ODS 1
‘A luta pelos direitos das crianças trans ainda é uma semente de tâmara’
Fundadora e presidente da ONG Minha Criança Trans, Thamirys Nunes fala sobre maternidade atípica, acolhimento familiar e invisibilidade da infância trans
“Que pena que Deus não me fez menina”. A frase que traz a angústia de uma menina que não se identificava com o gênero imposto ao nascimento foi dita pela filha trans de Thamirys Nunes e o marido, quando tinha quase 4 anos. A partir daí, o casal teve que se desconstruir para entender e acolher a filha — no caso de Thamirys, ela vinha de uma família conservadora e não tinha contato com pessoas LGBT+. Numa jornada de aprendizado e ativismo, hoje Thamirys é fundadora e presidente da ONG Minha Criança Trans, “primeira Organização Não Governamental (ONG) do Brasil a tratar exclusivamente das questões que envolvem saúde, qualidade de vida, políticas públicas e direitos das crianças e adolescentes transgêneres”, como informa o portal da organização fundada em 2022.
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Thamirys Nunes, 35 anos, é formada em Comunicação Social. Mãe de Agatha, uma criança trans de 9 anos, e ativista pelos direitos trans infantojuvenis, é responsável pelo Instagram com mesmo nome da ONG, onde fala com mais de 160 mil seguidores sobre maternidade atípica. Além disso, também é autora dos livros “Minha Criança Trans?” e “A Menina no Espelho”. Em conversa com o #Colabora, Thamirys compartilha os desafios enfrentados no processo de transição de gênero da filha e como se tornou uma ativista pelos direitos das crianças e adolescentes trans. Ela também fala sobre a importância do acolhimento familiar e os avanços que acredita serem necessários para construir um futuro mais inclusivo.
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Veja o que já enviamos#Colabora: Como você percebeu que a sua criança não se identificava com o gênero masculino, imposto ao nascimento?
Thamirys Nunes: Ela apresentava nas preferências do brincar um interesse muito grande pelo feminino e uma recusa do masculino, e isso gerava uma certa angústia. Me questionava se era só uma fase, uma preferência, uma forma de brincar. Mas, aos três anos, ela começou a verbalizar que preferia e que seria mais legal ter nascido menina. Então, com todo o interesse que ela tinha pelo feminino, aquela fala não era descontextualizada. Era uma fala muito persistente que sempre aparecia: ‘que pena que Deus não me fez menina’. Então isso nos levou a entender que tinha alguma coisa ali.
#Colabora: Na época, você e seu marido chegaram a reforçar a identidade de gênero imposta ao nascimento, para Agatha se reconhecer como um menino?
Thamirys Nunes: A gente incentivava determinadas brincadeiras e o uso de brinquedos. Eu me masculinizei, passei a usar roupas menos femininas, evitei usar sapatos de salto, vestidos, roupas curtas, cortei o cabelo muito curto, parei de pintar as unhas, usar muita maquiagem. Até compramos um cachorro macho, para ter mais uma referência de feromônios e hormônios masculinos, mais uma referência de masculinidade. A gente incentivava muito tudo que era considerado masculino em brinquedos, filmes, séries, atividades, amizades… Mas ela recusava. A gente dava o Batman e ela falava: ‘mas não tem a Batgirl? Ela é mais legal, mais bonita’. A criança deixava claro que não era aquilo que ela queria, não era aquilo que a fazia feliz. Quando as pessoas ainda não sabiam o processo que a gente estava vivendo, achavam que ela era uma criança ingrata, mimada. ‘Nossa, mas os pais dão tudo e ela não quer nada’. Na verdade, era porque a gente não dava o que a criança precisava. Um menino que gosta de brincar de boneca não é uma menina trans. Mas um menino que além de gostar de brincar de boneca, tem desejo em ser a boneca, ser menina, se vestir e ter a aparência da boneca, aí a gente está falando de uma criança que pode ter uma questão de gênero.
#Colabora: Nesse processo de entender, aceitar e apoiar a Agatha, quais foram as maiores dificuldades que você e sua família enfrentaram?
Thamirys Nunes: Eu venho de uma família muito conservadora e eu não tinha contato com a comunidade LGBT+. Foi um processo de desconstruir para me informar, para entender o que estava acontecendo e quais eram os direitos da minha filha. Sem informação, a gente fica tomada pelos nossos achismos — que às vezes são carregados de estigmas e preconceitos. Eu fui muito julgada, excluída, taxada de ‘louca’ por toda a família e por amigos. Foi um período de adaptação das pessoas compreenderem o que a gente estava falando, entenderem que não era eu ‘forçando’ ou eu ‘inventando moda’, como escutei de algumas pessoas, mas era uma questão muito presente na criança.
#Colabora: Você acredita que o ambiente pode influenciar na liberdade da criança de se sentir acolhida para verbalizar com qual gênero ela se identifica?
Thamirys Nunes: Sim, é importante que a criança sinta que é validada, ouvida, e saiba que os sentimentos dela importam. Isso acontece quando são famílias mais abertas ao diálogo, que validam os sentimentos e a percepção da criança. Quanto mais a gente traz respeito e ouve o que a criança tem a dizer, mais ela vai se sentir livre e confortável para falar. Na ONG acolhemos 700 famílias, e a gente conversa muito sobre a importância do acolhimento e da família nesse processo, que faz toda a diferença.
#Colabora: Segundo o Conselho Federal de Medicina, resolução 2265/2019, é permitido que seja feito o bloqueio hormonal somente a partir dos 16 anos. Antes de atingir a idade, a criança deve ser acompanhada por uma equipe multiprofissional e interdisciplinar sem nenhuma intervenção hormonal ou cirúrgica. Considerando o processo de transição de gênero da sua filha, pode contar como é este momento?
Thamirys Nunes: A criança faz apenas a transição social, que é a mudança das características que a incomodam. Ou seja, o vestir, a aparência, os pronomes e o nome, questões ligadas à sociabilidade da criança. Mas não tem uma ‘tabelinha’ de tudo que vai ser alterado, porque cada criança pode alterar o que incomoda. Não necessariamente um menino trans vai querer cortar os cabelos, ou a menina trans vai querer botar brinco. A transição acontece dentro do que ela entende que é a feminilidade ou masculinidade dela.
#Colabora: A partir da ONG Minha Criança Trans e do ativismo pelos direitos dessa população, você passa a fazer parte desse movimento, cobrando e acompanhando políticas públicas. Uma vez nesse espaço, você diria que já existia o debate pelos direitos das crianças dentro da comunidade e do ativismo pela população trans?
Thamirys Nunes: Os direitos das crianças trans continuam num momento muito precoce, ainda são muito negados e silenciados. Hoje, tem uma parcela da população, do poder público, de políticos, que não reconhecem essa existência. Quando você não reconhece a existência de alguém, você não reconhece que ela tem direitos. A gente está brigando ainda pela compreensão da transexualidade de crianças como uma possibilidade de infância. Eu não via esse movimento acontecendo. Quando comecei, eu procurei grandes redes, procurei em vários lugares e não encontrei informações, não tinha nenhum perfil informativo como o meu e tantos outros hoje. Não tinha nenhum departamento em ONGs de LGBTs ou mães que falassem sobre crianças trans. Eu não consegui identificar.
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#Colabora: A visibilidade nas redes sociais fortalece a discussão sobre maternidade e sobre os direitos das crianças trans, mas também te torna vulnerável a ataques de ódio. Você recebe esses ataques? Se sim, como lida com essas ameaças?
Thamirys Nunes: Precisa de muita saúde mental! Eu não conseguiria lidar com tudo isso se eu não tivesse o apoio de profissionais da psicologia. Os ataques são intensos e cíclicos; o cotidiano dos haters no Instagram é cotidiano. É muito difícil, porque chego a questionar: ‘será que vale a pena? O que pode acontecer comigo? Será que eles realmente vão fazer o que estão ameaçando? Mas preciso manter a cabeça no lugar para não viver com medo.
#Colabora: A partir do momento que sua filha nasceu, você diria que nasceu também uma nova Thamirys?
Thamirys Nunes: Com certeza! Obrigada passado, mas eu não me reconheço mais. Hoje sou uma pessoa mais atenta, não somente sobre os direitos das pessoas trans, mas sobre pautas minoritárias, questões de direitos humanos. Sou mais simpática, mais respeitosa. Revi muitas questões da minha vida que eu tinha como certezas, que foram caindo por terra desde que meu filho morreu em vida, e nasceu Agatha.
#Colabora: Qual o impacto de compartilhar a sua realidade enquanto mãe para outras famílias e pessoas trans que passam ou passaram por esse momento da transição de gênero na infância?
Thamirys Nunes: Quando a gente compartilha, nos tornamos muitos e deixamos de ser únicos — deixa de ser ‘só o nosso filho, só na minha família, só na minha cidade’. Quando a gente passa a perceber que somos diversos, a gente dá um fôlego de esperança. A gente também fala um ‘eu te entendo, está tudo bem’. Essa união entre pares é muito importante para a gente caminhar. Nos une, nos fortalece, nos faz ficar mais corajosas para enfrentar as adversidades. Nós da ONG fizemos em agosto desse ano um mutirão de retificação de documento civil no Rio de Janeiro, foram mais de 100 famílias fazendo a retificação e foi incrível. Vimos adolescentes e crianças chorando, famílias agradecendo e sabendo que eles tinham conseguido um direito. Saber que a gente lutou por esse direito deles foi um dos momentos mais maravilhosos e mágicos. Foi o primeiro mutirão de retificação do mundo voltado exclusivamente para crianças e adolescentes.
[O chamado “Mutirão do Amor”, ação que aconteceu no dia 26 de agosto, é fruto do diálogo entre a ONG Minha Criança Trans, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro e o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Foram retificados os documentos de 106 crianças e adolescentes trans, de dez estados brasileiros, além de quatro famílias de crianças brasileiras que residem no exterior.]
#Colabora: Quais são os principais objetivos da ONG Minha Criança Trans?
Thamirys Nunes: Nossos objetivos são acolher e fortalecer essas famílias, para que elas possam fazer o mesmo com seus filhos, filhas e filhes. Queremos construir uma agenda política institucional de reconhecimento dos direitos da existência das crianças e adolescentes trans, e também estabelecer normativas que regularizem os direitos dessas famílias. Para isso, é muito importante a gente ocupar espaços que nunca tinham sido ocupados. A gente está conseguindo levar um tema que atravessa a existência de crianças e adolescentes trans para lugares que nunca tinham ampliado essa discussão, pensado ou permitido que esse diálogo ocorresse. Com esse sentimento que a gente foi para o Comitê dos Direitos da Criança e do Adolescente da ONU, em Genebra, e é com esse sentimento que a gente volta, de poder pela primeira vez ter provocado aqueles comissionados da ONU para pensar e refletir sobre isso, plantado uma sementinha. A luta pelos direitos da criança e do adolescente trans ainda é uma semente de tâmara, e eu não vou estar aqui para ver quando essa tamareira estiver enorme. Mas a gente está plantando sementes de tâmaras para uma pauta que é muito delicada, muito sensível, mas que a gente tem que falar dela – com atenção e cuidado, mas devem ser trabalhadas.
#Colabora: Como você acredita que a sociedade pode mudar para ser mais inclusiva e respeitosa com as crianças e adolescentes trans?
Thamirys Nunes: A gente precisa entender que quando envolvem vidas vulneráveis, não existe ‘eu acho’. Todo mundo tem uma opinião sobre a criança trans: ‘eu acho que foi influência da mãe, que é falta de Deus, que é política’… Não tem ‘eu acho’. Você vai estudar, vai entender, ou é preferível não dar opinião. Mas independente de qualquer coisa, a gente precisa praticar o respeito acima de tudo. A gente precisa entender enquanto sociedade que é nossa obrigação respeitar todas as possibilidades de vida, sejam elas raciais, corporais, religiosas, de existência, de família. E se você é mãe ou pai e tem uma criança com alguma questão de gênero, que se apresenta como trans, você não precisa passar por isso sozinho. Não é uma maternidade e/ou paternidade fácil, então nos procure ou procure qualquer outra rede que apoia pais de crianças e adolescentes trans, porque juntos somos mais fortes, e desistir de um filho, jamais.
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Estudante de jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF). Gonçalense, ou papa-goiaba, apaixonada pelas possibilidades de se contar histórias na área da comunicação. Foi estagiária na Assessoria de Comunicação do Ministério Público Federal e da UFF. Amante da sétima arte e crítica amadora do universo geek.