ODS 1
Independência em 2 de Julho veio após 16 meses de batalhas e mortes
Mesmo depois do Grito do Ipiranga, tropas portuguesas continuaram ocupando áreas do Brasil e as últimas só foram expulsas da Bahia em 1823
Para muitos historiadores, a Independência do Brasil começou e terminou na Bahia. O marco inicial foi o conflito entre brasileiros e portugueses – mas já divididos entre a lealdade ao príncipe regente Dom Pedro e a Coroa Portuguesa – no dia 19 de fevereiro de 1822 que se espalhou pelas ruas de Salvador: neste dia, a madre Joana Angélica de Jesus foi assassinada ao tentar impedir que soldados invadissem o Convento de Nossa Senhora da Conceição da Lapa na Bahia. O capítulo final foi a expulsão dos portugueses: na madrugada de 2 de Julho de 1823 os últimos quatro mil militares fugiram de navio na direção da Europa.
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Rei de Portugal desde a morte de sua mãe, Maria I, em 1816, Dom João VI foi o responsável pela escalada das tensões no Brasil, como recorda o professor Sérgio Guerra Filho, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). O rei, que voltara a Lisboa em 1821, exigiu o retorno do Brasil à condição de colônia, a retomada das restrições ao comércio, suspensas com a abertura dos portos brasileiros às nações amigas em 1808, e nomeou militares portugueses como novos governadores de armas das províncias brasileiras. Por fim, passou a demandar a volta de Dom Pedro I a Portugal.
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Na Bahia, o português Inácio Luís Madeira de Melo substituiu o brasileiro Manuel Pedro de Freitas Guimarães como brigadeiro da província. E isso gerou uma cisão nas tropas. “Divididas entre nascidos na Bahia e os nascidos em Portugal, as tropas se aquartelaram e começaram a brigar nas ruas de Salvador”, explica Guerra. Era o início do caos, que explodiu em 19 de fevereiro de 1822. Neste dia, militares portugueses invadiram o Convento Nossa Senhora da Conceição da Lapa por suspeitarem que rebeldes brasileiros se escondiam no local sagrado para a tradição católica. O motivo? A visão privilegiada da torre do local.
Os portugueses vinham sufocando o levante brasileiro, graças ao seu efetivo militar e melhores armamentos. Durante a invasão, a abadessa Joana Angélica, então com 60 anos, se colocou na frente dos militares, que já haviam agredido o capelão Daniel Lisboa – este caiu desmaiado no chão. Joana Angélica, que hoje nomeia uma das mais tradicionais avenidas de Salvador e ruas em muitos municípios brasileiros, foi assassinada com golpes de baioneta. Historiadora, mestranda em História Social (UFBA), e professora da rede estadual, Marianna Teixeira Farias aponta que a violência do assassinato da freira foi simbólica. E gerou comoção popular. Inácio Luís Madeira de Melo passou a ser conhecido como “Malvado Madeira”.
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Veja o que já enviamosCom a repressão violenta na capital, os brasileiros fugiram para Cachoeira, cidade do Recôncavo, a 120 quilômetros de Salvador, onde foi organizada a resistência e, posteriormente, a retomada da capital. A cidade, uma vila à época, era estratégica por conta do seu porto, responsável por escoar a produção de fumo, couro e algodão. Segundo o historiador Rafael Dantas, a cidade contava com cerca de 20 engenhos de cana-de-açúcar que se mantinham com a força de trabalho escravo.
Provedor da Santa Casa de Misericórdia de Cachoeira, Luís Antônio Costa Araújo afirma que os interesses diversos – e muitas vezes até conflitantes – não foram empecilho para a união dos brasileiros da Bahia em torno de um país dos portugueses. Assim, fazendeiros e negros escravizados, liberais e conservadores, monarquistas e republicanos, além de um contingente de indígenas, organizaram a resistência em Cachoeira e outras vilas do Recôncavo: a principal batalha foi em 25 de junho quando Madeira de Melo mandou soldados em um navio canhoneira para intimidar Cachoeira, onde havia sido formada a Junta Conciliatória e de Defesa para apoiar a Independência. Após três dias de combate, os portugueses foram derrotados.
Fases da guerra pela Independência
Professor de História, Marcelo Silva Santos explica que, em sala de aula, divide a batalha de Independência da Bahia em fases: a primeira foi a chamada fase de guerrilha, com o recolhimento para o Recôncavo após o assassinato de Joana Angélica. O latifundiário Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque D’Ávila Pereira formou um exército armado com cerca de 1,5 mil soldados – algo ainda pouco para enfrentar as tropas portuguesas, com mais de três mil homens. “Ele ficou conhecido como Coronel Santinho. Sua estratégia foi se valer de ações como o bloqueio da Estrada das Boiadas, que fechava o acesso terrestre a Salvador, interceptando suas comunicações e impedindo o abastecimento de gado e outros gêneros alimentícios às tropas portuguesas na capital”, conta o professor.
Lembra de Maria Felipa? A heroína de Independência teve sua participação nesta etapa, conta Marcelo. A Ilha de Itaparica era um local estratégico por estar no caminho entre a foz do Rio Paraguaçu e a Baía de Todos os Santos, por onde entrava a maior parte dos víveres que abasteciam Salvador. “Ocupar Itaparica era indispensável para que os portugueses pudessem ter acesso a alimentos, que já não chegavam do sertão por terra, bloqueadas por Labatut”, explica o professor.
Após a proclamação formal da Independência, o mercenário francês Pedro Labatut foi designado pelo Imperador Pedro I, em outubro de 1822, para liderar as tropas de brasileiros que se organizavam para tomar uma Salvador dominada pelos portugueses. Essa fase ficou conhecida como a Guerra Nacional: os brasileiros, já com apoio do novo governo, começaram a reunir mais voluntários para derrotar o governo da província, fiel a Portugal. Entre os voluntários, apresentou-se, fingindo ser homem, Maria Quitéria de Jesus, baiana de Feira de Santana, filha de um pequeno produtor rural, que plantava algodão e criava gado.
Foi o francês Labatut quem comandou os brasileiros – soldados regulares e voluntários, entre eles, lavradores, empregados de fazendas, negros libertos e escravizados – na Batalha de Pirajá, no dia 8 de Novembro de 1822, na primeira grande guerra campal pela Independência: foram mais de 12 horas de conflito, envolvendo quase quatro mil combatentes dos dois lados. Labatut calculou em 200 o número de mortos no confronto entre as tropas em Pirajá (região às margens da Baía de Todos os Santos, hoje bairro do subúrbio ferroviário de Salvador).
Onze dias depois da batalha, cerca de 200 escravizados armados dos engenhos da Mata Escura e Saboeiro atacaram Pirajá a serviço de Portugal. Segundo o historiador baiano Luís Henrique Dias Tavares, foram enganados pela promessa de Madeira de Melo de libertá-los da escravidão caso aderissem aos portugueses. Os brasileiros prevaleceram no ataque, que resultou na prisão de escravizados. Labatut mostrou sua face mais cruel e mandou fuzilar os 50 homens e chicotear as 20 mulheres que haviam sido presas. Ele ficou conhecido como um homem sanguinário, apesar de ter recebido homenagens pela Bahia como herói da independência.
A deposição de Labatut, como chefe das tropas brasileiras, aconteceu já em 1823 quando ele mandou prender o coronel Felisberto Gomes Caldeira, comandante de uma das brigadas, que foi enviado para uma fortaleza na Ilha de Itaparica. Os oficiais brasileiros não gostaram nada disso e se organizaram para sua derrubada. O coronel Joaquim José de Lima e Silva assumiu o comando das tropas terrestres em 27 de maio de 1823 para liderar um batalhão formado por 800 homens escolhidos por Dom Pedro I. Outro mercenário, o britânico Thomas Cochrane, passou a comandar a esquadra brasileira.
Foram eles, nesta fase final da guerra na Bahia, que organizaram o último ato da Independência do Brasil, o Cerco de Salvador. A tropa terrestre, comandada por Lima e Silva, chegou à capital da província para impor a rendição de Madeira de Melo, enquanto os navios de Cochrane ocupavam a Baía de Todos os Santos. Ali, no dia 2 de Julho, as tropas portuguesas foram expulsas do país – na madrugada, fugiram em navios de guerra e embarcações mercantis. Com tudo isso, a grande pergunta que fica é: por que motivo a Independência da Bahia ficou esquecida?
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Vinícius Nascimento é jornalista, formado pela Universidade Federal da Bahia, e tem passagens por veículos como TV Band, Jornal Correio e Instituto Mídia Étnica