Para ver e ouvir o golfinho invisível

As toninhas são extremamente tímidas: não saltam, emitem som inaudível para humanos, não se aproximam de barcos e fogem quando humanos tentam se aproximar (Foto: Projeto Conservação das Toninhas)

Entre as espécies mais ameaçadas do Brasil, toninhas ganham campanha de divulgação que inclui podcast e perfil no Instagram

Por Helio Hara | ODS 14 • Publicada em 7 de dezembro de 2020 - 09:26 • Atualizada em 7 de setembro de 2021 - 15:41

As toninhas são extremamente tímidas: não saltam, emitem som inaudível para humanos, não se aproximam de barcos e fogem quando humanos tentam se aproximar (Foto: Projeto Conservação das Toninhas)

Assim como a maioria dos brasileiros, eu nunca vi uma toninha viva. E, como tantos outros, meu conhecimento sobre elas era perto de um traço quando, em 2015, passei a acompanhar o projeto Conservação da Toninha*, apoiado pelo Fundo Brasileiro para a Diversidade (Funbio).  Ao longo do tempo – curto quando comparado ao de pesquisadores que há décadas se debruçam sobre o “golfinho fantasma”, um dos apelidos em alusão à dificuldade de vê-los na natureza – esse novo território se abriu para a equipe. Hoje, quando precisamos em pouco tempo apresentar as toninhas (Pontoporia blainvillei), falamos que “são os golfinhos mais ameaçados do Brasil, encontrados em Argentina, Uruguai e Brasil, entre o Rio Grande do Sul e o Espírito Santo”. E que, diferentemente de golfinhos na TV, “são extremamente tímidos: não saltam, emitem som inaudível para humanos, não se aproximam de barcos, fogem quando humanos tentam se aproximar”.

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Quando um interessado pede então para ver uma imagem do bicho vivo, a resposta, até pouco tempo atrás, era “quase não tem, eles fogem”. Algo mudou desde então: a maior iniciativa coordenada sobre esse cetáceo de cerca de um milhão de anos, que tem no boto-cor-de-rosa da Amazônia seu único e distante parente, apoia estudos sobre genética, população e principais ameaças. E, nos últimos anos, o que parecia ser inicialmente inviável deu certo: toninhas foram registradas por meio de drones, que revelaram hábitos até então desconhecidos. Tímidas, sim. Porém, extremamente sociáveis entre elas. Hoje, imagens inéditas mostram os primeiros passos de um bebê toninha com sua mãe. E da cópula da espécie, monogâmica, e na qual o macho também cuida da prole. Um comportamento tão único quanto as toninhas.

Fósseis vivos que já foram numerosos (golfinhos modernos surgiram há 200 mil anos), e cuja população hoje é estimada em menos de 25 mil no Brasil, toninhas dão nome a uma praia em Ubatuba. Já foram tema de uma edição limitada de medalhas nos Jogos Olímpicos do Rio. Houve ainda a batalha das Toninhas na Primeira Guerra Mundial, que equivocadamente faz menção à espécie: o conflito ocorreu na Europa, onde não vivem esses animais. Mas passam longe do coração de quem ainda não as viu e não conhece seus hábitos, sua história, sua vida.

Porque a luta pela conservação das toninhas é pontuada por histórias que emocionam: a pesquisadora Marta Cremer conta que entre as primeiras que viu – mortas – estavam uma fêmea lactante e seu filhote. Emoção também na voz e nos olhos que sorriem do pesquisador Daniel Danilewicz, a cada vez que fala sobre descobertas.

Com apoio do projeto, estão sendo feitos sobrevoos para que se tenha uma estimativa mais precisa da população remanescente. Os grupos diminuem na medida em que se avança do Sul ao Espírito Santo, conforme as toninhas foram colonizando esse território. Hoje, estudos genéticos indicam que são subpopulações distintas. Ou seja, caso desapareçam de uma área, o vácuo não será reparável. Uma das teorias sobre a espécie é que descende de um ancestral que, vindo do Caribe, adentrou a América do Sul por meio de um antigo mar interno. Um braço teria dado origem ao boto-cor-de-rosa. O outro, às toninhas, na região da bacia do Rio da Prata.

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Com cerca de 1,5 metro, elas estão entre os menores dos golfinhos. Além da pele macia, têm como outra característica o rostro (bico) extremamente fino e alongado. O que as torna vítimas da própria anatomia: a pesca acidental é a principal causa de mortes das toninhas. Atraídas pelos peixes presos em redes ou talvez por curiosidade – há um elevado número de carcaças de jovens animais – elas terminam presas e morrem asfixiadas.

Determinar a idade das populações é importante para subsidiar possíveis políticas públicas de zoneamento pesqueiro. E, para isso, é feita a análise de dentes de animais encalhados nas praias. Tal qual anéis de troncos de árvores, dentes de toninhas guardam essa informação, e um dedicado grupo há anos se debruça sobre eles, contribuindo para que avance o conhecimento.

Em outra frente, cientistas, cientes de que o número de bichos encalhados corresponde apenas a um percentual do número de mortos, lançam ao mar objetos que simulam toninhas, e contam posteriormente quantas foram devolvidos às praias. Porque, apesar de numerosas, as carcaças só representam uma fração da real perda.

Se pensássemos em tags, #timidas #desconhecidas #ameacadas estariam entre eles. Mas o projeto, que conta com a ajuda de pescadores para reunir dados, traz também boas notícias: indícios, por exemplo, da presença de uma população de toninhas na região de Paraty, numa área em que se suspeitava existirem, mas em que não havia pesquisas. Uma equipe se prepara para uma expedição que, se bem-sucedida, comprovará a presença do grupo (na cidade do Rio de Janeiro, já houve registros em Grumari).  Uma notícia alentadora para a espécie, contemplada com um Plano de Ação Nacional (PAN) elaborado para evitar sua extinção, e que merece ser mais conhecida por parte maior da população.

Em outubro de 2020, o projeto lançou o primeiro podcast ambiental de ficção, centrado na misteriosa morte de 33 toninhas em Ubatuba. Para que as toninhas sejam ouvidas cada vez mais por quem, como muitos, ainda não as conhece. Uma resposta ao desafio de comunicar aquilo que não é visto. Nessa jornada, uma jornalista da metrópole passa a conhecer a espécie e a buscar um culpado. Até entender que não existe um único culpado, mas… spoiler não vale! “Toninhas: a extinção do golfinho invisível” está disponível nas principais plataformas, e já provocou reações positivas de cientistas e pessoas públicas com engajamento ambiental, como as atrizes Alice Braga e Patrícia Pillar. Também como ação informativa, foi lançado o perfil @toninha_pontoporia, no Instagram, em que a toninha é apresentada como influenciadora digital. O golfinho invisível, fantasma, tímido, mas também sociável, único, cujo lugar na cadeia trófica, uma vez esvaziado, teria o potencial de provocar um indesejado e desequilibrador efeito dominó. Mas ainda há tempo. E a ciência vem reunindo dados que poderão apoiar a tomada de decisões que, esperamos, permita que o mar de toninhas jamais se torne uma lembrança do passado.

(*) A realização do projeto Conservação da Toninha é uma medida compensatória estabelecida pelo Termo de Ajustamento de Conduta de responsabilidade da empresa PetroRio, conduzido pelo Ministério Público Federal (MPF/RJ), com implementação do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio).

Helio Hara

Coordenador da área de comunicação e marketing do Funbio. É graduado e pós-graduado em Jornalismo e, antes de se juntar ao Funbio, trabalhou em instituições socioambientais, agências de conteúdo e redação. Desde 2015, quando iniciou um mergulho no universo das toninhas, acompanha e torce pelo sucesso da conservação da espécie.

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