Mais um assassinato brutal na Amazônia

Principal testemunha de defesa no processo contra o Padre Amaro é assassinada em Anapu, no Pará. É o 15º crime envolvendo conflitos de terras em quatro anos

Por Marizilda Cruppe | ODS 15 • Publicada em 6 de dezembro de 2019 - 16:47 • Atualizada em 6 de dezembro de 2019 - 18:31

O mototaxista Marcio Rodrigues dos Reis foi morto com uma facada no pescoço. Foto Álbum de Família
O mototaxista Marcio Rodrigues dos Reis foi morto com uma facada no pescoço. Foto Álbum de Família
O mototaxista Marcio Rodrigues dos Reis foi morto com uma facada no pescoço. Foto Álbum de Família

Enquanto o governo brasileiro passa vergonha diante de líderes mundiais na COP 25, em Madri, mais um trabalhador é assassinado violentamente em um contexto de conflitos envolvendo terras públicas da União. Este ano o país mostrou que não tem interesse em proteger os defensores das águas, da terra e da floresta. Tampouco tem interesse em proteger a própria floresta ou sequer punir os que matam a Amazônia e quem a defende.

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No apagar das luzes do violento ano de 2019, Marcio Rodrigues dos Reis, 33 anos, casado, pai de um menino e três meninas, a mais velha com nove anos, foi cruelmente morto por um assassino de aluguel, entre os municípios de Pacajá e Anapu; este último, local do assassinato da Irmã Dorothy Stang, em 2005. O mandante (ou mandantes) da morte de Marcio ainda é desconhecido.

A Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Anapu, a coordenação Estadual da CPT do Pará e a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH) divulgaram nota detalhando uma sequência de conflitos ocorridos nos últimos três anos que envolveram a fazenda Santa Maria, ocupada por um fazendeiro irregularmente. A nota também também explica  que trabalhadores como Marcio pleiteavam junto ao INCRA que a fazenda fosse transformada em assentamento: “Um crime brutal como esse não acontece do dia para a noite e poderia ter sido evitado se assim o Estado Brasileiro desejasse”. Segue o fio.

Marcio sustentava a família como mototaxista. Na quarta-feira à noite o assassino solicitou uma corrida e, no trajeto, desferiu um golpe de faca em seu pescoço sem oferecer chance de defesa. Marcio morreu na hora. Seu corpo foi localizado por desconhecidos que chamaram a polícia civil de Pacajá. O conflito que resultou em seu assassinato envolve a fazenda Santa Maria, localizada na Gleba Bacajá, em Anapu, sudoeste do Pará, ocupada ilegalmente pelo fazendeiro Silvério Albano Fernandes. O INCRA de Altamira havia ingressado com uma ação pública judicial para reintegrar o imóvel alegando ser terra pública federal. O caso estava encerrado (transitado em julgado), com ganho de causa para a União e, mesmo assim, o fazendeiro recorreu ao TRF-1, em Brasília, que ainda não julgou o recurso. Silvério já havia sido denunciado pela Irmã Dorothy por grilagem de terras.

Em 2016, Marcio participou de um acampamento de famílias sem-terra que reivindicavam assentamento na fazenda Santa Maria, ocupada por Fernandes. O governo do Estado do Pará e a Ouvidoria Agrária conseguiram mediar um acordo entre acampados e fazendeiro para que o acampamento fosse montado fora dos limites da propriedade até que todos os recursos judiciais fossem julgados. Poucos meses depois do acordo, no entanto, Silvério teria liderado fazendeiros e pistoleiros fortemente armados para invadir, atear fogo no acampamento e expulsar as famílias. A Polícia Civil abriu inquérito e o fazendeiro responde a um processo criminal.

Um ano depois, em março de 2017, Marcio e mais um grupo de agricultores tentaram reerguer o acampamento. Silvério, o fazendeiro, teria se articulado com Rubens Matoso, o então delegado de polícia de Anapu, o que teria resultado na prisão de Marcio, sob a acusação de crimes de posse de arma e de esbulho (ato violento, em virtude do qual uma pessoa é despojada ou desapossada de um bem legítimo, caracterizando crime de usurpação; crime contra o patrimônio consistente em invadir terreno ou edifício alheio, com o intuito de adquirir a posse). No pacote da mesma articulação entre fazendeiro e delegado, Silvério Fernandes acusou o padre José Amaro Lopes de Sousa, antigo pároco da prelazia do Xingu, de comandar a suposta ocupação da fazenda Santa Maria. Dezenas de fazendeiros da região, teriam sido liderados por Silvério e compareceram à delegacia para prestarem depoimento a Matoso. Em seus depoimentos teriam acusado o padre Amaro por todas as ocupações de terra ocorridas em Anapu e, por isso, o religioso foi preso. O delegado Matoso pressionou Marcio a incriminar o padre, mas ele negou qualquer participação do religioso na suposta tentativa de ocupação da fazenda Santa Maria.

O gado invade a rodovia Transamazônica, próxima à cidade de Anapu, onde os conflitos de terra são frequentes. Foto Evaristo Sá/AFP
O gado invade a rodovia Transamazônica, próxima à cidade de Anapu, onde os conflitos de terra são frequentes. Foto Evaristo Sá/AFP

Os crimes pelos quais Marcio foi acusado (posse de arma e invasão) previam o direito de responder em liberdade mediante pagamento de fiança. Mesmo assim, sua prisão preventiva foi decretada e ele ficou preso na Penitenciária de Altamira até o final de 2017. O único menino de Marcio nasceu enquanto ele esteve preso. Sua esposa, Fernanda, ficou sozinha com as quatro crianças durante os nove meses de prisão do marido. Foram tantas as dificuldades que o pequeno Natanael faleceu antes de o pai ser solto. Em liberdade, Marcio viu a polícia invadir sua casa sem um mandado de busca e apreensão. Encontraram uma espingarda velha, do pai de Marcio, que tinha sido consertada e este foi o motivo alegado para pedir novamente a sua prisão, em abril de 2018. Fernanda estava grávida das gêmeas Marciane e Marciele, que nasceram com o pai na cadeia. Em setembro do ano passado, Marcio foi absolvido do crime de esbulho e condenado pelo crime de posse de arma. A pena para posse de arma é de dois anos. Com as suas duas prisões, Marcio somou um ano e meio preso em regime fechado, o que é proibido no crime pelo qual foi condenado.

Marcio deixou a prisão, mas não conseguiu a liberdade. Ameaçado de morte, precisou sair de Anapu e passou quase um ano fora do município. Mesmo ameaçado, precisou retornar por causa da família e do trabalho de mototaxista, que era o que sustentava sua mulher e seus filhos. As ameaças foram cumpridas e Marcio foi morto. Fernanda está sozinha com as crianças.

Marcio é o décimo quinto a perder a vida pelas mãos das milícias ambientais desde 2015. A Polícia Civil foi pressionada a instaurar inquéritos das últimas catorze mortes. Até o início deste ano apenas dois casos tinham resultado em uma ação penal e em outros três apenas uma pessoa foi acusada. Os demais nove inquéritos sequer foram concluídos. Em apenas um dos casos o mandante foi identificado e preso.

Na análise da CPT e da SDDH “o que se percebe é que em Anapu existe uma milícia rural composta por pistoleiros, organizada por madeireiros e grileiros de terras públicas. Quem contraria seus interesses está sentenciado à morte. No governo Bolsonaro esse grupo tem tido apoio e total liberdade de ação. Com medo, muitas lideranças já saíram de Anapu, outras tem medo de denunciar os crimes temendo ser a próxima vítima. Enquanto isso, a grilagem e o desmatamento avançam sobre as áreas de assentamento criadas. No caso do assassinato de Marcio dos Reis, os indícios apontam para mais uma execução a mando dos grileiros e madeireiros de Anapu. Caberá à Secretaria de Segurança Pública do Estado, e não à polícia civil de Anapu, esclarecer qual foi realmente a causa e os responsáveis pelo assassinato de mais esse trabalhador. O crime não pode ficar impune.”

Marizilda Cruppe

​Marizilda Cruppe tentou ser engenheira, piloto de avião e se encontrou mesmo no fotojornalismo. Trabalhou no Jornal O Globo um bom tempo até se tornar fotógrafa independente. Gosta de contar histórias sobre direitos humanos, gênero, desigualdade social, saúde e meio-ambiente. Fotografa para organizações humanitárias e ambientais. Em 2016 deu a partida na criação da YVY Mulheres da Imagem, uma iniciativa que envolve mulheres de todas as regiões do Brasil. Era nômade desde 2015 e agora faz quarentena no oeste do Pará e respeita o distanciamento social.

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