O lobby do minério na Amazônia preservada

Pôr do sol no rio Negro, na Amazônia. Foto Christophe Simon/AFP

Empresas avançam no Congresso e nas aldeias para explorar região da floresta onde o ‘bem viver’ ainda é regra entre os indígenas

Por Luis Edmundo Araújo | ODS 15 • Publicada em 8 de outubro de 2019 - 10:04 • Atualizada em 8 de outubro de 2019 - 15:41

Pôr do sol no rio Negro, na Amazônia. Foto Christophe Simon/AFP
Pôr do sol na Amazônia. Protegido pela dificuldade de acesso, o Alto Rio Negro desperta o interesse de mineradoras. Foto Christophe Simon/AFP
Pôr do sol na Amazônia. Protegido pela dificuldade de acesso, o Alto Rio Negro desperta o interesse de mineradoras. Foto Christophe Simon/AFP

(São Gabriel da Cachoeira, AM) – Parece enorme, mais intenso, com uma variedade nunca vista de nuances, o tom rosa do pôr do sol na terra indígena do Alto Rio Negro, ou pode ser só impressão, influência de se estar numa das áreas mais preservadas da Floresta Amazônica. Anoitece na comunidade de Irari Ponta, à beira do Rio Içana, perto da foz que deságua no Negro, e o menino índio, com o auxílio da lanterna presa à cabeça pela tira de elástico, retira com a cuia a água acumulada na canoa, sobe na embarcação de madeira bem do tamanho dele, pequena, e sai remando entre troncos de árvores quase submersas para sumir fazendo a curva, ele e o facho de luz da testa adentrando na lagoa que, junto com o rio, abraça a aldeia.

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“Ele vai buscar peixe. Botou anzol, armadilha, e agora tá na hora de pegar pro jantar”, diz, com a água do Içana na altura da cintura e dela pra cima, todo ensaboado, Juvêncio Cardoso, secretário-geral dos povos Baniwa e Coripaco na Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, a Foirn. “Quando eu era criança também era responsável pelo peixe”, completa Juvêncio, que na língua de seu povo, Baniwa, se chama Dzoodzo. Ele é professor na comunidade onde nasceu e mora, Santa Isabel do Rio Ayari, outro afluente do Negro, ainda mais a noroeste dali, no alto da região da Cabeça de Cachorro, chamada assim pelo formato do mapa dos 79.993 quilômetros quadrados da terra indígena colada à Colômbia e bem próxima à tríplice fronteira, também com a Venezuela.

[g1_quote author_name=”André Fernando Baniwa” author_description=”Ex-presidente da Foirn” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Estudava na quarta série, já entendia alguma coisa de português. O cara chegava com o capitão assim, dizendo, ‘somos garimpeiros, trabalhamos com dinheiro, como está a sua comunidade? Cadê escola? Cadê casa de saúde? Não tem? Nós vamos trazer isso, vamos trazer aqui escola, vamos pagar professor, vamos trazer hospital, vocês não vão adoecer mais

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A mais extensa bacia de água negra

Junto com outras seis terras indígenas homologadas (Rio Apapóris, Balaio, Cué-Cué Marabitanas, Rio Téa e Médio Rio Negro I e II), o Alto Rio Negro forma a mais extensa bacia de água negra do planeta. O reconhecimento oficial disso se deu em março do ano passado, durante o 8º Fórum Mundial da Água, em Brasília, quando a Bacia do Rio Negro, onde vivem 23 povos indígenas, muitos deles misturados em 750 comunidades espalhadas por 11,2 milhões de hectares, recebeu o título de Sítio Ramsar, passando a ser considerada zona úmida de importância internacional. A Convenção Ramsar entrou em vigor em 1975 e tem o nome da cidade iraniana onde foi assinado, no dia de Iemanjá, 2 de fevereiro de 1971, o tratado que reconheceu a importância ecológica e os valores sociais, econômicos, culturais e recreativos das zonas úmidas. O tratado tem hoje 169 países signatários, entre eles o Brasil, que assinou o documento em 1993.

Juvêncio tomava banho no intervalo do encerramento da segunda oficina de meliponicultura da região. O encontro reuniu, em Irari Ponta, representantes de alguns dos 20 povos do Alto Rio Negro, a maior e mais populosa das sete terras da Bacia, declarada indígena em maio de 1996 e homologada em abril de 1998. “Muita coisa está sendo ameaçada. A gente se sente inseguro, preocupado. Nós estamos nessa idade bem vivida, no bem viver desde os nossos antepassados, mas imagine o que vai ser dos nossos filhos se nossos direitos forem extintos”, especulava, no calor abafado, molhado, do início da tarde, Carlos de Jesus, 44 anos, Baniwa, espécie de mestre-de-cerimônias da oficina, ao ser perguntado sobre este atual governo Bolsonaro.

Garimpo ilegal em Porto Velho. Foto Carl de Souza/AFP

Expressão corriqueira entre integrantes do movimento indígena e defensores da preservação, o “bem viver” é o índio, menino, indo buscar o peixe fresco do jantar com a noite caindo; é a vida livre, integrada à natureza da floresta e, no momento, ameaçada pela pauta, digamos, ambiental do governo federal. “Com esse conjunto de políticas desse presidente, Jair Bolsonaro, a intenção dele é extinguir os direitos indígenas”, vaticinava Carlos, que é professor itinerante, contratado pelo governo estadual do Amazonas para passar cada ano numa comunidade diferente, dando aulas multidisciplinares.

Ameaça tem nome e não precisa de sobrenome

Do avião, chegando a São Gabriel da Cachoeira (AM), município mais indígena do país e terceiro maior em extensão – com 109.184,8 quilômetros quadrados que englobam quase toda a Cabeça de Cachorro, mais outras terras indígenas, como as dos Yanomami, onde fica o Parque Nacional do Pico da Neblina -, dá pra notar os círculos de árvores caídas, cortadas, que pode dar a falsa impressão de desmatamento. São as roças dos moradores da região, a maioria de mandioca brava, cultivada com a técnica conhecida como coivara, que combina queima, plantio e manejo de capoeira, usada também por comunidades quilombolas. Em 2010, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) reconheceu esta técnica como Patrimônio Cultural Brasileiro. Por ser zona úmida, a Bacia do Rio Negro não tem madeira atraente para o corte em larga escala. Não há serrarias por lá e a terra também não é boa nem para o agronegócio, nem para a pecuária. O risco à preservação atual da região tem um nome só: mineração.

“Começou a partir de 2015, surgiram novamente pessoas que vieram aqui e tiveram interesse em explorar nosso território, trazendo discurso contrário ao movimento indígena, dizendo que a Foirn estava impedindo a entrada de pessoas que poderiam ajudar as comunidades”, contava Dzoodzo, na sala de reunião da sede da Foirn, no Centro de São Gabriel da Cachoeira, um dia antes da conversa tomando banho no Içana. “Veio essa política aí também, refletiu pra cá. Agora, depois que esse presidente ganhou, esses empresários que têm interesse, parece que eles se sentem vitoriosos, porque acreditam que nessa gestão vai ser regulamentada a mineração em terras indígenas e que a partir da regulamentação, virá a revisão da demarcação da terra indígena e com isso eles vão entrar”.

Uma das paredes da sala de reuniões da Foirn tem o mapa da Bacia do Rio Negro com suas terras, rios e comunidades. Outra tem o mesmo mapa, sem rios nem comunidades, com a divisão em cores em determinados pontos, vários quadrados colados, em várias cores, a maioria deles no alto da Cabeça do Cachorro. “Tudo isso aqui é regional do Içana. Todos esses quadradinhos já são áreas requeridas das empresas que estão registradas aqui, todas as empresas com seus códigos em cada pedacinho dessa área que tá intacta lá, ainda, mas é uma luta”, dizia Isaías Pereira Fontes, diretor-executivo da Foirn responsável pela regional do Içana, apontando o mapa da sala de reunião da sede da ONG, na véspera da entrevista com Juvêncio. “É essa questão de demarcação de terra que tende a segurar essa entrada de grandes empresas”.

Cada cor é um minério no mapa das áreas requeridas por mineradores no Alto Rio Negro. Foto Luis Edmundo Araújo

Antes da vitória de Bolsonaro, o resultado das últimas eleições municipais de São Gabriel da Cachoeira, em 2016, já tinha sido de derrota para os defensores da preservação. Indígena, do povo tariano, Clóvis Moreira Saldanha, ou Clóvis Curubão, foi eleito prefeito pelo PT com 4.649 votos (30,19%), tendo como mote principal de sua campanha a defesa da mineração em terras demarcadas. Ex-garimpeiro, fundador de uma cooperativa indígena de mineração, o prefeito estava em viagem a Manaus dos dias 22 a 26 de maio. Em entrevista à BBC Brasil, em maio de 2017, disse que, no município, “todo mundo tinha medo de falar em mineração, então fomos a Manaus pedir ajuda aos políticos de lá”. Até agora, porém, faltando menos de dois anos para terminar o mandato do prefeito, os projetos de mineração não avançaram, muito por causa das demarcações das terras indígenas, mas também devido às dificuldades impostas pela maior protetora da região: a natureza.

A partir de São Gabriel da Cachoeira, subindo, o Rio Negro já não tem a imensidão de mar de alguns trechos mais próximos a Manaus, de onde, navegando no meio dele, não dá pra ver uma das margens e quase não dá pra ver a outra. É grande, ainda, mas sempre com as duas margens visíveis e mais barulhento. Apesar do artigo definido, o nome do município não se refere a uma queda d’água específica, e sim às corredeiras do Negro e de outros rios da região. Em alguns trechos, é preciso desembarcar e embarcar mais à frente, para que só um piloto experiente passe com o barco. Em outros, nos piores dias, é necessário carregar o barco por terra até ultrapassar a cachoeira, ou corredeira.

Renê André, o cacique-capitão Ovídio Pereira e a sua mulher, Leonilda. Foto Luís Edmundo Araújo

Um cacique chamado de capitão

Nas comunidades do Alto Rio Negro, o antigo cacique é chamado de capitão. Em Irari Ponta, a patente é de Ovídio Júlio Cordeiro Pereira, do povo Baré, que, mais em nheengatu do que em português, recebeu a comitiva do movimento indígena para o almoço no centro comunitário, à base de farinha da mandioca brava local e do ensopado de Dakiru, peixe pequeno e gostoso, de carne branca e macia, do Içana. “Pesca, caça e roça tá suficiente pra gente levar a vida. Queremos terra livre pra pescar, caçar e fazer roça”, dizia Meraldino Cordeiro da Silva, Baniwa de 41 anos, presidente da Associação Indígena do Baixo Rio Içana (Aibri) e morador de Boavista, comunidade vizinha a Irari Ponta e considerada das maiores da região, com cerca de dois mil habitantes, situada bem no encontro das águas do Içana com as do Rio Negro.

A demarcação contínua dos 11,2 milhões de hectares das terras da Bacia do Rio Negro, e não em colônias separadas, foi conquista do movimento indígena até hoje enaltecida. “Nossos líderes, que nos antecederam, conseguiram imaginar o futuro que aqui estamos”, disse Isaias, em frente ao mapa com os rios e comunidades da região, na sede da Foirn. “A gente sai daqui pra longe, pra pescar, caçar, fazer roça. Nunca vamos aceitar separação das terras”, afirmou Meraldino, no galpão do centro comunitário de Irari Ponta.

Aos 59 anos, o capitão da comunidade vive também da pesca, da roça e da caça, além do benefício de R$ 400 mensais que passou a receber depois de perder o dedo mínimo da mão esquerda, em 2016, quando pescava. “Foi Mandi, peixe pequeno, mas tem mordida forte, tipo arraia. Fui tirar do anzol”, contou Ovídio Pereira, de bermuda e camisa social de manga curta, o relógio prateado no pulso esquerdo e a sandália de dedo de dez entre dez indígenas das comunidades. Capitão de Irari Ponta há 37 anos, eleito e reeleito de quatro em quatro pelos moradores, Ovídio, como todo mundo na aldeia, construiu a própria casa e ajudou, em mutirão, na construção das outras, todas em madeira, pintadas em pelo menos duas cores diferentes, cada. Ele mora atualmente com a mulher, Leonilda, e o sogro, Renê André, os dois do povo Baniwa, da comunidade de Ambaúba, a três horas de Irari Ponta subindo o Içana.

“Moro aqui a vida inteira, gosto, me criei aqui, mas não tem mais tanto peixe”, afirma o capitão de Irari Ponta, dando a entender como o desmatamento acelerado, mesmo distante, atinge a região. “A gente tem de viajar quatro dias rio acima, pelo menos, pra conseguir peixe”. Ovídio estava a cinco dias de casa quando foi mordido pelo Mandi que lhe tirou o dedo. Em relação à caça, a conta é a mesma. “Pra conseguir cem quilos de carne, tem que viajar quatro dias”, reforça Renê André, o sogro do capitão de Irari Ponta que, aos 77 anos, o acompanha nas viagens, uma ou duas por mês, atrás do peixe e da anta, da paca, do macaco-prego, do macaco-barrigudo…

Mais longe ainda, nas áreas de fronteira com a Colômbia e do Pico da Neblina, está o ouro. “Para explorar lá tem que ser com máquina, porque é na pedra, então é difícil. Daqui até lá, você vai até o km 85 da estrada, aí pega uma voadeira, motor 40, anda um dia pelo rio até o local principal, aí começa a caminhada. Claro que a área é tão grande que você não vai dizer que não tem garimpeiro, mas é complicado”, diz José Ribamar Caldas Lima Filho, chefe do Setor de Planejamento da Coordenaria Regional (CR) Rio Negro da Funai, coordenador substituto e ex-prefeito, o segundo a ser eleito na cidade, em 1988. O chamado garimpo artesanal, aquele com peneira, nos rios, é liberado, mas, pelo menos em Irari Ponta, não desperta muito interesse. “Se a gente encontrar ouro, claro que a gente vai trabalhar, mas é de peneira, e assim tá difícil”, afirma Meraldino.

Dentro do Parque Nacional do Pico Neblina tem também, na terra indígena Balaio, o Morro dos Seis Lagos, cada um deles com a água de uma cor diferente, todos ricos em minerais como ferro, manganês e o já famoso Nióbio. Muito provavelmente deslumbrante, o lugar só recebe visitas para pesquisas, até porque chegar lá não é fácil, e para produzir minério, então, demandaria investimentos que, no momento, não compensariam, sem falar no desmatamento inevitável, em caso de mineração, deste paraíso isolado. “É a maior reserva de nióbio do país, só que pra explorar isso aqui, só daqui a cem anos, porque esse mesmo nióbio nós temos lá em Araxá, Minas Gerais, que é mais fácil. Aqui você tem que ter uma ferrovia, ligando pra Manaus ou pra outro lugar, Venezuela, e o nióbio ainda é um preço baixo, não compensa fazer”, avalia José Ribamar, bem de acordo com o último relatório sobre o minério exposto no site da Agência Nacional de Mineração.

Maior jazida de nióbio do mundo

Publicado em dezembro de 2017, mas relativo ao ano de 2003, o documento relata que a Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM), que explora as reservas de Araxá, “supre todo o mercado nacional”. No mesmo documento, o antigo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), que deu lugar à Agência, afirmava que “em função da estabilização da demanda e oferta do nióbio no mercado mundial, em função do nível de reservas existentes para atender toda a demanda (…), não foram apresentados nem previstos projetos pela CBMM no ano de 2003”. No último tópico, como “outros fatos relevantes”, o relatório informa que “no dia 16 de outubro de 2003 a Cia de Pesquisas e Recursos Mineriais – CPRM – encerrou a licitação da maior jazida de nióbio do mundo, com cerca de 2,9 bilhões de toneladas, localizada em São Gabriel da Cachoeira-AM, na região de Seis Lagos”.

Basílio Rodrigues, vereador, é a favor da mineração, mas lembra histórico de destruição dos garimpos. Foto Luís Edmundo Araújo

De acordo com levantamento do DNPM, o Brasil tem 98% das reservas de nióbio em operação do planeta e 75% da produção nacional saem da jazida de Araxá, da CBMM, líder mundial, disparado, do mercado. Ao lado de Meraldino, no centro comunitário de Irari Ponta, Anderson Tomaz Ferreira, também Baniwa e morador de Boavista, fazia coro ao “parente”, como os indígenas da região, mesmo de povos diferentes, se chamam entre eles. “Não precisamos de muitas riquezas. A terra é mais do que apenas para cultivar e ganhar dinheiro. É conhecimento, cultura”.

Uns dizem que a maioria da população defende a mineração, outros afirmam que a divisão é meio a meio e há quem diga que, ultimamente, diante da falta de avanço nos projetos da cooperativa de minério, a defesa da demarcação tem ganhado força entre os moradores do Alto Rio Negro. Não há pesquisa sobre o tema, mas a opinião do vereador do PSL Basílio Rodrigues, 42 anos, Coripaco da comunidade de Jerusalém, no Alto Içana, a três dias de barco motor 40 de São Gabriel da Cachoeira, ilustra bem as dúvidas e receios até de quem é a favor da mineração. “Eu sou a favor, mas na minha região mesmo, no Alto Içana, a maioria é contra, então eu respeito, por isso não estou, assim, lutando, não”, afirmou o vereador, na quinta-feira, 23 de maio, em entrevista no gabinete dele na Câmara.

Basílio está no primeiro mandato. Ele saiu de sua comunidade, onde trabalhava como agente de saúde, aos 37 anos, para fazer o curso técnico de enfermagem em São Gabriel da Cachoeira. “Quando concluí o curso, entrei na campanha e acabei participando da política”, conta o vereador, atual vice-presidente da Câmara Municipal, que, mesmo favorável, mantém seu pé atrás em relação à mineração. “O garimpo conseguiu funcionar várias vezes, e em vez de beneficiar acabou destruindo algumas famílias em algumas comunidades. A gente chamava os que mexem na mineração pra ver onde estava realmente (o minério), só que eles nunca foram transparentes, os empresários, técnicos, sempre escondem alguma coisa, vêm dizendo, ‘não, viemos aqui ajudar’, mas eles vêm querer forçar a gente pra fazer abaixo-assinado, mas pra eles, a gente fica pra trás, por último na fila. Por isso que, se eu concordasse, teria de ser uma negociação bem longa, bem fechado mesmo, num acordo sério. O empresariado iria trazer maquinário, apenas viriam pra mostrar quais são as pedras preciosas, os valores reais, mas isso nunca vai existir, porque cada um só pensa no próprio interesse, esse é o problema”.

Os garimpos do Alto Rio Negro começaram a ser explorados na década de 70, quando havia apenas um pequeno posto da Funai para toda a região. Aproveitando a ausência do Estado, empresas como a Paranapanema e a Gold Amazon tomaram para si a Serra do Porco, no Alto Içana, onde o ouro já era garimpado pelos indígenas de maneira artesanal, na peneira. Com a chegada do homem branco, com todo o maquinário das empresas, os indígenas foram proibidos de garimpar e passaram a conviver com a rotina da bebida, das drogas, da prostituição e dos conflitos terminados em morte. Não foi diferente, a partir de meados da década de 80, nas serras do Caparro e do Traíra, essa mais perto de outro afluente do Negro, o Rio Tiquié, no distrito de Pari-Cachoeira.

Ex-presidente da Foirn, Baniwa da comunidade de Tucumã, no Médio Içana, André Fernando Baniwa era criança ainda, mas não esquece o que escutou na época. “Estudava na quarta série, já entendia alguma coisa de português. O cara chegava com o capitão assim, dizendo, ‘somos garimpeiros, trabalhamos com dinheiro, como está a sua comunidade? Cadê escola? Cadê casa de saúde? Não tem? Nós vamos trazer isso, vamos trazer aqui escola, vamos pagar professor, vamos trazer hospital, vocês não vão adoecer mais’”, lembrou André, na manhã de segunda-feira, 27 de maio, numa padaria do Centro de Manaus, onde está morando por questões familiares. Segundo ele, foram extraídas “trinta, cinquenta toneladas de ouro” do Alto Rio Negro sem quaisquer benefícios aos Baniwa, que tiveram suas lideranças cooptadas pelas empresas. “Deixaram o Içana sem liderança, assim que fizeram com os líderes da época, então a gente não sabe exatamente o que aconteceu, o que a gente viu é que a empresa deu um barco para o trecho de Nazaré até Vista Alegre e deu o equivalente a mil reais a cada comunidade, pra abrir cantina”.

No início da década de 90, quando retornou à Funai, após encerrar seu mandato na prefeitura de São Gabriel da Cachoeira, José Ribamar se deparou com a mineração em terra indígena em pleno andamento. “Fui a Brasília e perguntei: que que tá acontecendo? Essas empresas, vocês autorizaram? ‘Não, eles pediram autorização pra fazer uma pesquisa’. Só que eles não estavam fazendo pesquisa, estavam explorando”, conta o ex-prefeito. As empresas tiveram de sair da região, deixando, pelo menos, uma nova sede para a Funai, de dois andares, bem em frente ao Rio Negro. “Saíram na boa. Essa casa aqui eu tive até que comprar deles”, revela Ribamar.

Depois disso, a quantidade de garimpeiros se aventurando pela terra indígena se limitou a pequenos grupos reprimidos e desmembrados, de quando em quando, por operações do Exército, até que Michel Temer assumiu a Presidência da República. No dia 24 de junho do ano passado, a Folha de São Paulo informou que Elton Rohnelt, assessor do então presidente Temer, e o empresário paulista Otávio Lacombe vêm tentando convencer comunidades Baniwa da Bacia do Içana a praticar a mineração, e que o objetivo principal é a tantalita, usada pela indústria eletrônica, principalmente, nos smartphones. Ex-dono de garimpo, ex-deputado federal por Roraima, Rohnelt fundou a Gold Amazon nos anos oitenta e, recentemente, deixou 10% da empresa em nome de sua filha, Carolina, e vendeu 90% à Lacombe.

“O pai desse Lacombe (Octavio Lacombe), nas décadas de 70 e 80, levou apoio para as comunidades em troca de entrar no garimpo que os Baniwa tinham descoberto, então, nesse período que essas empresas andaram ali, fizeram vários requerimentos de pedaços de terra para prospecção mineral, e hoje o pai dele já faleceu, mas ele volta com toda força”, conta André Baniwa. Segundo a matéria da Folha, Lacombe comprou o controle acionário de outras duas mineradoras fundadas por Rohnelt, a Edgar Rohnelt (em homenagem ao pai do ex-assessor de Temer) e a Sergam. Juntas, as três empresas têm 95% dos requerimentos de pesquisa representados pelos quadrados coloridos do mapa da Cabeça de Cachorro exposto na sede da Foirn. Tomando como base o Estatuto do Índio, de 1973, que permite a garimpagem rudimentar, os dois estariam pressionando pela aprovação do Projeto de Lei 1610/96, do senador Romero Jucá (MDB-RR), que prevê prioridade para os pedidos das empresas de Lacombe e Rohnelt no Alto Rio Negro em seu Artigo 19, ao deliberar que “os requerimentos de autorização de pesquisa e de registro de licença que objetivem as áreas situadas em terras indígenas, e que tenham sido protocolizados antes da promulgação da Constituição de 1988, serão analisados pelo órgão gestor dos recursos minerais, para fins de declaração de prioridade”.

Para tentar convencer os moradores da região, Lacombe tem participado de reuniões desde 2016 em comunidades como a Castelo Branco, onde André Baniwa esteve diante do empresário. “Fui ouvir pra ajudar a esclarecer os direitos indígenas. Ele falou do mesmo jeito que o pai dele e eu perguntei isso, e ele falou: ‘não interessa o passado’. Só que os Baniwa já sabem mais do que naquela época, matemática, já entendem mais português também. Quando ele demonstrou o plano de exploração, o custo de cada quilo de tantalita e no final quanto ficaria pra quem ia extrair, era menos do que uma lata de farinha. Ele fracassou aí, as comunidades saíram na hora, melhor trabalhar minha farinha do que trabalhar pra ele, disseram, mas existe ainda o risco”.

A Constituição de 1988 admite a possibilidade de mineração em terras indígenas, desde que a atividade seja regulamentada pelo Congresso, com as comunidades sendo ouvidas e recebendo participação nos lucros. O projeto de lei de Romero Jucá, aprovado no Senado na década de 90, está parado desde então na Câmara. Agora, o Poder Executivo resolveu fazer a sua parte e o Ministério de Minas e Energia avalia aproveitar o texto do senador do MDB para regulamentar a mineração em terras indígenas, uma das principais promessas de campanha de Bolsonaro. No sábado, 27 de julho, o presidente disse, durante a formatura de paraquedistas das Forças Armadas na Vila Militar do Rio de Janeiro, que indicou seu filho, o deputado federal Eduardo (PSL-SP), para a embaixada do Brasil em Washington para ir atrás de investidores interessados na extração mineral em terras indígenas.

Luis Edmundo Araújo

Jornalista, começou como repórter do jornal O Fluminense, de Niterói, e redator da revista Incrível, da Editora Bloch. Trocou tudo pra ser repórter de Cidade do Jornal do Brasil, até sair pra ser repórter da revista Istoé Gente. De 2005 a 2016, foi editor do Jornal do Commercio, editor de Empresas, Economia, Mundo, Rio, SP, Brasília, Minas, Opinião, Direito & Justiça e, principalmente, País. Colaborou com o blog O Cafezinho em 2016 e 2017, e em 2018 participou da aventura da volta do Jornal do Brasil impresso, como editor-assistente de Política. Agora, batalha por uma causa dada como perdida: o jornalismo literário

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