de pessoas negras mortas pela polícia aumentou 41,0% de um ano para o outro. Ao todo, foram 117 óbitos registrados, o maior número desde 2019, sendo negras 95,7% das vítimas. Apenas em Recife quase dobrou o número de mortes provocada por agentes de segurança e a juventude segue sendo a mais alvejada, tendo apenas entre 12 e 29 anos a maior parcela de casos, 70,9%.

Mais acesso à informação

Nesta edição do boletim Pele Alvo, pela primeira vez todos os estados monitorados responderam às solicitações via LAI no prazo determinado pela legislação. Os autores destacam que, também pela primeira vez, desde 2021 quando passou a integrar o estudo, o Maranhão passou registrar essa informação das vítimas, ainda que em apenas 32,3% dos casos. Mas a ausência desses dados ainda é alta. O Ceará teve uma leve melhora, mas 63,9% das vítimas não têm raça e cor reconhecidas; no Amazonas, em seu primeiro ano de monitoramento, esses são 54,2% dos casos; no Pará, os não informados representam 52,3% do total.

Ao todo, são 856 vítimas sem registro de dados de raça e cor nos nove estados que fazem parte do boletim. “A transparência é fundamental para uma análise qualificada da realidade a fim de que o poder público possa direcionar seus esforços para uma sociedade verdadeiramente segura para todos”, aponta trecho da publicação da rede, uma iniciativa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), do Rio de Janeiro, e integrada também pelo grupo de pesquisa Ihargas, do Amazonas; a Iniciativa Negra Por Uma Nova Política de Drogas, da Bahia; o Laboratório de Estudos da Violência (LEV), do Ceará; a Rede de Estudos Periféricos (REP), do Maranhão; o Grupo de Pesquisa Mãe Crioula, do Pará; o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), de Pernambuco; o Núcleo de Pesquisas sobre Crianças, Adolescentes e Jovens (NUPEC), do Piauí; e o Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP), de São Paulo.

Os dados disponíveis também revelam que a juventude é a parcela da população mais vitimada pela letalidade gerada por ação policial — com a faixa etária de 18 a 29 anos concentrando a maior quantidade de casos. No Ceará, por exemplo, eles representam 69,4% do total de vítimas. A vulnerabilidade da juventude negra perante a violência de agentes de segurança, durante ações policiais e confrontos diretos, é ainda mais evidenciada com outro dado alarmante: entre os nove estados analisados, 243 dos mortos por policiais eram crianças e adolescentes de 12 a 17 anos. O Boletim Pele Alvo destaca ainda que, diante de um cenário tão adverso à juventude negra, movimentos sociais de favela surgem como espaços de resistência e acolhimento para este público. “São organizações compostas pelo perfil mais vitimado pela polícia, que encontra na cultura, no esporte e no lazer alternativas para enfrentar as vulnerabilidades e promover dignidade e bem viver em comunidades violentadas”, frisa a publicação.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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