Licenciamento ambiental: cientistas lançam manifesto contra PL da Devastação

Documento aprovado pela SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), com aval de mais de 160 instituições, detalha impactos do projeto no meio ambiente.

Por #Colabora | ODS 15
Publicada em 15 de julho de 2025 - 14:52  -  Atualizada em 15 de julho de 2025 - 14:53
Tempo de leitura: 12 min

Ato contra contra PL da Devastação em São Paulo: cientistas lançam manifesto contra projeto que implode licenciamento ambiental (Foto: Elaine Patrícia Cruz / Agência Brasil – 01/06/2025)

Manifesto aprovado pela SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), com aval de mais de 160 instituiçõe, mostra que os cientistas brasileiros estão unidos contra o Projeto de Lei) nº 2.159/2021, o chamado PL da Devastação, que trará gravíssimos retrocessos ao licenciamento ambiental do Brasil e pode ser aprovado ainda esta semana pela Câmara dos Deputados. O documento foi divulgado durante a reunião anual da SBPC que está sendo realizada em Recife.

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O ‘Manifesto da Ciência Brasileira sobre o Projeto de Lei (PL) nº 2.159/2021’ detalha os impactos nocivas do projeto para o meio ambiente. “O PL ignora solenemente o estado de emergência climática em que a humanidade se encontra, e o fato de que quatro biomas brasileiros (floresta Amazônica, Cerrado, Pantana e Caatinga) estão muito próximos dos chamados de “pontos de não retorno”. Se ultrapassados estes pontos, estes biomas poderão entrar em colapso ambiental”, aponta um trecho do documento.

O manifesto aponta que a nova lei fere acordos internacionais e representa uma afronta à ciência produzida no Brasil e no mundo. Entre os efeitos nocivos do PL são citados: aumento potencial de emissões de carbono, dispensa de licenciamento para o agronegócio, desvinculação do licenciamento da outorga de uso da água, ameaça às Unidades de Conservação, ameaças a direitos dos povos e comunidades tradicionais, condicionantes ambientais fragilizadas, inexistência de uma lista mínima de atividades sujeitas ao licenciamento, além de criação da Licença Ambiental Especial.

“A Constituição Federal de 1988 prevê o licenciamento ambiental como matéria para garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito fundamental, e impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo. O PL ameaça esse direito que é de todos os brasileiros. Um direito fundamental para um futuro minimamente promissor num mundo sob estado de ‘emergência climática’”, reforça o texto – a íntegra segue abaixo.

Manifesto da Ciência Brasileira sobre o Projeto de Lei (PL) nº 2.159/2021

“O licenciamento ambiental vigente está sob séria ameaça. Ele é o principal instrumento da Política Nacional de Meio Ambiente (Lei nº 6.938/ 1981) que garante proteção constitucional sobre direitos da coletividade brasileira, sobre o meio ambiente ecologicamente equilibrado, para as presentes e futuras gerações. E esta ameaça vem, infelizmente, do Congresso Nacional.

Está para ser votado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) nº 2.159/2021. Este PL representa o mais grave retrocesso ao sistema de proteção ambiental do país. Ele fragiliza as regras e mecanismos de análise, controle e fiscalização de empreendimentos e atividades potencialmente degradadoras. Ainda, ignora solenemente o estado de emergência climática em que a humanidade se encontra, e o fato de que quatro biomas brasileiros (floresta Amazônica, Cerrado, Pantana e Caatinga) estão muito próximos dos chamados de “pontos de não retorno”. Se ultrapassados estes pontos, estes biomas poderão entrar em colapso ambiental deixando de prestar seus múltiplos serviços ecossistêmicos. A ciência já demonstrou, com fartas evidências, que para evitarmos o tal colapso é necessário, urgentemente, zerar a destruição da vegetação nativa, combater os incêndios e a degradação ambiental e iniciar a restauração em grande escala destes biomas incluindo, entre eles, a Mata Atlântica. A propósito, o PL altera também a Lei da Mata Atlântica, bioma que já perdeu 76% de sua cobertura original, deixando os remanescentes de floresta madura vulneráveis ao desmatamento.

Além de ameaçar os biomas e o bem-estar dos brasileiros a aprovação desse PL mostra-se incompatível com os compromissos assumidos pelo Brasil no âmbito do Acordo de Paris e do Marco Global da Biodiversidade de Kunming-Montreal, entre outros atos internacionais, inclusive aqueles que protegem os direitos humanos fundamentais. Se aprovado, o poder legislativo do país colocará em dúvida o papel de liderança do Brasil no âmbito dos esforços globais de mitigação e adaptação com respeito às mudanças climáticas. E isto em plena recepção, em solo nacional, da COP 30 a ser realizada em Belém do Pará no final deste ano.

Claramente, o PL é uma ameaça à Constituição Federal e aos direitos dos brasileiros. Mas também é uma afronta à ciência produzida pelos cientistas do Brasil e do mundo, incluindo aqueles reunidos no âmbito da Academia Brasileira de Ciências, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, do Painel Científico da Amazônia e do IPCC. Esta afronta é brevemente ilustrada abaixo, caso o PL seja aprovado.

Aumento potencial de emissões de carbono. A proposição de uma Licença por Adesão e Compromisso (LAC) permitirá emissões de licenças automáticas, com base apenas na autodeclaração do empreendedor, para empreendimentos de médio porte e médio potencial poluidor. Esse processo desconsidera análises técnicas prévias e os efeitos futuros da LAC sobre as emissões nacionais de gases de efeito estufa e sobre recursos naturais, incluindo a rica biodiversidade do país. O PL, ainda, coloca em risco papel do Estado em exercer sua capacidade e dever de prevenir danos, já que o empreendedor será dispensado de grande parte de suas obrigações.

Dispensa de licenciamento para o agronegócio. O simples preenchimento de um formulário auto declaratório (LAC) passará a ser suficiente para garantir a dispensa de licenciamento, sem qualquer verificação sobre impactos ambientais ou compromissos firmados no âmbito dos programas de regularização ambiental. Do ponto de vista científico, esta proposta submete os biomas, já ameaçados por uma trajetória de “não retorno”, em situação crítica. Algo que prejudicará o próprio agronegócio. Por exemplo, já há evidências científicas suficientes que o regime de chuvas no país sofreu alterações (redução) significativas com impactos na produção de alimentos e commodities. Estas alterações não estão sendo provocadas somente pela mudança global do clima, mas por alterações na vegetação nativa que cobrem estas áreas. Considerando que no Brasil 90% da agricultura não é irrigada e depende da vegetação nativa para produzir chuva, o enfraquecimento do licenciamento ambiental será, literalmente, um “tiro no pé” da agricultura nacional.

Desvinculação do licenciamento da outorga de uso da água. A proposta do PL em tramitação na Câmara, determina que o licenciamento ambiental fique desvinculado de outorgas, desconsiderando que a outorga de uso da água é um instrumento da Política Nacional de Recursos Hídricos, de gestão da água, fundamental para garantir segurança hídrica e o acesso à água em qualidade e quantidade. Dessa maneira a análise do licenciamento ambiental ficará totalmente prejudicada para empreendimentos que utilizam a água (como por exemplo hidrelétricas, reservatórios de abastecimento público, estações de tratamento de esgotos e de efluentes). Tal desvinculação ignora, por completo, a progressiva redução de disponibilidade de água no solo devido ao avanço da redução de chuvas já sofridas por vastas regiões do país. Em alguns biomas (Cerrado, por exemplo) mais da metade dos municípios já apresentam uma redução de água superficial da ordem de 30%. Ainda, a fragmentação do licenciamento, de forma isolada das outorgas, potencializará conflitos e tende a agravar impactos relacionados a eventos climáticos no que se refere à água.

Ameaça às Unidades de Conservação (UCs). O texto em tramitação na Câmara, prevê a avaliação de impactos e definição de condicionantes somente quando, nas regiões diretamente afetadas pelos empreendimentos, existirem UCs ou suas zonas de amortecimento. Da forma como está, portanto, o texto exclui todas as UCs, federais, estaduais e municipais, da avaliação de impactos ambientais indiretos. Esta é uma visão míope, uma vez que ignora a conectividade espacial e funcional entre diferentes regiões com coberturas de vegetação nativa distintas. Os pareceres dos órgãos de gestão (ICMBio e órgãos estaduais e municipais competentes) envolvidos não terão caráter vinculante, permitindo que os órgãos licenciadores sem competência legal e capacidade técnica para dispor sobre as temáticas referidas o façam.

Ameaças a direitos dos povos e comunidades tradicionais. Se o PL for aprovado, cerca de 80% dos territórios quilombolas (TQs) e 32,6% das Terras Indígenas (TIs), que são áreas aguardando titulação e homologação, serão ignoradas nos processos de licenciamento ambiental. Não estão previstas quaisquer medidas de prevenção, mitigação e compensação de impactos socioambientais ou de controle do desmatamento. Isto coloca em xeque, não somente os direitos, mas também o papel que estes povos e comunidades têm na conservação ambiental e na prestação de serviços ambientais. Uma boa parte do regime de chuva e do armazenamento de carbono em vegetação nativa são mantidos por estas populações. Terras indígenas na Amazônia, por exemplo, funcionam como um grande “ar-condicionado” da paisagem. As temperaturas dentro das Tis chegam a ser 2-5 oC mais baixas do que nos arredores. O PL não atenta a estes serviços, pois a atuação das autoridades envolvidas, assim como a análise técnica e a exigência de condicionantes fica restrita apenas aos casos de impactos nas áreas de influência direta do empreendimento potencialmente degradadores, não considerando impactos indiretos ou na escala da paisagem.

Condicionantes ambientais fragilizadas. O PL limita a responsabilidade do empreendedor diante dos danos causados ou agravados pelo próprio empreendimento, inclusive em casos de grandes obras que pressionam serviços públicos ou estimulam desmatamento e grilagem. Esta falta de responsabilização poderá agravar ainda mais o avanço do desmatamento ilegal e da grilagem, em especial na Amazônia. Atualmente, cerca de 50% do desmate nesse bioma ocorre em terras públicas, em especial nas chamadas “Florestas Públicas não Destinadas”. São aquelas florestas que aguardam destinação, por lei, pelos governos federal e estaduais, para conservação ou uso sustentável de recursos naturais.

Inexistência de uma lista mínima de atividades sujeitas ao licenciamento: A proposta do PL é que estados e municípios decidirão, isoladamente, o que licenciar. Isto levará a distorções profundas entre regiões, com atividades semelhantes sendo tratadas de formas distintas, onde o critério técnico-científico é ignorado dependendo da pressão política local. O resultado será um sistema fragmentado, ignorante do ponto de vista científico e sujeito a lógica meramente do poder público local e regional. A falta de harmonização das regras também aumentará a insegurança jurídica.

Criação da Licença Ambiental Especial (LAE): A emenda transfere ao Conselho de Governo, órgão político vinculado à Presidência da República, o poder de definir diretrizes nacionais e enquadrar projetos como “estratégicos”, sem critérios claros, transparência ou controle social, rompendo com os princípios técnicos e legais do licenciamento ambiental. Aqui, novamente, a ciência será, no máximo, coadjuvante. A LAE será concedida por procedimento monofásico, ou seja, sem a análise prévia, de instalação e de operação em fases distintas. Sem maiores detalhes, tal emenda pode institucionalizar a liberação acelerada de projetos que necessitam de análise mais aprofundada. Inúmeros estudos científicos já demonstraram, por exemplo, o grave efeito socioambiental de investimentos em infraestrutura mau planejados. Isto mesmo sob a vigência do sistema atual de licenciamento que é mais rigoroso do que aquele proposto pelo projeto de lei. Sabe-se, por exemplo, que 70% de todo o desmatamento na Amazônia está concentrado ao redor de obras de infraestrutura. A tal LAE poderá, portanto, agravar esta condição, em especial nas inciativas que buscam a abertura e pavimentação de rodovias (Ex. BR-319) e ferrovias (Ex. Ferrogrão) e a exploração de petróleo e gás em áreas ecologicamente sensíveis (Ex. Margem Equatorial).

Finalmente, além da clara ameaça a preceitos Constitucionais, o PL proposto, fere uma série de legislações fundamentais para proteção dos ecossistemas e sua biodiversidade, como a Política Nacional de Meio Ambiente (Lei 6938/1981), o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Lei 9985/2000), a Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998), dentre outras, além de fragilizar o Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA). Assim, a discussão sobre aprimoramentos no licenciamento ambiental precisa ser feita com responsabilidade e ampla participação da sociedade, em especial da comunidade científica.

Considerações finais. As alterações propostas no sistema de licenciamento ambiental pelo Projeto de Lei (PL) nº 2.159/2021 parecem favorecer a interesses particulares ou setoriais, pois ignoram as inúmeras evidências científicas que demonstram a gravidade da crise climática e ambiental em curso no país. A Constituição Federal de 1988 prevê o licenciamento ambiental como matéria para garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito fundamental, e impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo. O PL ameaça esse direito que é de todos os brasileiros. Um direito fundamental para um futuro minimamente promissor num mundo sob estado de “emergência climática”.

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Texto produzido pelos jornalistas da redação do #Colabora, um portal de notícias independente que aposta numa visão de sustentabilidade muito além do meio ambiente.

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