Chiquitanos lutam por demarcação de terras na fronteira do Mato Grosso com Bolívia

Tráfico, queimadas, expulsão por fazendeiros e omissão do governo local ameaçam povo indígena no Portal do Encantado

Por Ana Tonelli | ODS 16 • Publicada em 16 de janeiro de 2025 - 08:56 • Atualizada em 16 de janeiro de 2025 - 09:34

Queimada em território indígena em Mato Grosso; chiquitanos sofrem com ameaças de fazendeiro e ataque de autoridades, enquanto lutam por demarcação definitiva de suas terras (Foto: Arquivo Pessoal / Erlie Rumhamre Xavante)

Pouco mais de 14 anos após ser reconhecido oficialmente como etnia indígena no Brasil, o povo chiquitano luta pela demarcação de terras na fronteira do Mato Grosso com a Bolívia. Tráfico, queimadas, violência, expulsão e exploração por fazendeiros e negativa de reconhecimento por governantes locais ameaçam os indígenas. Na região transfronteiriça, os chiquitanos ocupam a Terra Indígena Portal do Encantado, território com 43 mil hectares, e denunciam constantes ameaças de expulsão por proprietários de terras e até autoridades da região.

No Brasil, os chiquitanos vivem nos municípios de Vila Bela da Santíssima Trindade, Cáceres, Pontes e Lacerda e Porto Esperidião. No lado boliviano, ocupam o departamento de Santa Cruz, nas províncias Nuflo de Chavez, Velasco, Chiquitos e Sandoval. “Nosso povo foi reconhecido recentemente, para nós não existia essa questão de Brasil e Bolívia. Meus avós sempre moraram no mesmo lugar, meu avô trabalhava nas fazendas ao redor e construiu família lá. Desde o reconhecimento oficial, nosso objetivo é proteger nosso lugar, e por isso a demarcação é essencial”, enfatiza assistente social e líder chiquitano José Parava.

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De acordo com levantamento da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em 2023, residem pelo menos 103 famílias na Terra Indígena Portal do Encantado, distribuídas nas aldeias Fazendinha, Acorizal, Nautukirs Pisiors (Aroeira Florida), Paama Mastakama (Lua Nova) e Nochoporo Matupama (Mata Virgem) e Vila Nova Barbecho. De acordo com os próprios indígenas, quase 500 chiquitanos moram nas aldeias; a Funai estima que mais de dois indígenas da etnia vivem na periferia dos municípios da região. Na Bolívia, são pelo menos 80 mil chiquitanos – a língua chiquito é a quarta língua indígena mais falada da Bolívia, depois do quéchua, do aimará e do chiriguano.

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Apesar da presença histórica na região e de ser oficialmente considerado indígena nos dois lados da fronteira em que residem, o povo chiquitano enfrenta a resistência dos governos locais em reconhecê-los como indígenas, desde que a portaria declaratória de 31/12/2010 do Ministério da Justiça estabeleceu os limites da Terra Indígena Terra do Encantando, reconhecendo a ocupação pelos chiquitanos, etapa fundamental para a demarcação. As lideranças indígenas reclamam, entretanto, que, passados pouco mais de 14 anos, a Funai ainda não procedeu a demarcação física para que a terra possa ser homologada definitivamente.

O trabalho demarcatório, apesar de lento, enfrenta a oposição de autoridades locais. Em audiência pública na Câmara dos Deputados, em outubro de 2023, e o prefeito de Vila Bela da Santíssima Trindade, Jacob André Bringsken (MDB), discursou contra a atuação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) na demarcação de terras na região da fronteira.

Reeleito nas eleições municipais de 2024, o prefeito sustenta que não há tribos no local e o processo de demarcação prejudicaria a produção agrícola do município. “É ridículo criar áreas de reserva onde não tem índio. O que nós temos é um povo tradicional oriundo da Bolívia que veio há muito tempo com suas famílias, mas que não são índios nem no país de origem. A Funai quer criar índios na nossa fronteira para frear nossa produção”, atacou André Bringsken na sessão.

Em um vídeo institucional da Prefeitura, divulgado durante o ano de 2024, ele reafirmou não considerar os chiquitanos indígenas. “Sou radicalmente contra a política da Funai que deseja transformar o povo chiquitano, que é tradicional, em índio brasileiro. Isso é um retrocesso muito grande, porque ele deixa de ser cidadão brasileiro e passa a ser tutelado pela Funai, sem direito a produzir e sem direito a ter sua terra”, argumentou Bringsken.

A fala do prefeito de Vila Bela da Santíssima Trindade teve como resposta uma nota de repúdio da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt). “Além de difundir desinformação sobre as demarcações e o papel da Funai na proteção dos povos indígenas, as declarações e o posicionamento do prefeito de Vila Bela são discriminatórios e requerem nossa manifestação de repúdio e indignação. O povo Chiquitano é índigena, sim, e vem há muitos anos lutando pelo seu território, uma batalha que, infelizmente, já resultou na morte de lideranças”, afirmava a nota.

Nas aldeias, os chiquitanos mantém roças com a plantação de milho, abóbora, mamão, jiló, laranja, limão, banana, acerola e jabuticaba – entre outros cultivos – além da criação de galinhas e porcos. Na Aldeia Vila Nova Barbecho, funciona a Escola Estadual Indígena Chiquitano José Turíbio, que serve ainda de espaço para atendimento médico e odontológico, ensaios de uma orquestra indígena, reuniões e oficinas de capacitação.

Plantação na Terra Indígena Portal do Encantado: 14 anos após reconhecimento dos indígenas e delimitação de seu território, chiquitanos ainda sofrem discriminação (Foto: Arquivo Pessoal)
Plantação na Terra Indígena Portal do Encantado: 14 anos após reconhecimento dos indígenas e delimitação de seu território, chiquitanos ainda sofrem discriminação (Foto: Arquivo Pessoal)

Queimadas contra os indígenas

Em 2024, o avanço das queimadas em Mato Grosso – fenômeno que atingiu a maioria dos estados brasileiros, que enfrentam uma seca histórica – voltou a ser combustível para ataque das autoridades aos indígenas. Embora dados do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima retratem que 85% das queimadas tenham ocorrido em propriedades privadas, o governo e setores ligados ao agronegócio negam o envolvimento de fazendeiros com os incêndios. Relatório do ICV sobre a caracterização da área atingida pelo fogo na região mato-grossense, há uma predominância de queimadas em imóveis rurais privados e áreas não cadastradas, que, juntos, somaram 60% do espaço afetado em 2024. O estudo aponta para o uso do fogo em práticas da agropecuária, para a “limpeza” de áreas recém-desmatadas ou para matar a vegetação nativa.

O governador do Estado de Mato Grosso, Mauro Mendes (União Brasil), e o prefeito de Vila Bela da Santíssima Trindade, entretanto, afirmaram, sem apresentar evidências, que boa parte das queimadas teriam origem em terras indígenas. “Os produtores não têm nada a ver com isso, muito pelo contrário, eles cuidam e protegem as terras e perdem muito com as queimadas. Eu acho que a legislação precisa ser mais dura para coibir o fogo que já atingiu parques e a vegetação do nosso município”, afirmou o prefeito André Bringsken, em entrevista à reportagem.

Segundo Fepoimt, 41 terras de povos originários foram afetadas pelas queimadas no estado – inclusive a Terra Indígena Portal do Encantado O O líder chuiquitano José Parava relata que muitos templos sagrados foram destruídos pelas chamas e o nível dos rios tem diminuído. Ele ressalta que a falta de reconhecimento da terra indígena afeta diretamente a saúde da comunidade. As dificuldades dos indígenas ainda se agravam pelos efeitos das queimadas, que vêm batendo recordes tanto no Mato Grosso como no país vizinho.

Cercados pela fumaça, os chiquitanos encontram dificuldades de acesso a atendimento médico. “A assistência médica para indígenas é uma questão alarmante nas fronteiras e até fora delas. Algumas pessoas da rede pública não nos reconhecem como cidadãos e têm resistência para nos atender, mesmo com a Secretaria de Saúde Indígena. Ainda somos expostos. Os municípios devem ser responsabilizados”, afirma Parava.

O líder indígena afirma que proprietários de terras ao redor das aldeias ainda exploram chiquitanos como mão de obra barata – o trabalho mal remunerado é recorrente há décadas. “Meus avós não foram só explorados pelos fazendeiros, mas também pelo Exército brasileiro. O Destacamento Militar de Fortuna, sede do Exército, ficava dentro do nosso território e eles acreditavam que o povo chiquitano deveria trabalhar para ganhar apenas refeição”, aponta.

Para o líder chiquitano, as políticas públicas devem estar voltadas para a preservação da população e dos biomas. “O povo indígena resiste mesmo com muitos desafios e luta não só por nós. Meu avô costumava dizer que a natureza dá, mas também tira. Precisamos cuidar do meio ambiente; nós respiramos o mesmo ar”, destaca.

O coordenador do Núcleo de Inteligência Territorial do ICV, Vinicius Silgueiro, também defende que a fiscalização deve ser intensificada para conter a devastação ambiental. “A região mato-grossense é a chave para combater a crise climática, porque ao mesmo tempo em que é a casa do agronegócio, é também o único estado com Cerrado, Pantanal e Amazônia e com mais de 40 povos indígenas. Por isso acredito que a solução para a manutenção da floresta em pé está no Mato Grosso”, afirma Silgueiro.

O líder chiquitano José Parava em evento na aldeia: "Desde o reconhecimento oficial, nosso objetivo é proteger nosso lugar, e por isso a demarcação é essencial" (Foto: Arquivo Pessoal)
O líder chiquitano José Parava em evento na aldeia: “Desde o reconhecimento oficial, nosso objetivo é proteger nosso lugar, e por isso a demarcação é essencial” (Foto: Arquivo Pessoal)

Ameaças na fronteira

A localização na fronteira com a Bolívia aumenta as ameaças aos chiquitanos – como a outros povos indígenas da região. A fronteira tem cerca de 730 quilômetros de extensão, grande parte terrestre. A agente da Polícia Rodoviária Tederal Andréa Corrêa, que atua nesta região de Mato Grosso, afirma que o maior desafio no monitoramento da fronteira são as diversas rotas clandestinas e estradas de fazendas. O fluxo constante de bolivianos e as características geográficas favorecem o tráfico, em solo e por via aérea. “Além do tráfico de drogas, enfrentamos também o de mercadorias falsificadas”, aponta a policial.

O controle da travessia é muito difícil. “Aqui, os bolivianos entram e saem da cidade com frequência. Eles fazem compras nos supermercados, levam bebidas, água mineral e mantimentos. Usam inclusive o serviço público: ambulâncias vêm da Bolívia todo dia para trazer pacientes grávidas e pessoas feridas em acidente”, explica a agente da PRF.

Em agosto de 2020, quatro indígenas chiquitanos, de aldeias bolivianas, voltavam de uma caçada quando foram mortos em uma ação do Grupo Especial de Fronteira (Gefron), da Polícia Militar de Mato Grosso, num trecho da divisa próximo a San José de la Frontera, na Bolívia. O Gefron declarou que o grupo era composto por traficantes e que houve troca de tiros, mas nenhum policial foi atingido e não houve apreensão de drogas. Parentes de Paulo Pedraza Chore, Ezequiel Pedraza Tosube, Yonas Pedraza Tosube e Arcindo Sumbre García alegam que os corpos apresentavam marcas de tortura e, mais de quatro anos depois, ainda cobram uma investigação.

*Reportagem produzida sob orientação do professor Chico Otávio, no Laboratório de Jornalismo 1 do curso de Jornalismo da PUC-Rio.

Ana Tonelli

Ana Tonelli é mato-grossense e estuda jornalismo na PUC-Rio. Tem grande interesse pela cobertura jornalística ambiental, cultural e local. Atualmente é estagiária no SBT, atuando na produção de reportagens e pautas

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