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A insustentável utopia do frágil (bem) viver

Nós, negros, estamos morrendo sistematicamente. E há outras facetas: temos nossos direitos fundamentais cotidianamente negados e negligenciados

ODS 10ODS 16 • Publicada em 5 de dezembro de 2024 - 11:54 • Atualizada em 9 de dezembro de 2024 - 10:37

Em outubro, completei 34 anos na contramão das estatísticas. É aquela história: a gente flutua entre celebrar a vida, a saúde, a sobrevivência (literal) e a insistente resistência. De um lado, os meus números. Sou uma mulher negra, o que simboliza coragem e justiça, e minha existência é política. De outro, as estatísticas da sociedade lado a lado a um dramático cronômetro.

Entre as muitas mensagens-chave do último mês de novembro, no qual celebramos o feriado nacional da Consciência Negra, li que 20 de novembro “é apenas um dia entre os 365 dias de privilégio branco”. Me deparei com essa sentença e respirei fundo. Os caminhos de resistência, além de cansativos, por vezes são improdutivos. Levamos décadas para a colheita de resultados estruturais, mudanças efetivas e para ver em prática o que parecia uma teoria de movimentos sociais.

Leu essa? Polícia da Bahia mata uma pessoa negra a cada sete horas

A questão crítica, nesse entremeio, é que estamos morrendo sistematicamente.  Divulgado ontem, um levantamento exclusivo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) para a Alma Preta Jornalismo mostrou que, em 447 cidades, a polícia matou “apenas” pessoas negras.  Do número total de cidades analisadas, 118 municípios (26,4%) estão na Bahia, que contabiliza uma população com 80,8% de pessoas pretas e pardas de acordo com o último Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Ato do Movimento Negro contra a violência policial: bem viver segue ameaçado por racismos (Foto: Paulo Pinto / Agência Brasil - 24/08/2023)
Ato do Movimento Negro contra a violência policial: bem viver segue ameaçado por racismos (Foto: Paulo Pinto / Agência Brasil – 24/08/2023)

Eu completei 34 anos, mas todos os dias preciso me lembrar que, nós, negros, estamos morrendo. Somos jogados ponte abaixo por um policial militar. (E, vejam, está tudo gravado, não é cena de filme de ação). Somos mal tratadas e preteridas na maternidade, na hora do parto. Somos encarcerados em massa. Temos nossos direitos fundamentais cotidianamente negados e negligenciados. Não temos dinheiro para enterrar os nossos. 

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Sobre a fragilidade do que chamamos de bem viver, eu volto aos números. Mulheres negras somam aproximadamente 60,5 milhões no Brasil, caracterizando o maior grupo populacional do país. O que significa que somos 28% vivendo, sobrevivendo e navegando por cenários políticos, sociais, ambientais e econômicos. Se você me lê e se autodeclara uma pessoa branca, você não precisa decorar as estatísticas para mencionar em palestras e apresentações públicas. Contudo, preciso que, ao menos, reflita como essa matemática é perversa e cruel.

Na última coluna, falei sobre o contexto nacional da fome. E o relatório do Observatório Brasileiro das Desigualdades (2024) mostrou que 37% das famílias chefiadas por mulheres negras enfrentam insegurança alimentar — moderada ou grave. Os números mais críticos estão na região Norte (39,7%) e Nordeste (38,7%).

A violência tem muitas facetas, desde a naturalização dos números de quem passa fome no Brasil até as dinâmicas de trabalho, emprego e renda. Exemplo disso é que 67% das trabalhadoras domésticas são mulheres negras — e mais de 75% delas trabalham sem carteira assinada (PNAD Contínua e Dieese 2023). A interminável conversa sobre direito e segurança do trabalho entra em um profundo espiral de checklists, afinal, precisamos trabalhar, pagar contas e sustentar pessoas. Será que dá meso para lutar por direitos trabalhistas sem racismo quando a conta de luz vence todo dia 5?

Retorno à temática de percepção da violência. Das 18 milhões de mulheres que já sofreram violência no Brasil, mais de 12 (milhões) são negras. Essa equação assustadora, publicada na quarta edição da pesquisa “Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil” (2023), transita por cenários de violência provocada por parceiros, assédio sexual e marcas da violência, que se perpetuam e se reproduzem em diferentes instâncias de poder, em incalculáveis ciclos de repetição.

O bem viver segue ameaçado por racismos (plurais). E escrever sobre o tema todos esses anos consecutivos  já não é mais uma escolha editorial. É mais uma estratégia de sobrevivência. A gente denuncia e se protege por trás das palavras. O que me dilacera, e não posso esquecer, é que Marielle Franco fez isso com ousadia e excelência. Denunciou com sua voz, em primeira pessoa, trouxe números, dados, colocou seu corpo em campos de guerra. 

Em tempos de mortes, assassinatos a céu aberto e a fragilidade do medo, finalizo dizendo que a justiça vai muito além da condenação de réus responsáveis por corpos que tombaram antes e depois de Marielle. Fazer justiça significa lutar para que defensores e defensoras de direitos humanos sigam vivos, lutando de forma segura. A democracia segura é aquela que a gente faz com vida. Fiz 34 anos, e só quero viver. Minha sentença (coletiva) não deveria ser utopia.

*Um agradecimento especial ao portal Alma Preta Jornalismo e Nós, mulheres da periferia pelo levantamento de dados e pesquisas publicadas.

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