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‘’O Brasil nunca vai solucionar os desaparecimentos’’, diz criador do principal canal de desaparecidos no país

Produtor Anderson Jesus, com mais de 10 anos dedicados a contar histórias, defende banco de dados nacional e mais empatia com parente de vítimas

ODS 16 • Publicada em 19 de julho de 2024 - 09:42 • Atualizada em 22 de julho de 2024 - 15:24

Com mais de uma década a serviço de contar histórias de desaparecidos no Brasil, o produtor Anderson Jesus parece não desistir desta missão. Munido de equipe aguerrida, criou o maior canal sobre o assunto no Youtube e está longe de fazer um trabalho ligado ao sensacionalismo. Ali, mais de um milhão de visualizações nos produtos disponibilizados em vídeo e cerca de 126 mil pessoas se conectam às histórias que, infelizmente, não sabemos o fim – até que alguém seja encontrado. 

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No Brasil, segundo dados recentes publicados pelo Anuário de Segurança Pública, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança, o país registrou um crescimento de 3,2% nos desaparecimentos em 2023, em relação a 2022. De 77.823, foi para a casa dos 80.317. Não há espaço para que a esperança esmoreça, apesar do enfraquecimento das ações e da falta de efetividade pública vista na temática, que só encontra força e eco pelo trabalho das ONGs de mães e familiares (sem perder de vista o apoio do público). 

Anderson Jesus recebe prêmio da Secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo: 10 anos dedicados a denunciar casos de desaparecimento (Foto: Divulgação - 07/12/2023)
Anderson Jesus recebe prêmio da Secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo: 10 anos dedicados a denunciar casos de desaparecimento (Foto: Divulgação – 07/12/2023)

Na conversa, o produtor relembra os motivos de criação do canal, reflete sobre a necessidade de um outro olhar dos agentes públicos de segurança atuantes em casos de desaparecimentos (forçados ou voluntários), mas ainda assim é realista: ‘’O Brasil nunca vai solucionar os desaparecimentos’’. 

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Leia abaixo a entrevista para entender os fatores que o levam à essa resposta e sua profundidade. 

Edu: Por que se debruçar sobre esse assunto?

Anderson: Eu comecei nesse assunto porque eu tinha já essa questão na minha cabeça do porquê que as pessoas desaparecem. Há muitos anos atrás, mais ou menos uns 25 anos atrás, um amigo meu que era músico de um grupo, cantava num grupo musical e tal, e estava indo numa carreira muito interessante, tinha gravado já, já estava com planos de crescimento na carreira, já tinha algumas coisas acontecendo, e esse amigo desapareceu. Do nada, um dia ele simplesmente desapareceu. Ele ficou mais ou menos uns 10 anos desaparecido, esse amigo, e ninguém sabia o que tinha acontecido com ele. O grupo acabou, o sucesso do grupo não existiu, e aí eu fiquei me perguntando, como é que alguém desaparece? No primeiro momento a gente acha sempre que desaparecimento se dá porque a pessoa morreu, mas nessa ocasião eu notei que isso era uma. Das razões para a pessoa desaparecer. Esse meu amigo foi, na verdade, um dos casos de desaparecimento voluntário. Depois de um tempo, ele apareceu. Ele retornou, começou a ser visto nos lugares, e de repente ele voltou. Voltou para casa. Então, esse fato me chamou a atenção, porque ao pesquisar sobre como pessoas desaparecem, eu comecei a encontrar muitos motivos. As razões são muitas, não é só por morte. São muitos os motivos. Desaparecimento forçado, que é aquela pessoa que é vítima do Estado ou vítima de agentes de segurança pública ou pessoas que desapareceram na ditadura. E tem diversos outros desaparecimentos, enfim, transporte de órgãos, tráfico de pessoas para exploração sexual, trabalho escravo. Enfim, são vários os motivos. Então, isso foi o que me chamou a atenção e que me despertou para falar sobre esse tema.

Edu: Como o canal trabalha o aspecto de ser uma espécie de ‘ponte’ junto às investigações?

Anderson: Apesar das coisas que a gente levanta, algumas delegacias nos acionarem, é raro. São poucos os agentes que se importam a esse ponto. Algumas pessoas no Brasil, mas não são todas. Somos uma ‘ponte’ mais direta com as famílias, com o público. Geralmente não temos resultados com as investigações , já que elas não são bem feitas. Elas chegam nas delegacias – as mães – e elas são desacreditadas. Ouvem de delegados e pessoas que elas não deveriam procurar, que vão voltar para casa. Tem casos que dizem “seu filho tá morto já, para de procurar, deixa pra lá”. Elas não têm relação com as autoridades, e veem na gente essa esperança. Desaparecimento de pessoas não é visto como um crime, só quando aparece um corpo. Apesar de termos delegacias voltadas a isso. Quem trabalha com desaparecimentos, em muitos casos, são despreparados para lidar com essas questões, não há uma conversa inicial digna. A gente acaba não colaborando com as investigações, porque quando chega pra gente, chegam os mesmos indícios, as mesmas coisas que foram apresentadas em outro momento pra polícia, mas não fizeram nada. Então nosso papel é colocar a história de pé, contá-las, compartilhar em grupos, mandar pras pessoas que elas conhecem. 

Edu: Existe um lado histórico fundamental. Como é feita a pesquisa?

Anderson: A pesquisa é feita em busca que fazemos nas redes, em inquéritos, boletins de ocorrência, para que a gente possa conversar com as famílias. Nós temos no canal um milhão de visualizações ao mês, 125 mil inscritos. As pessoas percebem que nada é feito, apesar de existirem leis, sobretudo no Estatuto da Criança e do Adolescente, e também no Estatuto do Idoso, o fundamental é a obrigação de busca imediata, mas isso não acontece. Essas 24 horas são cruciais, se não as pistas se perdem. Quando pedem câmeras de segurança, as imagens já foram apagadas. Então a gente recebe informações, sobretudo as que as ONGs passam, como a Mães da Sé, Mães virtuosas, SOS Desaparecidos, Mães em Luta e Mães Braços Fortes. São com essas pessoas que a pauta de desaparecimento se torna ainda mais ampliada, e é por isso importante citá-las nesta entrevista. 

Edu: Qual é o balanço que pode ser feito após quase uma década voltado ao assunto?

Anderson: Parece que nada mudou. Dentro dos 10 anos, o movimento que trabalha com a temática do desaparecimento começou a pedir uma unificação de dados nacional, de que houvesse um banco que interliga bancos, delegacias, mas nada disso aconteceu. Apesar de ter iniciado um trabalho, o que temos hoje são poucas delegacias que tem sites e fotos das pessoas, pouco atraentes, que não comunica, que não fazem nenhum tipo de divulgação. O desaparecimento em si não é o problema, ele é a consequência da falta do estado, do governo, da falta de políticas públicas e isso escala em níveis maiores. Não há preparo para uma pessoa com doença mental, se ela nem consegue fazer um diagnóstico, por exemplo. Não há uma atenção, e por isso é tão difícil combater. É preciso lidar com os agentes públicos de uma outra maneira, para que olhem para os casos de outra forma. A partir do programa, das iniciativas, muitos casos foram evitados. Há relatos de pessoas que falam do que foi dito no canal e é pra isso que o canal existe: para contar essas histórias, pra mostrar pra sociedade que essa problemática existe e que pode acontecer com qualquer pessoa – seja um desaparecimento forçado ou voluntário.

Edu: O Brasil pode, um dia, solucionar a questão de desaparecimentos, sem deixar de pautar àqueles que acontecem em regiões conflagradas?

Anderson: O Brasil nunca vai solucionar. Além de nós ouvirmos dizer que o desaparecimento de pessoas não é exatamente um crime, como não é exatamente um crime porque não tem um corpo, enquanto a pessoa não aparecer, não se sabe o que aconteceu, as autoridades se valem disso para continuar não procurando. Então eu acho que isso não vai acontecer, primeiro porque as autoridades não estão preparadas para lidar com familiares de pessoas desaparecidas. A gente está falando de uma polícia, de um poder público, de um serviço de segurança pública, que é o que mais mata pessoas no mundo, mata em confrontos ou coisa parecida. São as mesmas pessoas que precisam fazer uma avaliação social, terem algum tipo de empatia, de consciência de classe, de consciência social, para poder olhar para uma mãe, para um pai desse, e realmente dar a atenção que eles precisam.

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