ODS 1
Movimento indígena: da resistência à ditadura à luta contra o marco temporal

Livro mostra como os povos originários se transformaram em uma das forças políticas mais potentes do Brasil contemporâneo

“Algumas coisas se mexem nas placas tectônicas da sociedade brasileira, criando novas situações e rompendo com estruturas há muito sedimentadas”. Assim começa ‘Indígenas em movimento – Breve história do movimento indígena no Brasil’. Em pouco mais de 200 páginas, o livro mostra que mudanças fruto da luta desses povos abalaram, e continuam abalando, a estrutura social da sociedade brasileira, a exemplo do que ocorre quando as placas tectônicas se movem na natureza. Dados históricos e estatísticas comprovam que a luta pela preservação dos povos originários é uma luta pela própria vida.
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Escrito a quatro mãos, é o primeiro projeto em coautoria dos irmãos Cohn: Clarice e Sérgio. Antropóloga e professora de Antropologia na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Clarice trabalha, há mais de 30 anos, com o povo Xikrin da Terra Indígena Trincheira Bacajá, no Pará. Sérgio é autor, poeta e editou mais de uma dezena de livros em torno da cultura e da literatura indígena, sendo um deles do imortal Ailton Krenak – o primeiro indígena a ter assento na Academia Brasileira de Letras (ABL). O livro foi lançado às vésperas do Dia dos Povos Indígenas (19 de abril).
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Veja o que já enviamosRepresentados por uma pluralidade de associações e movimentos espalhados pelo país, os indígenas reinventaram sua atuação política. Ocuparam diferentes instâncias de poder e chegaram ao Congresso Nacional, onde estão representados pela bancada do cocar. Mas travam uma luta contínua e ininterrupta, o que levou Krenak a preferir usar a expressão indígenas em movimento ao falar sobre o movimento indígena — uma forma de olhar para a luta dos povos originários que os autores concordam, a ponto de inspirar o nome do livro.
O livro mostra que a partir do século XIX, se consolidou a ideia de que o continente americano era pouco habitado, e que portanto foi ocupado pelos europeus. “Não houve uma descoberta de uma terra desabitada, mas uma violenta invasão por parte dos povos europeus”, relatam os irmãos Cohn.

Apagamento sistemático
Do encontro desses dois mundos, os europeus, que aqui chegaram, e os indígenas, que aqui viviam, resultou em um verdadeiro morticínio. Num curto período de um século e meio, até 1650, a população indígena foi reduzida a menos de 10% do que havia no começo do século XVI.
Quando não eram mortos pelos colonizadores, eram vítimas de epidemias, o que, como citam os autores, levou o antropólogo Henry F. Dobyns a usar a expressão “cataclismo biológico” para descrever o efeito das epidemias trazidas pelos invasores europeus nas populações ameríndias. Vem daí a vulnerabilidade histórica das populações indígenas a agentes biológicos importados para seus territórios.
Doenças como sarampo, tífo, coqueluche, difteria, peste bubônica e gripe levaram a uma catástrofe demográfica. Nos tempos atuais, compara Clarice, os indígenas são alvo de outro tipo de guerra biológica. Os agentes patogênicos usados na época do descobrimento ganharam novas versões e os agrotóxicos é uma delas.

Histórico de luta
Historiando o movimento indígena no Brasil, Clarice e Sérgio mostram que “a colonização portuguesa no Brasil nunca foi pacífica e enfrentou permanente resistência de diversos povos indígenas”. A partir da metade do século XVII, o tráfico negreiro levou à substituição da mão de obra cativa indígena pela africana. A redução da população indígena, contam os autores, foi um importante fator para isso.
Essa tentativa de reconhecer como terras indígenas aquelas em que os indígenas estavam sentadinhos naquele momento da promulgação da Constituição, desconhece todo o processo de etnocídio, genocídio e ecocídio que essas populações têm vivenciado, e que leva a um trânsito pelo território
Foi só no século XXI que o Censo Demográfico de 2022 constatou que a população indígena havia dobrado em 12 anos no país. Um total de 1,7 milhão de pessoas se autodeclararam indígenas — um crescimento fruto de uma mudança metodológica do próprio Censo. A pergunta “Você se considera índio?” passou a ser feita também para as pessoas que não viviam em território indígena. Uma atualização imprescindível, dado que “apenas 36,7% da população indígena vive em terras oficialmente demarcadas”, relatam os autores.
O livro mostra que o processo de apagamento da população indígena sofreu um revés em 1988, quando foi promulgada a Constituição. Ao não serem mais taxados de “aculturados, assimilados, mestiços, misturados”, os indígenas puderam, com a autodeclaração, retomar suas “indianidades”, assumindo o protagonismo da sua própria história.
A tentativa de apagamento, no entanto, é persistente. Clarice lembra do ocorreu na época da pandemia. Indígenas que viviam em zonas urbanas ou em territórios ainda não homologados não tiveram acesso a vacina contra Covid-19. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) se mobilizou e pressionou para que todos os 800 mil indígenas, conforme o Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), fossem vacinados.
“Essa tentativa de reconhecer como terras indígenas aquelas em que os indígenas estavam sentadinhos, naquele momento da promulgação da Constituição, desconhece todo o processo de etnocídio, genocídio e ecocídio que essas populações têm vivenciado, e que leva a um trânsito pelo território”, critica Clarice, referindo-se ao Marco Temporal A tese é de que apenas os indígenas só poderiam reivindicar terras ocupadas até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
Quando as placas tectônicas saem do lugar, é difícil prever o resultado dessas mexidas. Daí porque Clarice prefere não fazer prognósticos sobre o futuro do movimento indígena: “A melhor resposta para essa pergunta seria não dizer qual o ponto de chegada desse movimento, até porque a luta pelo território é um direito que ainda não está garantido”. Em outras palavras, a luta continua. Não à toa, o Acampamento Terra Livre (ATL) deste ano, em abril, terá como tema “APIB Somos Todos Nós: Em Defesa da Constituição e da Vida”.
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Liana Melo
Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “IstoÉ”. Ganhou o 5º Prêmio Imprensa Embratel com a série de reportagens “Máfia dos fiscais”, publicada pela “IstoÉ”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. Atualmente é repórter e editora do Projeto #Colabora.