Tragédia de Brumadinho expõe conflito ambiental na região

Agricultura, turismo e histórias de comunidades inteiras foram interrompidas ao longo do rio Paraopeba, após rompimento de barragem

Por Camila Nobrega | ODS 11ODS 6 • Publicada em 25 de fevereiro de 2019 - 08:14 • Atualizada em 4 de julho de 2019 - 19:26

Soraya faz parte de uma das 10 famílias que trabalhavam na horta de Tunico, em Parque da Cachoeira, distrito de Brumadinho. (Foto: Andre Mantelli)
Soraya faz parte de uma das 10 famílias que trabalhavam na horta de Tunico, em Parque da Cachoeira, distrito de Brumadinho. (Foto: Andre Mantelli)
Soraya faz parte de uma das 10 famílias que trabalhavam na horta de Tunico, em Parque da Cachoeira, distrito de Brumadinho. (Foto: Andre Mantelli)

A imensa massa marrom e amorfa hipnotiza. Engole e forma uma imensidão silenciosa em meio a uma área urbana. Há quase um mês, as referências sobre Brumadinho aparecem associadas a palavras como lama, resgate, desastre. A cidade se transformou, junto com a velocidade da avalanche causada pelos rejeitos da barragem da Vale, em um ponto georreferenciado acessado por diversas partes do mundo e alçado a uma das maiores tragédias industriais, sociais e ambientais da história. Mas, mais do que isso, uma visita ao local, combinada com entrevistas a moradores, técnicos, representantes de movimentos sociais e pesquisadores evidencia que a tragédia fez explodir a bomba-relógio de um conflito socioambiental na região. O desastre comprometeu toda a bacia hidrográfica do rio Paraopeba com lama tóxica e ameaça uma diversidade de modos de vida que coexistiam.

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Minha horta virou um cemitério, já foram achados 32 corpos só na nossa terra.

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De uma única horta compartilhada por dez famílias no Parque da Cachoeira, uma das localidades mais afetadas pelo rompimento da barragem em Brumadinho, saíam cerca de três caminhões cheios de alimentos que eram vendidos em Belo Horizonte toda semana. No dia 25 de janeiro deste ano, tanto a produção como toda a dinâmica da vida desses agricultores ficou congelada no segundo da passagem da lama. A água não pôde mais ser captada, alimentos que sobraram não puderam ser colhidos e a maior parte do terreno ficou debaixo de lama e está irreconhecível. Há um mês, as famílias convivem com o trabalho de bombeiros e recebem notícias perturbadoras. “Minha horta virou um cemitério, já foram achados 32 corpos só na nossa terra. Nossa vida ficou completamente paralisada”, contou a agricultora Soraya Campos, que fazia parte do grupo de famílias que compartilhava a horta.

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No dia em que foi entrevistada, Soraya contou que uma brigada de bombeiros havia acabado de encontrar um carro soterrado com três pessoas dentro na mesma horta. O automóvel estava completamente coberto por metros e metros de lama e só foi descoberto, a partir do trabalho com uso de escavadeiras.

Soraya observa o trabalho de escavadeira, que prepara o terreno devastado pela lama tóxica da Vale para o trabalho dos bombeiros. (Foto: Andre Mantelli)

Ela soma às agricultoras e aos agricultores atingidos pelo desastre. De acordo com o Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), o município de Brumadinho tem 2.100 imóveis rurais, que chegam a uma área de 53.608 hectares. Em toda a região da bacia do Rio Paraopeba (48 municípios), o sistema indica que há 56.084 imóveis rurais, numa área de 2.102.666 hectares.

Muito além da lente da tragédia, quem circula pela região atingida descobre diversas atividades econômicas, como a agricultura, criação de gado, o ecoturismo, a pesca, o transporte por barcos, esportes de aventura, como a escalada, além de diversas formas de organização social, incluindo aldeias indígenas.

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Nos chamavam de ecochatos, porque a mineração é o que traz empregos

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Assim como todos os demais moradores de Brumadinho, registrados até a data do rompimento, Soraya está entre os agricultores que receberão R$ 1 mil mensais da Vale, como medida emergencial, a partir de um Termo de Acordo Preliminar, assinado na última quarta-feira, dia 20 de fevereiro. Mas o valor não cobre a paralisação total da produção, segundo os agricultores.

Há em Brumadinho mananciais de água, trechos de Mata Atlântica e cerrado, histórias e muitos modos de vida, que contrastam com o alto impacto da mineração.

Lama no Parque da Cachoeira (Foto: Camila Nóbrega)

A distância do Parque da Cachoeira ao Córrego do Feijão, onde fica a mina, era de pouco mais de 18 km. Como uma ponte foi destruída e uma estrada ficou interditada, agora 80 km separam os dois lugares. Para chegar ao Córrego, saindo do Parque da Cachoeira, passou a ser melhor ir a Belo Horizonte e subir pelo Parque Estadual da Serra do Rola Moça, cujo nome se originou de uma poesia de Mário de Andrade sobre a história de dois noivos que acaba em tragédia. O parque, além de uma paisagem linda, é uma das áreas verdes mais importantes do Estado de Minas Gerais, e o terceiro maior em área urbana do país, abrigando alguns dos mananciais que abastecem a capital e sua região metropolitana. Seguindo pela Serra, chega-se à Casa Branca, outro bairro de Brumadinho, onde as várias placas já indicam a quantidade de pousadas e atividades de ecoturismo e turismo de base comunitária, combinadas com a vida rural local. “Temos uma proposta coletiva de agricultura sem agrotóxicos e ecoturismo, mas nos chamavam de ecochatos, porque a mineração é o que traz empregos. Agora está todo mundo vendo que, sem água, sem rio, sem vida, não tem comércio, não tem emprego, não tem nada”, disse Carolina de Moura, do Movimento Serra e Águas e moradora do bairro da Jangada, também no município, logo após debate na Universidade Federal de Minas Gerais, sobre o rompimento da barragem.

Até o momento, são 171 mortos e 139 pessoas desaparecidas. Dados preliminares divulgados pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), indicam a perda de mais de 133 hectares de Mata Atlântica. E dados de análises coletados em 22 pontos do rio Paraopeba mostram que pelo menos 305 km estão contaminados, segundo a fundação SOS Mata Atlântica, que realizou uma expedição percorrendo o leito do rio. Além disso, havia oito sítios arqueológicos na rota da lama de rejeitos de mineração, segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, apenas para citar algumas das estatísticas que vão sendo divulgadas.

Ainda é difícil dimensionar o estrago por completo, mas o desafio no momento é conectar impactos sociais e ambientais. Essa foi a proposta de um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), que fez uma expedição pelo rio Paraopeba, começando pelo povoado de Ribeirão Manso, passando por lugares como Cachoeira do Sono, Pompéu e Curvello. O pesquisador Miguel Felipe, do Departamento de Geociências da UFJF conta que, além dos testes laboratoriais, o objetivo era registrar paralelamente “a voz dos invisíveis”, como ele se refere às pessoas atingidas pelo rompimento em outras dezenas de distritos e municípios ao longo do Rio Paraopeba. “A coleta de água mostrou um rio sem vida em vários pontos. As pessoas pescam, irrigam, se relacionam com o rio, ou seja, o impacto é muito maior do que ali na localidade onde a barragem rompeu. Além disso, há a parte de rejeitos mais sólidos, que conseguimos reconhecer na água turva a olho nu e há também a camada química, que se dilui na água. Ainda vai demorar para sabermos até onde ela irá”, disse ele, em entrevista pelo telefone, após a expedição.

O rio Paraopeba era, além disso, usado também como meio de transporte para agricultores que usavam barcos para escoar a produção.

Aldeia Pataxó: vida coletiva dependente do rio Paraopeba

A cerca de 22 km de Brumadinho está localizada a Aldeia Pataxó Naô Xohã. A caminho da pequena trilha que chega à margem do rio Paraopeba, Elisa de Souza, cujo nome indígena Pataxó é Katauá, já prepara para a paisagem que virá. “Você não vai ver um rio, vai ver só lama”. De frente para o Paraopeba e olhando fixamente para ele, ela tentava enumerar as atividades para as quais a comunidade, onde vivem pelo menos 25 famílias, dependia do rio. O banho, os peixes, a água da para irrigar a horta, lavagem das roupas, a brincadeira das crianças, o lazer, “quando a gente tinha o momento com os netos, a vó (mãe dela, uma das pessoas mais idosas da comunidade), todo mundo junto”. Segundo ela, no primeiro dia em que a lama chegou ao local, 300 kg de peixes mortos foram retirados das águas do rio: “O rio para a gente era tudo, assim como a terra, mas agora os dois estão contaminados. Aqui tinha peixe grande, sucuri e até onça. Acho que os animais que sobreviveram vão se mudar, porque não vão também beber dessa água”.

Elisa de Souza, cujo nome indígena Pataxó é Katauá: “Acho que os animais que sobreviveram vão se mudar, porque não vão também
beber dessa água” (Foto: Camila Nóbrega)

Para Andrea Zhouri, pesquisadora mineira que é referência mundial em pesquisa sobre conflitos socioambientais, trata-se de uma dinâmica de catástrofes. “O licenciamento virou um balcão de negócios, acelerando processos, levando em conta os interesses de apenas um lado, como se não houvesse outras formas de vida nesse território”.

“O modelo de mineração tem sido predatório socialmente, ambientalmente e economicamente falando, porque esse minério não fica aqui, é exportado em massa. No caso de Brumadinho, esse crime ambiental está fazendo desaparecer a renda, o cotidiano e a vida de milhares de pessoas atingidas direta e indiretamente”, analisou Michele Ramos, do Movimento de Atingidos pela Mineração.

Ela estava no Córrego do Feijão, acompanhando famílias atingidas pelo desastre e deu entrevista em frente ao cenário de devastação coberto pela lama tóxica. Diversas vezes, foi necessário parar a conversa, pois helicópteros usados para as buscas impediam qualquer possibilidade de ouvir e gravar depoimentos. Ao longe, também era possível ver bombeiros trabalhando em meio à lama e, em uma parte da área afetada, retroescavadeiras era utilizadas. A imagem era um enorme contaste com a paisagem em volta, de montanhas, mata, pequenas casas, poucas ruas asfaltadas, nascentes próximas e um cotidiano pacato, mas formado de diferentes formas de viver e se relacionar com aquele lugar, que foram soterrados e uniformizados pela lama.

Camila Nobrega

É jornalista freelancer e doutoranda em Ciência Política na Universidade Livre de Berlim

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