ODS 1
A jornada de sobrevivência do sapinho-admirável-de-barriga-vermelha

Espécie vive em pequeno trecho remanescente de Mata Atlântica no Rio Grande do Sul. Projeto quer reconhecer anfíbio como patrimônio genético estadual

Sobrevivi por milhares de anos e passei por muitas alterações climáticas, mas nunca estive tão ameaçado quanto agora*. Esse poderia ser o relato de um sapinho-admirável-de-barriga-vermelha, espécie classificada como criticamente em perigo, maior categoria de risco de extinção, segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). A espécie de anfíbio é endêmica de uma pequena área nas margens do Rio Forqueta, sobreposta aos municípios de Arvorezinha e Soledade, no Rio Grande do Sul.
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Em tramitação na Assembleia Legislativa do RS, o projeto de lei 119/2024, de autoria do deputado Matheus Gomes (PSOL), busca reconhecer o sapinho-admirável-de-barriga-vermelha como patrimônio genético estadual. Em 2010, a espécie foi ameaçada pela construção da pequena central hidrelétrica (PCH) Perau de Janeiro, que mudaria o curso do Forqueta. O projeto teve a licença ambiental negada e foi cancelado pelo governo estadual. Atualmente, o sapinho sofre com o avanço do agronegócio e com a crise climática.
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Veja o que já enviamos“Ele (o sapinho-admirável) deve ficar impressionado com a nossa capacidade de destruir o meio ambiente de maneira tão rápida e brusca, para colocar em risco de extinção uma espécie que está sobrevivendo de uma linhagem de milhões de anos”, comenta Márcio Borges-Martins, professor do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Desde 2010, Márcio coordena pesquisas sobre esse anfíbio no Laboratório de Herpetologia da UFRGS. Apesar de pertencer a uma linhagem milenar, a espécie só foi reconhecida pela ciência em 2006, a partir de estudo dos pesquisadores Marcos Di-Bernardo, Raúl Maneyro e Hamilton Grillo. Esse ente da natureza recebeu o nome científico de “melanophryniscus admirabilis” ou sapinho-admirável-de-barriga-vermelha, como ficou conhecido por conta de suas cores e características.
O sapinho-admirável pertence à família de anfíbios Bufonidae, composta por cerca de 30 espécies que ocupam áreas da Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai. Em geral, esses sapinhos são pequenos, possuem cores escuras em seus dorsos e manchas vermelhas na barriga e nas patas. “Eles têm um comportamento muito peculiar, quando se assustam, eles se abaixam no solo e mostram as mãos e os pés vermelhos”, explica Márcio.
Diferente de seus parentes, o sapinho-admirável possui cores vibrantes no dorso, verde com pintas amarelas. A combinação remete às cores do Brasil e, somando com o vermelho, à bandeira do Rio Grande do Sul. Segundo o professor da UFRGS, o adjetivo de admirável se deve à coloração e ao fato dele ser um pouco maior que as demais espécies da mesma família.
Ameaças
Pensam que defendo o Rio e as florestas apenas para mim, mas faço isso por todas as espécies. O sapinho-admirável vive em uma das poucas áreas remanescentes de Mata Atlântica no Rio Grande do Sul. O bioma é o mais devastado do país e conta com apenas 12% de sua vegetação florestal madura e bem preservada. Dados do MapBiomas apontam que a Mata Atlântica perdeu 4,4 milhões de hectares entre 1985 e 2024. O bioma é lar de 72% da população humana no Brasil, além de mais de 20 mil outras espécies de fauna e flora.
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“Se a gente pensar no que aconteceu no ano passado com as chuvas no Rio Grande do Sul, o que evitou que mais pessoas fossem afetadas e morressem, foi o pouco que ainda têm de natureza na beira dos rios”, recorda Márcio Borges-Martins. Não fossem as poucas matas ciliares e vegetações nativas preservadas no Estado, as chuvas e enchentes de maio poderiam ter sido ainda mais devastadoras.
O desmatamento e a supressão de florestas estão entre as principais ameaças ao sapinho-admirável, isso porque, a região pertence a chamada Rota da Erva Mate, além de ter áreas expressivas com plantio de fumo e outras com plantações de soja. “Essa região vem perdendo áreas de floresta e, também, de maneira generalizada temos uma perda de qualidade de água, com uso de agrotóxicos e aumento das áreas urbanas”, explica o professor da UFRGS.
Um dos primeiros esforços feito pelos pesquisadores do Laboratório de Herpetologia ao identificar a espécie foi buscar outras populações, porém, até o momento não foram encontradas em nenhum outro local. A estimativa é de que existam entre mil a dois mil sapinhos na natureza. O projeto mais recente busca identificar também os impactos do desastre socioambiental de 2024 na vida desse anfíbio, em uma parceria com o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade).
“Até pouco tempo atrás, quando a gente avaliava os riscos da espécie, não conseguíamos encaixar mudanças climáticas de maneira evidente. E agora vemos que aquelas chuvas afetaram a área que a espécie ocorre”, pontua Márcio. Outros fatores de risco para o sapinho-admirável-de-barriga-vermelha são a biopirataria (comércio ilegal de espécies) e o fato de viver em um território que está fora das áreas de unidades de conservação do Rio Grande do Sul.

Saberes e conservação
Apesar das ameaças e riscos que enfrento, sei que existem muitas pessoas que estão lutando para me defender e gosto de compartilhar a vida com elas. Desde que foi reconhecido, o sapinho-admirável tem contribuído com a formação de diversos biólogos e pesquisadores da UFRGS, além de ter colaborado em diversos estudos que demonstram a riqueza da biodiversidade gaúcha.
“Conservação é um problema de pessoas, não é um problema de fauna e flora. Às vezes os alunos acham que trabalhar com conservação é só ir para campo e olhar os bichos. Não, o problema de conservação é conciliar a sobrevivência das espécies com a sociedade”, aponta Márcio Borges-Martins, sobre o trabalho desenvolvido junto com os estudantes e as comunidades.
Um dos focos do Laboratório de Herpetologia é a produção de materiais de educação ambiental para serem utilizados em escolas. Os conteúdos informativos servem igualmente de subsídio para ações de conscientização com empreendedores, representantes do Ministério Público e políticos.
“Sempre tentamos estudar ele (o sapinho-admirável) da maneira menos invasiva possível, nunca usando técnicas que possam ser letais. Também tentamos só identificar questões da vida dele que são relevantes para conservação. Não fazemos nenhuma pergunta que poderia ser interessante do ponto de vista da ciência, mas não traria nenhum retorno para ele”, destaca Márcio, sobre o cuidado na elaboração das pesquisas sobre a espécie.
O sapinho-admirável-de-barriga-vermelha não se expressa em nenhuma linguagem humana, mas se pudesse, é provável que agradeceria aos aliados que conquistou em sua jornada de vida.

*Durante a entrevista com o professor Márcio Borges-Martins, provoquei-o a imaginar o que o sapinho-admirável-de-barriga-vermelha diria a nós, humanos, caso pudesse se expressar. Os trechos de fábula com frases do anfíbio que aparecem ao longo da reportagem foram produzidos por este repórter a partir das respostas do professor, em um esforço de alteridade com esse ente vivo da natureza.
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Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.