ODS 1
Carros elétricos: o que falta para vê-los nas ruas?
Verdades e mentiras sobre a lenta jornada desses veículos até o mercado brasileiro
Quando o assunto são os carros elétricos, é comum atribuir a distância que (ainda) os separa das ruas brasileiras a motivos que vão da falta de infraestrutura apropriada à sua autonomia limitada. Passando pelo alto preço (e a insustentabilidade) das baterias e as dificuldades com a assistência técnica. Reforça a impressão de que esses veículos são “coisa de um futuro muito distante” o fato de que, até aqui, na prática, apenas uma montadora – a alemã BMW – se interessou em oferecer um modelo exclusivamente elétrico em nosso mercado. Por outro lado, há quem diga que, se esses automóveis começassem a chegar em número significativo às ruas, não haveria sequer energia suficiente para abastecê-los. Mas seriam mesmo esses os principais motivos para não podermos sonhar com um trânsito mais silencioso, menos poluente e (na soma disso tudo) mais sustentável aqui no Brasil?
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Veja o que já enviamosAinda que os impostos sejam reduzidos, uma olhadinha rápida na relação de marcas e modelos indica que, no Brasil, carros elétricos e híbridos ainda são artigos de luxo – ou um capricho destinado apenas aos que têm, ao mesmo tempo, consciência ambiental e dinheiro
[/g1_quote]Comecemos pelo que é fundamental: a energia, que afinal de contas é o “combustível” que move os carros elétricos. Haveria no Brasil disponibilidade suficiente para atender a uma grande frota de veículos desse tipo? Em princípio, essa preocupação seria mais do que justificada. Nossas contas de luz andam cada vez mais salgadas, vitaminadas por bandeiras amarelas e vermelhas – que sinalizam a escassez sazonal de água para alimentar as hidrelétricas (nossas principais fontes de força) e a consequente necessidade de acionar as caras e poluentes usinas termelétricas. Só que essa desconfiança não se repete, por exemplo, quando se pensa em comprar um ar-condicionado. A despeito do valor das contas mensais e empurrado pelo efeito mais percebido do aquecimento global, esse eletrodoméstico registra no Brasil vendas superiores a 3 milhões de unidades anuais, mesmo nestes anos de crise econômica, e a previsão é de um crescimento médio de 10% ao ano para a próxima década. Uma tendência que se verifica em boa parte do mundo e que tem um impacto tão significativo que está motivando todo um movimento em busca da eficiência energética e maior sustentabilidade para esses equipamentos.
A comparação com o ar-condicionado tem um motivo prático: segundo o Departamento de Energia dos EUA, a demanda de potência média para carregar as baterias da maioria dos veículos elétricos – que está entre 3 e 6 kW – se equivale aproximadamente à de um aparelho de ar condicionado residencial de 12 mil BTU (suficiente para climatizar um cômodo de até 20 m²). Se, por uma obra do acaso, toda a produção anual de veículos de passeio do Brasil – que foi de 3,3 milhões de unidades em 2014, antes da crise – passasse, de um momento para o outro, a ser de automóveis elétricos, provocaria um aumento da demanda por energia de apenas 3,1%.
Os responsáveis por esse cálculo são os engenheiros Paulo Afonso Monteiro Maranhão Faria e Marcio Massakati Kubo, da Assessoria de Mobilidade Elétrica Sustentável da Itaipu Binacional. Os dois estavam entre os palestrantes de um workshop sobre Mobilidade Elétrica organizado em julho último em São Paulo pelo Promob-e – projeto de cooperação entre os governos brasileiro e alemão. Levando a conta para proporções mais realistas, os engenheiros informam que, quando 10% do total de veículos produzidos e/ou vendidos aqui forem elétricos, a demanda por energia crescerá a uma razão de 0,31% ao ano. Esses cálculos têm como base o fato de que, em média, cada automóvel percorre cerca de 60 km diários, o que representa um consumo de até 10kW por dia.
A projeção dos engenheiros para a renovação da frota nacional é de que, se tudo der certo, o número de automóveis elétricos se iguale ao dos movidos a combustível por volta de 2032. O interesse da Itaipu, assim como de outras empresas geradoras, nesta nova vertente de consumo de energia é óbvio. Ainda que a demanda de carga dos veículos seja comparativamente pequena – se comparada a da indústria, do comércio e das residências –, na prática, quando a mudança completa da frota para a tecnologia dos elétrons acontecer, elas assumirão um papel que hoje é da Petrobras, da Ipiranga, da Shell…
Um posto em cada casa. A diferença é que, ao contrário do que acontece com as atuais petroleiras e distribuidoras, as empresas de geração e distribuição de energia elétrica provavelmente não terão monopólio no fornecimento nem exclusividade nas tomadas. Com o crescimento no país da produção alternativa de eletricidade – principalmente a eólica e a solar –, a tendência é que haja descentralização, com a chamada geração distribuída. Se hoje algumas indústrias e grandes empresas de serviços já estão investindo em pequenos parques de geração próprios para diminuir e controlar melhor seus gastos com eletricidade, num futuro próximo, bastará ter espaço livre no telhado para captar e transformar a inesgotável luz do sol em carga para as baterias do carro, para outros usos em casa e até para vender, quando sobrar para as distribuidoras. E se isso ainda lhe parece utópico, o parágrafo abaixo provavelmente vai mudar um pouco o seu conceito.
A Universidade Federal de Santa Catarina possui dois campi em Florianópolis, distantes pouco mais de 25 km um do outro. Diariamente, professores e alunos precisam se deslocar de um ponto para o outro e, até recentemente, isso era feito em um ônibus comum, ou seja, empurrado por um motor a diesel. Desde dezembro de 2016, porém, as cinco viagens diárias de ida e volta da linha passaram a ser feitas em um ônibus com propulsão elétrica. Ele foi desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa Estratégica em Energia Solar da própria universidade – Fotovoltaica-UFSC, em parceria com a Mercedes Benz, Marcopolo (que produz carrocerias), WEG (produz motores elétricos) e Eletra (especializada em tração elétrica) e financiamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação – que gastou com isso apenas 1 milhão de reais.
Ônibus elétrico, por si só, já é bacana, mas o detalhe que faz toda a diferença nesse projeto é que suas baterias são recarregadas exclusivamente por um conjunto de painéis solares instalados sobre sua garagem e nas coberturas de alguns dos edifícios da própria universidade. Ah, mas esse é um sistema para ônibus – diria o leitor mais implicante. Pois com um sistema semelhante, um pequeno Renault Twizy cedido à universidade pela Itaipu por convênio vem servindo de “cobaia” para projetos e pesquisas. E, como é bem menor, ele é abastecido somente com a energia que se origina exclusivamente a partir de painéis fotovoltaicos instalados sobre a cobertura de sua vaga. A ideia é mostrar que a eletricidade necessária para mover um carro desse tipo pode ser gerada por placas com área equivalente apenas ao espaço ocupado pelo veículo estacionado.
Essa possibilidade se encaixa como uma luva de borracha isolante no fato de que, segundo um levantamento do Idaho National Laboratory, nos EUA – onde o uso desses veículos já é bem mais comum que aqui – 85% dos usuários só os abastecem em casa e no trabalho. Ou seja, para rodar os já mencionados 60 km médios diários dos carros particulares em ciclo urbano (o uso feito pela imensa maioria dos motoristas), ter ou não um posto para abastecer pelo caminho pode não fazer diferença – fora o fato de que, “encher o tanque” em casa, com os carregadores já disponíveis no mercado e, melhor ainda, por meio de painéis solares, tende a sair mais em conta. A autonomia do carro, que na maioria dos modelos mais acessíveis disponíveis ainda é menor do que a dos primos movidos com motores a explosão, tampouco é relevante.
Tomadas pelo caminho. Na prática, portanto, hoje, a coisa só fica complicada para os carros puramente elétricos na hora de pegar uma estrada. Mas mesmo isso já começa a mudar – inclusive no Brasil. Desde o final de julho, numa parceria entre a BMW – atualmente, a única a vender um modelo desse tipo no Brasil, o i3 – e a Energias de Portugal – EDP, estão funcionando ao longo dos 430km da Via Dutra seis pontos de recarga em postos nos estados do Rio e de São Paulo, distantes a no máximo 122km um do outro. Em 25 minutos de parada, é possível reabastecer 80% da capacidade das baterias, o que, no caso do BMW, significa 150km de autonomia. Para divulgar o serviço e estimular os (ainda poucos) proprietários a viajarem com seus elétricos, durante os seis primeiros meses de operação, a recarga está sendo gratuita.
O que em um primeiro momento pode parecer pouco atraente para os donos dos postos – oferecer um serviço com poucos fregueses em potencial e margens pequenas –, se torna potencialmente interessante se lembrarmos que, hoje, especialmente ao longo das rodovias, as grandes redes de combustíveis têm no comércio e serviços paralelos (restaurantes, lojas etc.), uma fonte de receita tão grande ou maior que a da venda de gasolina. Com paradas forçosamente mais longas, o motorista e os demais ocupantes dos carros elétricos vão ter, também, mais tempo para consumir nesses postos. O mesmo raciocínio tem feito com que shoppings, hotéis e supermercados comecem a se interessar em oferecer pontos de recarga em seus estacionamentos, criando assim um atrativo a mais para potenciais clientes.
Então, por que? Mas se energia e abastecimento não são impeditivos para se ter um carro elétrico no Brasil hoje, por que eles ainda são tão raros em nossas ruas?
Bom, antes de passar a quinta marcha no texto, vale lembrar que – como já mencionamos –, na prática, atualmente há apenas um automóvel totalmente elétrico à venda no Brasil, o BMW i3 que, hoje, custa a partir de nada módicos R$ 200 mil em seu modelo 2018. Há ainda no mercado nacional sete outros modelos equipados com motores empurrados por elétrons, mas todos eles contam, também, com outros propulsores, abastecidos com a velha gasolina e são classificados como híbridos (veja o gráfico). Entre estes, existem os chamados plug-in – que podem ter suas baterias recarregadas em tomadas, como os puramente elétricos –, e os comuns, nos quais a energia vem somente do motor a explosão e dos chamados sistemas de recuperação, que aproveitam o atrito dos freios e reduções de velocidade para gerar – e guardar – eletricidade.
Como podem rodar parte do tempo apenas na eletricidade, os híbridos já são uma tremenda evolução em termos de emissões de poluentes e economia de combustível em relação aos veículos motorizados tradicionais. Especialmente se pensarmos que os momentos de maior consumo (e emissões) dos automóveis costumam acontecer no trânsito pesado das cidades, em baixas velocidades e trajetos curtos, justamente onde a “parte limpa” desses carros assume a tarefa de empurrá-los. Ainda assim, o modelo híbrido mais barato – o Toyota Prius, que é também o carro desse tipo mais vendido no mundo – custa pouco atraentes R$ 126,6 mil (só para comparar, nos EUA o mesmo carro sai por cerca de US$ 23 mil ou R$ 80 mil, sem contar os incentivos de estados como o da Califórnia).
Ou seja, se a falta de infraestrutura, a baixa autonomia ou mesmo a desconfiança (e o preconceito) em relação à novidade podem efetivamente ter alguma influência para que os carros elétricos não cresçam e se multipliquem entre nós como já começam a fazer em outros países, a principal razão para isso parece ser, mesmo, seu alto custo. E parte desse custo, como é habitual, é atribuída pela indústria aos impostos aqui praticados, a despeito de, desde 2015, haver isenção da taxa de importação de 35%. De forma surrealista, hoje, um veículo puramente elétrico paga 25% de IPI, enquanto um híbrido (que, não esqueçamos, também queima gasolina e, portanto, polui) ou um tradicional carrinho 1.0 flex é sujeito a alíquotas que começam em 7%.
Mudança de cenário. Esse panorama pode começar a mudar um pouco a partir de novembro próximo, com a entrada em vigor de novas regras relacionadas ao programa governamental Rota 2030. A partir daí, carros elétricos que pesem até 1.400 kg pagarão 9% de IPI, enquanto as alíquotas para os híbridos levarão em conta, além de seu peso, sua eficiência energética – que nada mais é do que o consumo de combustível por km rodado. O problema é que, no caso dos elétricos, o peso restringe a quantidade de baterias (o componente mais pesado do carro) e, com isso, sua autonomia. Difícil de entender o sentido disso…
Ainda que os impostos sejam reduzidos, uma olhadinha rápida na relação de marcas e modelos indica que, no Brasil, carros elétricos e híbridos ainda são artigos de luxo – ou um capricho destinado apenas aos que têm, ao mesmo tempo, consciência ambiental e dinheiro. Um cenário que, no entanto, pode mudar radicalmente já nesta próxima década, já que uma série de marcas chinesas começam a produzir em massa automóveis elétricos de baixo custo, com foco no uso individual e, principalmente, nas frotas compartilhadas. Esse é o caso da Zhidou e da BYD, que fornecem veículos para o interessante programa Veículos Alternativos para a Mobilidade, o Vamo, sistema público de carros compartilhados de Fortaleza, que já está em operação e funciona de maneira integrada a ônibus e bicicletas. Pelo menos no que diz respeito a carros elétricos, o futuro parece ter chegado antes no Ceará.
É carioca e jornalista com passagem por jornais e revistas da grande imprensa. Sócio da Rebimboca Comunicação, dedicada à produção de conteúdo, é apaixonado por carros desde pequeno. Pilota o blog Rebimboca on-line, no portal do jornal O Globo e é apresentador do programa de TV Oficina Motor (canal +Globosat).
Parabéns, Henrique. Aqui é seu xará, Henrique Miranda, da BMW. Sua leitura sobre a a eletrificação dos automóveis está impecável! Grande abraço!