‘O Brasil é quem mais se beneficia do Mercosul’, diz especialista

América do Sul: o Brasil se mantém como o líder do continente (Foto: Science Photo Library)

Futuro ministro da Economia, Paulo Guedes diz que bloco não será prioridade; especialista fala da importância do Mercado Comum do Sul para desenvolver a região

Por Bibiana Maia | ODS 15 • Publicada em 6 de novembro de 2018 - 16:48 • Atualizada em 10 de novembro de 2018 - 18:30

América do Sul: o Brasil se mantém como o líder do continente (Foto: Science Photo Library)
América do Sul: o Brasil se mantém como o líder do continente (Foto: Science Photo Library)
América do Sul: o Brasil se mantém como o líder do continente (Foto: Science Photo Library)

Criado nos anos 90, o Mercosul faz parte de um esforço de integração da América do Sul que remete aos anos 50, e segue sendo importante para o desenvolvimento regional e da economia brasileira. É o que acredita o professor Luciano Wexell Severo, do Instituto Latino-Americano de Economia, Sociedade e Política da UNILA, que pesquisa o papel do Brasil como líder regional e as relações de comércio, investimento, integração financeira e de infraestrutura com os países vizinhos. Para ele, o Brasil tem mais a ganhar fortalecendo as relações com os países do continente. Entretanto, o Mercosul deve ficar em segundo plano no governo do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL). Questionado pela repórter Eleonora Gósman, do jornal Argentino Clarín, Paulo Guedes, futuro ministro da área econômica, declarou que o bloco “não será prioridade”. Severo explica que, diferentemente da União Européia, o Mercosul busca o fortalecimento da integração na solução de assimetrias entre economias maiores e menores, e que um governo não deve mudar a tendência histórica do Brasil de liderar os países da região.

#Colabora: Quando e como começa a ser pensada a criação do Mercosul?

Luciano Wexell Severo: O Mercosul é resultado de um desenho integracionista que surge nos anos 1950. Havia, desde então, uma preocupação com a formação de um polo de poder que pudesse fortalecer-se de maneira conjunta, a partir da capacidade produtiva da potencialidade das riquezas naturais e das culturas dos nossos países. E há um amadurecimento muito claro nos anos 1960 e 1980. No entanto, todos estes avanços acabam condicionados pelo cenário internacional. Idealizado nos anos 1980, o bloco tinha preocupação com as assimetrias entre os países. A economia brasileira é cinco vezes maior que a da Argentina, que é maior que a do Uruguai, por exemplo. Para o Mercosul ser forte e duradouro, deveria descontruir as assimetrias e não aprofundá-las. A questão é que, em 1989, cai o muro de Berlim e em 1991 cai a União Soviética. Se impõe uma ideia de capitalismo liberal, que ganhou forma com o Consenso de Washington. Essa vitória fecha as portas do socialismo e de um capitalismo com intervenção do estado. O Mercosul que se cria em 1991 é fruto deste novo cenário. As preocupações dos anos 1980 foram deixadas de lado e ganha forma um projeto que visa à liberalização comercial, sem se preocupar com assimetrias.

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Paraguai, Uruguai e Argentina estão há milhões de anos de desenvolvimento, e o Brasil soube interpretar bem esta realidade geopolitica desde José Bonifácio, do papel que ele tem sobre os países da região. Não será um governo que conseguirá modificar um tendência  histórica de se relacionar com estes vizinhos.

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Esta proposta de um Mercosul preocupado com as assimetrias das economias regionais existe mesmo durante os períodos de ditadura?

Impressionantemente sim. Nos anos 1950, há uma aproximação entre Getulio Vargas e o argentino Juan Domingo Perón, com comissões binacionais para criar um eixo Brasil-Argentina. No governo Jânio Quadros e Arturo Frondize, que governou a Argentina de 1958 a 1962, também, esse processo continua. Na ditadura militar, durante dois governos é estancado, no Castello Branco e no Médice. Costa e Silva, Geisel e Figueiredo continuam este plano com força, com uma preocupação complexa econômica: comercial, financeira, produtiva e de infraestrutura. Isso avança no governo Sarney e Raúl Afonsín, na Argentina. Se pensa inclusive em uma moeda comum, o Gaucho. Mas recua nos anos 1990. O Mercosul foi pensado em um cenário, com preocupação de substituir importações e considerando o protecionismo como válvula de escape para países menores. Mas criou, então, um Mercosul Fenício, voltado para o comércio, e não voltado para integração, além de ter um descuido com outros componentes da parte econômica. Isto dura até o fim do Plano Real. Com a desvalorização da moeda em 1999, entra em crise. O Brasil quebra e leva a Argentina, que quebra, em 2002, e o Uruguai, em 2003. Surge uma nova fase nos anos 2000, em uma onda de governos progressistas no Brasil e Argentina, com vitórias do presidente Lula aqui e na Argentina, com Néstor Kirchner. Eles passam a resgatar a agenda complexa do Mercosul dos anos 1980.

O que acontece nesta nova fase do bloco?

Há uma ampliação da perspectiva não só econômica, mas política e social. Amplia-se a agenda com, inclusive, cooperação entre defesa. O viés econômico fica mais complexo: produtivo, financeiro e de infraestrutura. Exemplo disso é o acordo de indústria automobilística que passou a significar grande parte do comércio do Mercosul entre Brasil e Argentina, que passa a ser de bens de valor agregado e sofisticação tecnológica. Outra questão é o sistema de moedas locais, que permite que comercializem sem a necessidade obrigatória de usar dólares, divisas internacionais. Há um acordo entre os bancos centrais que permite isso.

Como se insere a questão ambiental no Mercosul?

Há uma articulação para posicionamentos comuns nos fóruns internacionais. Mas é tudo muito incipiente, haveria mais espaço para avançar, por exemplo, no Parlasul (o Parlamento do Mercosul). Aqui no Brasil, os deputados para este parlamento não são eleitos para isso, não sabem espanhol, não sabem as peculiaridades, enquanto outros países têm eleições. Lá seria o espaço para estas questões, mas tem menos peso porque o Parlasul é consultivo e não deliberativo. A gente ainda está engatinhando nesta questão.

Qual o sentido da Tarifa Externa Comum, criticada por amarrar o Brasil?

A TEC acaba significando a amálgama que une internamente e protege externamente estas economias. A crítica existe por proibir acordos bilaterais com terceiros, que atenua o esforço de longo prazo de integração ao não criar uma proteção comum e enfraquecer a integração das estruturas produtivas. Para o mundo, o Brasil vende produtos primários e para a região ele vende produtos manufaturados. Neste sentido, para a sofisticação da cadeia do Brasil e para a criação de um esforço de liderança, o custo da TEC e a impossibilidade de acordo bilaterais com terceiros seria menor que o processo de integração e a venda de maior valor agregado.

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Eu vi o presidente eleito dizendo que o Mercosul foi criado com outra perspectiva e foi deturpado. Mas o bloco foi implementado ao contrário do que foi pensado e nos anos 2000 se resgatou. São questões de narrativa e perspectiva.

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Como você entende esse direcionamento do novo governo de colocar o Mercosul em segundo plano, segundo o futuro ministro Paulo Guedes?

Paraguai, Uruguai e Argentina estão há milhões de anos de desenvolvimento, e o Brasil soube interpretar bem esta realidade geopolitica desde José Bonifácio, do papel que ele tem sobre os países da região. Não será um governo que conseguirá modificar um tendência  histórica de se relacionar com estes vizinhos. O que entendo da fala do futuro ministro é que deixa de ser a prioridade central da política externa. No entanto, ele mesmo se corrige na frase ao dizer que aquilo que quis expressar é que seria dada importância para outros países e outras regiões, e não continuar com esforço político e ideológico do Mercosul e Unasul. Os empresários brasileiros que exportam na região serão eles mesmos os defensores da continuidade de muitas políticas. E qualquer movimento que possa vir a modificar este cenário, será custoso politicamente e economicamente, e demandará tempo.

E quanto à crítica sobre o viés ideológico do Mercosul?

Todo este período dos anos 2000 é taxado pelos liberais, e o novo governo demonstra isso, como ideológico como se nos anos 1990 e agora também não fossem. Usam este termo para desqualificar. Eu vi o presidente eleito dizendo que o Mercosul foi criado com outra perspectiva e foi deturpado. Mas o bloco foi implementado ao contrário do que foi pensado e nos anos 2000 se resgatou. São questões de narrativa e perspectiva.

O discurso de colocar em segundo plano é reflexo de uma onda internacional, impulsionada por Brexit?

Eu interpreto que a saída da Grã-Bretanha da União Européia, mesmo não tendo entrado na Zona do Euro, a fragmentação dentro da Espanha, as tensões em Portugal, Irlanda, Itália e Grécia (PIIG), o contrário do nosso movimento. Eles estão sofrendo da crise de um processo de integração assimétrico. O esforço deles, principalmente os PIIGs, é uma questão de processo assimétrico capitaneado pela Alemanha e a França. O nosso esforço de integração tem sido, desde 2003, de edificar um processo que desconstruísse as assimetrias. Por isso, é permitido os países menores tenham espaço para suas políticas internas, e não poderíamos impor o livre comércio de aniquilação das indústrias menores. Na União Européia, se criaram instrumentos de coordenação de políticas macroeconômicas que exige esforços que constrangem o desenvolvimento de países menores, como taxa de inflação e grau de endividamento. Eles estão reconsiderando o Euro, pois perderam suas soberanias monetárias.  A Inglaterra sai do bloco porque acha que não se beneficia e isto poderia ser visto aqui como nosso papel, mas a gente é quem mais se beneficia do Mercosul e pode se beneficiar. Se a Argentina não se integrar com o Brasil, vai se integrar com outras potências. O Brasil tem que escolher o papel dele neste processo, se é vendedor de petróleo ou líder de um processo mais altivo e soberano.

Bibiana Maia

Jornalista formada pela PUC-Rio com MBA em Gestão de Negócios Sustentáveis pela UFF. Trabalhou no Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio) e nos jornais O Globo, Extra e Expresso. Atualmente é freelancer e colabora com reportagens para jornais e sites.

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