Brumadinho: impunidade e morosidade do Judiciário multiplicam angústia dos atingidos

"A Justiça parece favorecer os poderosos", afirma líder comunitário de Brumadinho. Para doutora em Direito da UFMG, acordos judiciais vem beneficiando mais as empresas do que os afetados

Por Gabi Coelho | ODS 15ODS 16 • Publicada em 24 de janeiro de 2024 - 07:58 • Atualizada em 2 de fevereiro de 2024 - 09:23

Silas Fialho e seu protesto contra a Justiça e a Vale: “É angustiante ver a impunidade persistir, com os responsáveis ainda não julgados” (Foto: Arquivo Pessoal)

Silas Fialho e seu protesto contra a Justiça e a Vale: “É angustiante ver a impunidade persistir, com os responsáveis ainda não julgados” (Foto: Arquivo Pessoal)

"A Justiça parece favorecer os poderosos", afirma líder comunitário de Brumadinho. Para doutora em Direito da UFMG, acordos judiciais vem beneficiando mais as empresas do que os afetados

Por Gabi Coelho | ODS 15ODS 16 • Publicada em 24 de janeiro de 2024 - 07:58 • Atualizada em 2 de fevereiro de 2024 - 09:23

Silas Fialho, morador do Parque da Cachoeira, em Brumadinho (MG), é uma das vítimas do rompimento da barragem em 25 de janeiro de 2019. Ex-funcionário da Vale, ele virou líder dos atingidos da sua região e uma figura ativa na busca por justiça e reparação às vítimas. Silas, assim como muitos residentes locais, teve seu almoço interrompido – – o rompimento foi às 12h28 – com a notícia da tragédia-crime da Vale. “Minha casa ficou danificada devido à trepidação da movimentação da terra. Presenciei cenas terríveis, com pessoas correndo, pedindo socorro, e animais em desespero”, relembra às vésperas do desastre completar cinco anos.

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A demora do andamento dos processos na Justiça só aumenta a agonia das vítimas e seus parentes. ” Tudo resultou em acompanhamento psicológico para mim, minha esposa e meu filho. Até hoje, enfrentamos dificuldades para dormir e precisamos de medicamentos. É angustiante ver a impunidade persistir, com os responsáveis ainda não julgados”, lamenta Silas, que perdeu um primo, Flaviano, na tragédia-crime, como os atingidos fazem questão de chamar o rompimento da barragem da Mina do Feijão..

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Como líder comunitário, o ex-funcionário da Vale aponta as consequências da mineração predatória em Brumadinho. “Após cinco anos, a situação pouco evoluiu. A Vale mantém controle na região, imóveis foram adquiridos pela empresa, e a população enfrenta problemas de saúde pela contaminação. A violência aumentou, casas foram abandonadas, e a Justiça parece favorecer os poderosos”, afirma Silas, que deixou a Vale, onde trabalhou como assistente administrativo, em 2016. “O acordo entre o estado e a Vale, sem a participação das vítimas, deixou a comunidade à mercê da mineradora, com saúde, meio ambiente, economia local e infraestrutura negligenciados. A reconstrução é lenta, áreas ambientais continuam desatendidas, as buscas por desaparecidos persistem, e a comunidade enfrenta altos índices de problemas de saúde mental, desemprego e custo de vida elevado”, protesta.

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Como Silas e outros atingidos, a professora Maria Fernanda Salcedo Repolés, pesquisadora do CNPq, doutora em Direito Constitucional e coordenadora do Programa de Pesquisa e Extensão Polos de Cidadania da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), também critica as instituições do Judiciário e enfatiza a a necessidade de “uma abordagem mais robusta” no âmbito judicial. “As instituições de Justiça precisam encomendar pesquisas para monitorar sua aplicação e corrigir práticas falhas”, aponta.]

A professora e pesquisadora destaca dois problemas recorrentes. “Primeiro, a falta de participação efetiva das comunidades nos acordos. Defensoria Pública e Ministério Público as representam, mas falta escuta, levando a decisões não alinhadas com as reais necessidades. Segundo, o padrão de fazer acordos no Tribunal de Justiça beneficia mais as empresas do que as populações afetadas”, afirma Salcedo. Os atingidos pela tragédia-crime reclamam sistematicamente dos acordos feitos no Judiciário. “Esses acordos sigilosos não criam precedentes para responsabilizar efetivamente as empresas por violações. Essa abordagem de acordos, sem ampla participação, escuta e avaliação, provavelmente replicará problemas. É essencial repensar esse modelo para garantir uma justiça efetiva e duradoura para as comunidades afetadas”, acrescenta a professora da UFMG.

A pesquisadora afirma a dificuldade em obter dados estatísticos, mas menciona depoimentos que indicam aumento significativo de problemas de saúde mental, como depressão, uso abusivo de substâncias e até tentativas de suicídio. “Estamos acompanhando grupos organizados nesses territórios, conduzindo entrevistas e fazendo acompanhamentos de casos. Além disso, participamos de reuniões em grupos que discutem essas violações. Sempre priorizamos destacar a voz e a perspectiva dos próprios afetados”, explica a professora. “Ao explorarmos os territórios, colhemos vários depoimentos sobre a questão da saúde mental. Isso inclui relatos de pessoas na área de saúde dos municípios, especialmente em Brumadinho, e também de indivíduos que perderam familiares, como os participantes da Avabrum [Associação dos Familiares das Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem em Brumadinho], que acompanhamos de perto”.

Maria Fernanda Salcedo Repolés destaca outras agruras enfrentadas por atingidos com o poder público e a Vale. “Ao analisar a situação, percebemos que não há uma limitação que restringe a indenização por danos à saúde mental apenas às pessoas de Brumadinho. Essa condição imposta pela empresa parece ser arbitrária e unilateral, sem considerar a totalidade do contexto”, pondera. “Um ponto relevante é a participação dos afetados nos acordos e em toda a discussão sobre as obrigações da empresa e o uso do dinheiro. Ao longo do Rio Paraopeba, é reclamação constante e unânime”.

A professora da UFMG acrescenta que há muitos testemunhos de sobreviventes. “A percepção geral dessas pessoas é que houve aumento nos casos de saúde mental ao longo desses cinco anos. Os profissionais de saúde do município relatam demanda realmente exponencial na busca por serviços de saúde mental nos postos de saúde”.

O Programa Polos de Cidadania, através da Plataforma ÁPORO, elaborou uma nota técnica analisando as repercussões na Justiça do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho. Destaca-se a condenação da Vale ao pagamento de R$1 milhão por danos morais individuais a 131 das 272 vítimas fatais, ressaltando a importância do “reconhecimento do dano-morte” e a necessidade de considerar parâmetros internacionais para definição das indenizações. A análise econômica presente na nota aponta para uma “prática necroeconômica da Vale, onde valores de indenização insuficientes perpetuam negligências em segurança”. A conclusão destaca a urgência de uma resposta efetiva do Judiciário para interromper esse ciclo.

Outro estudo do mesmo projeto abordou os impactos da mineração, especialmente em relação aos direitos humanos e aos danos ambientais no bairro de Macacos, no município de Nova Lima, na Região Metropolitana de Belo Horionte, destacando as interconexões com a tragédia de Brumadinho. Em Macacos, mais de 100 famílias foram obrigadas a deixar suas casas por conta da ameaça de rompimento de mais uma barragem da Vale. O material Programa Polos de Cidadania destacou 16 questões de maneira abrangente sobre diversas violações de direitos humanos nas áreas afetadas pela mineração predatória, com especial atenção à saúde mental dos atingidos. 

Críticas ao governo de Minas

Não é apenas o Judiciário o alvo das queixas das vítimas da tragédia-crime em Brumadinho e de suas organizações. ONGs criticam o governador Romeu Zema e apontam para a flexibilização das leis ambientais. Em entrevista para o Brasil de Fato, Juliana Deprá, coordenadora do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), afirmou que o governador vem priorizando empreendimentos minerários em detrimento dos direitos da população. “A postura de Zema é avançar com qualquer empreendimento sem que se faça qualquer nível de debate sério sobre os impactos. A postura do governo de Minas Gerais é acelerar os processos de licenciamento ambiental para aumentar a exploração mineral, atropelando os direitos da população”, comenta.

Há outras reclamações. No contexto pós-rompimento, a Vale foi confrontada com a necessidade de compensar os danos causados à estação de tratamento de água do Paraopeba, operada pela Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa). A mineradora, como causadora do desastre, era responsável por arcar com os custos de construção de uma nova estação para mitigar os impactos ambientais e garantir o abastecimento de água à região afetada. Entretanto, o entendimento entre a Vale e a comunidade, sobre como essa compensação deveria ocorrer era divergente. O desacordo envolvia questões como o valor da compensação, o local escolhido para a construção da nova estação e os impactos sociais e ambientais associados a essa obra.

Cláudia Saraiva, servidora pública afastada desde 2022 devido a depressão, conta que viu sua vida ser profundamente impactada pelo rompimento da barragem. A depressão, explica, é consequência da perda de familiares e amigos na tragédia-crime – mas o impacto foi além, com a desapropriação do terreno de sua família. “A Vale precisava pagar à Copasa por uma nova estação de tratamento de água devido às consequências do rompimento na estação do Paraopeba. A visão da Vale e da comunidade eram conflitantes”, relata.

Na disputa, o governo Zema acabou desapropriando cinco casas na comunidade de Ponte das Almas – inclusive a da servidora pública afastada – para que a Vale construísse a nova estação de tratamento para a Copasa. “Estamos buscando justiça para receber reparação pelos danos causados. Lutamos para ser ouvidos pelas autoridades, argumentando pela necessidade de um julgamento justo e pagamento justo pela Vale,” ressalta Cláudia, que enfrenta ameaças e está inserida no Programa de Proteção a Testemunhas.

A comunidade persiste na busca por Justiça, enfrentando desafios na obtenção de representação legal e na resistência da Vale em negociar.
“Existe uma inversão de valores, onde a Vale, a causadora dos danos, é tratada como reparadora,” conclui Cláudia Saraiva, apontando a necessidade de reverter esse cenário, com respeito às vidas afetadas.

A repórter do #Colabora entrou em contato com a assessoria de comunicação da Vale, do Ministério Público, da Defensoria Pública e do Governo de Minas Gerais. No entanto, não houve retorno. O espaço segue aberto para seus posicionamentos.

Gabi Coelho

Jornalista, empreendedora, diretora da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e conselheira da Inova.aê. Dedica-se a impulsionar uma comunicação comprometida com a sociedade, através do jornalismo e do ativismo. Tem experiência em mídias independentes e tradicionais, como Estadão Verifica, Projeto Comprova, Globo Minas, Voz das Comunidades, Ponte Jornalismo, Projeto Colabora, Revista Azmina e outros. Foi jurada do prêmio Vladimir Herzog. Teve também experiências internacionais. Em 2018, foi uma das oito jornalistas brasileiras das favelas e periferias que participaram de intercâmbio em Medellín, Colômbia, conectando-se com mídias independentes e participando de workshops e exposições no Festival Gabriel García Márquez. Em 2023, participou do intercâmbio IVLP nos Estados Unidos, no Programa Edward R. Murrow para Jornalistas – Pesquisa e Investigação, juntamente com profissionais brasileiros, moçambicanos e portugueses.

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