Luto, depressão e roubo na mineira Brumadinho

Um ano depois da tragédia com 270 mortos, MPF indicia 16 pessoas, entre elas o ex-presidente da Vale. Parentes das vítimas tentam reconstruir suas vidas

Por Liana Melo | ODS 15 • Publicada em 23 de janeiro de 2020 - 19:24 • Atualizada em 21 de janeiro de 2022 - 19:52

Protesto contra a Vale em Brumadinho: impunidade. Foto de Douglas Magno/ AFP

Havia sete meses que o pequeno Matheus morrera no hospital. Prematuro, o filho de Estefânia Braga faleceu 15 dias depois de nascido. Ela ainda tentava superar a morte do bebê quando perdeu o marido. Inspetor da Área de Mecânica da Vale, Rodrigo Braga estava trabalhando quando a barragem da Mina do Córrego do Feijão, na cidade mineira de Brumadinho, rompeu. Minutos antes da tragédia ocorrer, marido e mulher conversaram por whatsapp. O casal acabara de decidir por uma nova gravidez. Ela estava em casa e ele no trabalho. Se despediram às 12h17. O rompimento da barragem ocorreu três minutos depois.

Estefânia desligou o telefone e se dirigiu para o quarto de Matheus, onde tomou mais uma decisão: reformar a casa. Pensou em ligar novamente para Rodrigo, mas desistiu. Era hora do almoço, e ela achou melhor conversar com o marido à noite, quando ele chegasse em casa. Por volta das 13h, entrou novamente no whatsapp. Seu objetivo era rezar junto com outros membros do grupo de oração que participava no aplicativo de celular desde que perdera o filho. Ao ligar o telefone, soube do rompimento da barragem. Começava ali um segundo luto.

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Estefânia demorou 12 dias para identificar o que restou do corpo do marido no Instituto Médico Legal (IML). Rodrigo morreu soterrado na lama, assim como outras 270 pessoas, das quais 259 já foram identificadas. Onze continuam desaparecidas.

Estefânia Ramos Bragas ficou viúva após o acidente de Brumadinho. Arquivo de família
Estefânia Braga e o marido Rodrigo, que era funcionário da Vale e morreu na tragédia de Brumadinho (Foto: Arquivo de família)

Às vésperas de completar um ano da tragédia, que ocorreu num sexta-feira, dia 25 de janeiro de 2019, Estefânia soube pelos irmãos que o Ministério Público Federal de Minas Gerais havia denunciado 16 pessoas por mortes em Brumadinho. “Não acredito na Justiça brasileira”, disse, contando, por telefone, que, desde a morte do marido, vive sob efeito de calmantes — todos tarja preta. Com os R$ 100 mil que recebeu em “caráter emergencial” da Vale após a tragédia, mudou-se para uma cidade vizinha, Betim.

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Os denunciados concorreram de forma determinante para a omissão penalmente relevante quando aos deveres de providenciar medidas de transparência, segurança e emergência, que, caso tivessem sido adotadas, impediriam que mortes e danos ambientais ocorressem da forma e na proporção que ocorreram

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Desempregada, ela vive da pensão do marido e não aceitou ainda o acordo sugerido pela mineradora de indenizar os familiares das vítimas com R$ 700 mil, a ser pago a cada parente, incluindo marido, mulher, filhos, pai e mãe. “O que a Vale me tirou não tem preço”. Ela prefere não citar nomes, mas não esquece do que ouviu do chefe do setor onde o marido trabalhava: “Se eu tivesse alguma notícia do seu marido, informaria à empresa e não para a mulher dele”.

Foram 12 dias de uma agonia sem fim. Por duas vezes, Rodrigo entrou na lista de pessoas identificadas e que haviam sobrevivido à tragédia. Na esperança de encontrar o marido em algum hospital da cidade, Estefânia peregrinou por inúmeros hospitais — ela acreditava que ele estivesse vivo e desmemoriado. No seu périplo, costumava dar características do marido e informar que ele só saía de casa com um terço no bolso da calça. Foi graças ao objeto religioso que o corpo de Rodrigo foi identificado no IML, no dia 6 de fevereiro. “Seu corpo inteiro, mas já em estado de decomposição”.

Com o rompimento da barragem da Mina do Córrego do Feijão, a cidade de Brumadinho foi invadida por 9,7 milhões de metros cúbicos de rejeito de minério. Um lamaçal que atingiu o rio Paraopeba e destruiu vidas, famílias e sonhos, além de flora e fauna. O MPF concluiu que houve homicídio doloso e crime ambiental. Às vésperas de completar o primeiro ano da tragédia de Brumadinho, o órgão denunciou 16 pessoas, entre elas o ex-presidente da Vale Fábio Schvartsman. Entre os denunciados estão empregados da mineradora e da sua parceira no empreendimento, a alemã Tüv Süd.

Na sua denúncia, o MPF concluiu que “em um contexto de divisão de tarefas, os denunciados concorreram de forma determinante para a omissão penalmente relevante quando aos deveres de providenciar medidas de transparência, segurança e emergência, que, caso tivessem sido adotadas, impediriam que mortes e danos ambientais ocorressem da forma e na proporção que ocorreram”. A tragédia de Brumadinho ocorreu pouco mais de três anos depois do rompimento de uma barragem da Samarco, controlado pela brasileira Vale e pela anglo-australiana BHP Billiton, em Mariana.

Carlos Rodrigo Magalhães e as duas filhas, Gabriela (no colo) e Giovana, que perderam a mãe na tragédia de Brumadinho (Foto: Arquivo de família)
No dia do acidente, Carlos Rodrigo Magalhães, que trabalhava na área de manutenção elétrica da Vale em Brumadinho, começaria seu turno de trabalho às 15h. Sua mulher, Lenilda Martins Cardoso, estava no refeitório da empresa no horário que a barragem rompeu. Ela era gerente da Sodexo, que operava o restaurante dos funcionários da mineradora. Viúvo, ele não se conforma com o que ocorreu. Depois de duas décadas trabalhando na Vale — ele pediu demissão depois da tragédia, Carlos é taxativo: “A Vale acabou com a minha vida”. Ele conta, por telefone, que não consegue nem ver o ônibus da mineradora passar pelas ruas da cidade. A família mora a 8km de distância da empresa.
O corpo da mulher foi identificado 19 dias depois da tragédia. “Enterramos Lenilda nesse mesmo dia”. O calendário marcava dia 13 de fevereiro de 2019. De lá para cá, Carlos decidiu cuidar das duas filhas: Gabriela de 5 anos e Giovana, de 15. A caçula chora com saudades da mãe. A primogênita tem crises de pânico e já tentou se mutilar, tamanha a tristeza que sente com a morte da mãe. Os três estão sendo acompanhados por psicólogos.
Ao divulgar que indenizaria os familiares da vítimas com o valor de R$ 700 mil, a empresa transformou a cidade de Brumadinho num objeto de cobiça para forasteiros. Carlos conta que aumentou o número de roubos na cidade. “A Vale anunciou o valor da indenização como se fosse um prêmio”, indigna-se o viúvo, que, assim como Estefânia, não aceitou o acordo de indenização sugerido pela mineradora.
Liana Melo

Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “IstoÉ”. Ganhou o 5º Prêmio Imprensa Embratel com a série de reportagens “Máfia dos fiscais”, publicada pela “IstoÉ”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. Atualmente é repórter e editora do Projeto #Colabora.

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