É meio assim, na frieza. Imagine: um agente policial mata um suposto “suspeito”, alegando legítima defesa e declarando que houve resistência à prisão. A partir dessa cena, muitas coisas podem – ou não – ter acontecido. Quem depõe? Aqueles que estavam presentes, em sua maioria, policiais. O episódio é tipificado como “auto de resistência”. Quem esmiúça agora esses casos e a relação Estado-família que se dá depois do acontecido é a pesquisadora Juliana Farias, que está lançando o livro “Governo de mortes: Uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro”.
Em uma conversa por telefone, a escritora detalha os fatores que a motivaram dar vazão a um dos temas mais urgentes para a população negra e periférica do país. Ao escrever “Governo das Mortes”, Juliana apresenta uma profunda investigação sobre as engrenagens da atuação cotidiana do Estado que administra as mortes de moradores de favelas do Rio de Janeiro. Só neste ano, o Instituto de Segurança Pública do Rio contabilizou o maior número de autos de resistência registrados em um mês de fevereiro desde o início da série histórica, em 1998. Foram 164 casos, uma média de quase seis por dia, ou um a cada quatro horas. De janeiro a setembro, o número de mortes em decorrência de operações policiais chegou ao patamar de 930. Foi a pesquisa da escritora que embasou o roteiro do documentário “Auto de Resistência’’, dos diretores Natasha Neri e Lula Carvalho, disponível desde 2018.
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Veja o que já enviamosVocê está lançando um livro que reúne casos de auto de resistência e explica como se dá a dinâmica “estado-família”. Vamos começar do início: o que são os autos de resistência?
É um registro burocrático, uma invenção da época da ditadura militar, para dar retorno sobre homicídios que tenham acontecido em decorrência dessa ação policial. É uma forma de narrar essa morte, uma forma burocrática, produzindo um documento que é o primeiro a respeito daquele fato. E eles vão dizer que o disparo que matou alguém foi feito para eles se defenderem [a polícia]. Em geral, é dito que a pessoa que morreu estava armada, trocando tiros com a polícia e que essa pessoa não respondeu ao comando, resistiu à ordem. Por isso auto de resistência.
Seria também um auto de proteção?
Se a gente pensa hoje, quando tem uma operação, aqueles agentes tem que dizer, na delegacia, que foi uma morte que aconteceu em decorrência de uma operação da polícia militar ou civil. Esse registro necessariamente tem que acontecer numa delegacia, sendo aquela a primeira narrativa sobre a morte. E essa primeira narrativa é dada pelos agentes da Secretaria de Segurança Pública, que são os envolvidos na feitura deste documento. É importante sempre lembrar: o auto de resistência é um documento. No Rio, vira papel oficial. Essa primeira forma de contar a história daquela morte, além de ser uma forma contada por quem atirou, é contada por alguém que tem respaldo por ser um agente do Estado, pra só depois as famílias das vítimas reverterem, ou não, essa versão dos fatos.
Em julho, os procedimentos ligados à situação dos autos de resistência tiveram algumas mudanças no Rio, como a prestação de socorro, o modo do registro, a coleta da cápsula, etc. Essas novas regras são benéficas ou essa possível rede de apoio entre os agentes pode continuar?
Eu entendo que sim. De fato, no Rio, em função da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, prevista na Constituição), que até pela demanda dos movimentos passou a ser chamada de “ADPF das Favelas’’, algumas mudanças foram implementadas, mas não tem como garantir que isso aconteça em todas as localidades. Às vezes tem lugares que são mais visados em termos midiáticos e podem passar a ter um “respiro” durante um, dois dias ou até uma semana. Os movimentos de favelas passaram a divulgar a queda de casos de homicídios, mas ao mesmo tempo tem outras denúncias pipocando de operações, de novas mortes. Nesse momento não há como celebrar. Estou cética.
Uma coisa que é demanda antiga dos movimentos de familiares é que a perícia seja feita à parte, o que já garantiria uma leitura mais precisa.Voltando à questão da primeira cena, a perícia é fundamental. Quando desfeita a cena do crime, que acontece repetidas vezes por conta da simulação, a vítima já chega morta no hospital. Então eles sabem que a pessoa está morta, levam assim mesmo e desfazem a cena do crime.
Sua trajetória evidencia a urgência do tema. Você assina a criação do documentário “Auto de Resistência”, com a Natasha Neri. O que faz uma pessoa com características como as suas, sendo uma mulher branca, classe média, querer abordar o tema?
Conheci a Natasha quando estávamos no doutorado da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e ela sabia desse trabalho que eu tinha próximo às famílias dessas vítimas. Quando surgiu a possibilidade dela rodar o filme, conversou comigo para que escrevêssemos o roteiro, mas eu já tinha defendido minha tese. O livro sai seis anos depois dessa apresentação, que foi em 2014. Em 2015 escrevemos, fizemos uma fusão da minha pesquisa com as pesquisas às quais ela teve acesso, sobretudo em relação a inquérito policial e processos judiciais. O que ela não tinha era o contato com as famílias. Sabíamos que não fazia sentido sem que elas não estivessem.
Foi um presente, pois é uma possibilidade de alcançar um público que tanto o livro quanto o artigo não alcançam. Tem também o fator de ver uma tese de doutorado publicada, ainda mais com esse assunto. É uma forma de me posicionar e bancar determinados temas de forma direta. Ao longo dos anos, recebi muitas críticas de colegas por ser uma tese “enviesada”, que era complicado por “tomar partido das famílias” etc.
[g1_quote author_name=”Juliana Freitas” author_description=”Pesquisadora” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]As Mães de Acari, considerado o primeiro movimento de mães no país, nasceu em 1990. Se pensarmos de lá pra cá, 30 anos se passaram, e o legado para as outras mães é muito bonito. A partir de 2013 parece que as pessoas se deram conta da quantidade de violências produzidas pelo Estado
[/g1_quote]Ainda temos pessoas na universidade acreditando que a ciência só pode emitir posições neutras, quando na verdade essa neutralidade não existe. O que existe, na verdade, são as pesquisas que explicitam esse posicionamento e aquelas que não, mas todas têm motivação política. A academia é elitista, branca, portanto racista e eu digo isso como mulher branca que aprendeu a ser racista, que viu alguns tipos nesse ambiente e não só na criação. Sabemos que tem uma herança colonial, relacionada a produção do saber, do conhecimento, de quem pode falar ou não.
O livro é uma afirmação em relação a isso? Sim, fiz uma pesquisa próxima; sim, eu tenho lado.
Foi com essas famílias, em sua maioria de mulheres negras e de favela, que aprendi a olhar para o Estado. Se hoje posso dizer que faço antropologia do Estado, é por conta dessas mulheres. Não foi nos livros ou nas aulas. Elas me apresentaram o Estado. Poder publicar isso me deixa honrada, ainda que no formato acadêmico, pois não tem outro jeito. E isso tudo depois de um amadurecimento, já no meu segundo pós-doutorado.
Você traz a importância de pesquisar “com” e não apenas fazer análises sobre. Acredita que, não fossem essas mobilizações de mães espalhadas pelo Brasil, as denúncias poderiam ser esquecidas?
Com certeza. Pra mim, é evidente a relevância da luta para que as denúncias tenham ganhado força no espaço público. As Mães de Acari, considerado o primeiro movimento de mães no país, nasceu em 1990. Se pensarmos de lá pra cá, 30 anos se passaram, e o legado para as outras mães é muito bonito. A partir de 2013 parece que as pessoas se deram conta da quantidade de violências produzidas pelo Estado.
E por quê? Por conta da cobertura das mídias alternativas, presente nos protestos, passeatas e também das mídias comunitárias, seja nos jornais e rádios nas favelas. .
Coletivos de fotógrafos, cinegrafistas, video-makers, isso começa a crescer a partir de 2000, com o aumento do acesso aos equipamentos de tecnologia por essas pessoas. Não dá para dissociar nessa luta, por exemplo, quando a Anistia Internacional constrói uma sede no Rio de Janeiro e emplaca a campanha #JovemNegroVivo, tendo essas mães começado com essa pauta desde lá atrás.
Mesmo que algumas tenham conseguido fazer suas denúncias no circuito nacional e também internacional, demorou muito para que obtivesse apoio em um círculo que vá além dos moradores de favelas e das famílias.
Nós somos governo de mortes?
Não diria que nós, eu e você. Mas vivemos em um país, que não é de agora, uma forma do Estado se posicionar e relacionar com as periferias, favelas, populações negras e indígenas, através da violência. Eu acho que não à toa, o trabalho de [Achille] Mbembe está fazendo tanto sentido, discorrendo sobre necropolítica (conceito que questiona os limites da soberania quando o Estado escolhe quem deve viver e quem deve morrer).
Essa é a política, uma política de morte, não é uma falha, um acordo. E a história dessa nação já começa com genocídio e estupro. Isso nunca se enterrou, só se atualiza. Infelizmente.