Novo Eldorado brasileiro da soja tem PIB alto e saneamento precário

O município Luís Eduardo Magalhães, no Oeste da Bahia, cresce desordenadamente para suprir à expansão do agronegócio na região, mas é marcado por subdesenvolvimento

Por Flavia Milhorance | ODS 14ODS 6 • Publicada em 27 de março de 2018 - 08:26 • Atualizada em 17 de fevereiro de 2020 - 19:56

Terra vermelha: o bairro Santa Cruz é o retrato do desenvolvimento do Eldorado da soja (Foto Alicia Prager)
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(Colaborou Alícia Prager) Na entrada de Luís Eduardo Magalhães pela rodovia BR 020, um gigantesco silo de armazenamento de soja da transnacional Cargill não deixa dúvida de que chegamos ao centro da nova fronteira agrícola brasileira.

Em 2000, o município do Oeste da Bahia se emancipou do vizinho e também grande produtor de soja Barreiras para se expandir com independência. Em 17 anos, a população quadruplicou para 83 mil habitantes. É uma das cidades que crescem mais rapidamente no Brasil, atraindo pequenos agricultores fugindo das secas do semiárido ou atrás de melhores condições de vida e fazendeiros buscando prosperar.  

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Reino da soja: logo na entrada da cidade os silos da Cargil (Foto Flavia Milhorance)
Reino da soja: logo na entrada da cidade os silos da Cargil (Foto Flavia Milhorance)

De um pequeno distrito rural, Luís Eduardo Magalhães se tornou uma potência nacional do agronegócio. Chegou à quarta posição do PIB per capita da Bahia e ao 20º no PIB do Agronegócio do Brasil. Por isso, seu desenvolvimento é direcionado para suprir ao setor. A rodovia que o corta tem cara de nova; caminhões e pickups são a maior parte dos veículos na via; da pista, se vê inclusive a placa para um dos sete aeródromos particulares da cidade.  

Mas basta deixar a rodovia e começar a transitar pelas ruas da cidade para as contradições se tornarem aparentes. Apesar dos velozes crescimento econômico e urbanização, são poucas as ruas asfaltadas, rara a vegetação nas calçadas, e nenhum o espaço público de convivência, como praças, por exemplo. O saneamento é visivelmente precário, e o hospital público mais próximo está em Barreiras, a 90 km de distância.

“Luís Eduardo Magalhães é o principal polo agrícola regional. Tem infraestrutura de serviços, investimentos internacionais e um aparato institucional difíceis de se equiparar”, explica o professor da Universidade Estadual de Feira de Santana, Clóvis Caribé, que acompanha o progresso do Oeste baiano desde os anos 1980. “A região se transformou rapidamente, mas com um desalinhamento enorme das questões sociais e ambientais”.

Centro da cidade: não há pavimentação ou espaços de convivência (Foto Flavia Milhorance)

Vegetação sumindo

Barreiras primeiro, e Luís Eduardo Magalhães em seguida, estão estrategicamente posicionados na região e se tornaram provedores de serviços e bens agrícolas aos estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – conhecidos pelo setor como Matopiba. Estes estados testemunham a rápida expansão de fazendas em meio a um acelerado desmatamento do Cerrado – um bioma que guarda 5% da biodiversidade mundial e oito das 12 bacias hidrográficas brasileiras, mas que está sendo convertido no Eldorado do agronegócio.

O avanço agrícola rumo ao norte do país já impacta a bacia do Rio das Ondas, que abastece Luís Eduardo Magalhães e Barreiras (antes uma cidade só), apontou um estudo produzido por diferentes instituições brasileiras. Em 1984, apenas 5,3% da vegetação nativa ao redor da bacia tinham sido removidas. Três décadas depois, o desmatamento já derrubara 48,5% – ou 2.705 quilômetros quadrados – da cobertura natural do local.

A bacia é um importante recurso hídrico para ambas as cidades – não apenas para abastecer os moradores, mas para suprir as hidrelétricas e os grandes sistemas de irrigação das fazendas. O desmatamento diminui a infiltração da água, reduzindo a recarga do aquífero Urucuia, o que, por sua vez, prejudica a manutenção do nível dos rios e riachos, especialmente durante a seca sazonal, acrescenta o estudo.

Eldorado frustrado

Na beirada da BR 020 está Santa Cruz, mais antigo e maior bairro de Luís Eduardo Magalhães. Este é o principal destino de imigrantes pobres, especialmente de áreas rurais, em busca do paraíso da soja. Muitos que chegaram são pequenos agricultores em busca de melhores oportunidades, mas carentes de qualificação ou chances de entrar na produção mecanizada do setor. Hoje, muitas destas pessoas continuam a enfrentar a pobreza e o desemprego.

Ernesto José de Souza chegou à cidade na esperança de melhores oportunidades de trabalho na lavoura, mas hoje vende picolés (Foto Flávia Milhorance)

Dois anos atrás, Ernesto José de Souza, 43 anos, deixou o emprego numa fazenda de Indianápolis, em Minas Gerais, na esperança de uma vida melhor. “Pensei que teria mais trabalho aqui”, diz. Ele não conseguiu trabalhar numa colheita no novo endereço e, por isso, vende picolés a R$ 2 pelas ruas de Santa Cruz. Sua esposa ficou em casa: “É ainda mais difícil encontrar emprego para as mulheres”.

Uma história parecida é contada por Jandielson Rosa da Silva, 36 anos, que chegou há apenas cinco meses e já planeja retornar para a cidade natal de Brejo Cruz, na Paraíba, a 1.618 km de Luís Eduardo Magalhães: “Ninguém está empregando mais aqui.”  

Silva pegou um empréstimo de R$ 3.000 para a viagem e, quando chegou, alugou uma casa em Santa Cruz por R$ 400, valor alto para o seu padrão de vida. Por isso, a residência de dois cômodos é compartilhada com dois amigos que tentaram a sorte com ele.

“Eu acreditei que as coisas seriam melhores, mas estão piores”, diz Silva, apoiando-se sobre uma pilha de toalhas de mesa e redes que tem tentado vender no bairro, com pouco sucesso. Em vez disso, coleciona dívidas – e memórias da família: “Tenho muita saudade deles”, diz Silva, que não encontra a  mulher e dois filhos desde que se mudou para a Bahia.

Apesar da crise econômica e da taxa de desemprego brasileira que atinge 12,2%, Luís Eduardo Magalhães abriu novos postos de trabalho em 2017. Mas especialistas têm notado uma nova tendência no campo: o agronegócio tem pago mais, porém empregado menos. Novas tecnologias reduziram a oferta de empregos informais e temporários (ocupados especialmente por pequenos agricultores) e aumentado a da força de trabalho especializada.

Isso é uma realidade no caso do Oeste da Bahia, onde a agricultura é altamente mecanizada. “Há menos empregos na agricultura moderna, porque as pessoas precisam falar inglês, saber conduzir tratores grandes, lidar com as novas tecnologias…”, explica Caribé.

A maioria das ofertas da cidade do agronegócio está, portanto, nos serviços, em especial os que abastecem os produtores e distribuidores de grãos que fincaram raízes por lá. Não à toa o município rural tem, na verdade, 90% de população urbana. No centro, franquias de alimentação e roupas de grife dividem espaço com lojas de equipamentos de segurança e produtos agrícolas.

Violento como o Iraque

Santa Cruz também é conhecido como “Iraque” por causa da violência constante. Não há muitas estatísticas disponíveis para a cidade, mas a imprensa local com frequência publica notícias sobre assassinatos. E quem vive em Santa Cruz sente de perto os conflitos do tráfico de drogas.

Pedro José Santana: sua família já foi uma vítima da crescente violência da região (Foto Flávia Milhorance)

“Minha filha quase foi morta por um homem envolvido com o tráfico há alguns anos”, diz Pedro José Santana, 59 anos, que se estabeleceu em Santa Cruz em 2010. Pequeno agricultor, Santana chegou com quatro filhos e esposa. Encontrou trabalho, mas também angústias. “No campo não tinha essa violência toda”. Foi de emprego a emprego em fazendas e, hoje, não aguenta mais o peso da colheita, por isso vende caldo de cana.

“Há muitas mortes lá para cima, muito tráfico, muitos moleques roubando celulares”, acrescenta Josiane Bezerra, 25 anos, apontando para o final da rua principal do bairro. Sua família chegou de Irecê em 2003, quando ela era criança. Seus pais fugiram da seca na esperança de encontrar chuva para plantar comida. Nos anos 2000, tanta gente deixou a cidade rural do semiárido baiano que há até lojas com o nome da cidade em Santa Cruz.

A amiga Ariana Nunes tem a mesma idade e origem. Hoje ambas trabalham numa loja de roupas baratas na rua principal. “Não quero me mudar, não quero trabalhar no campo. Gosto daqui, mas não tem muito o que fazer”, diz Nunes.

Com as poucas opções culturais da cidade, as amigas encontraram no Cerrado a sua área de lazer. “Tem várias cachoeiras. Preferimos as Pedras, Alcides, Coqueiros…”, começa a listar.

Josiane, Ariana, Tatiana trabalham numa loja de Luís Eduardo Magalhães.(Foto Alicia Prager)

Melhoria de indicadores sociais

Os indicadores sociais do município melhoraram. Isso inclui aumento do acesso à educação e à saúde; um índice de desenvolvimento humano (IDH) considerado alto; e a redução da desigualdade, embora o nível seja elevado, de 0,62, acima do índice brasileiro, de 0,52.

“Essas regiões no Matopiba enxergam o agronegócio como a única chance de desenvolvimento que eles jamais terão”, diz o engenheiro agrônomo, Fernando Sampaio, diretor-executivo da “Estratégia Produzir, Conservar e Incluir”, iniciativa para expandir a produção e sustentabilidade do agronegócio em Mato Grosso. “Eu conheci o Sul do Piauí e o Oeste baiano há 25 anos. Onde há agronegócio, o dinheiro circula, as pessoas vivem melhor”, acrescenta.

Já o estudo do grupo de pesquisa Climate Policy Initiative mostra que as cidades de Matopiba cobertas pelo Cerrado – que são o principal alvo do avanço agrícola – tiveram desempenho econômico melhor do que os municípios localizados fora do bioma. A expansão agrícola dos municípios do Cerrado, diz a pesquisa, gerou aumento de 37% no PIB per capita e crescimento de 10% no consumo de bens de consumo duráveis, como televisores e geladeiras, e de acesso à energia elétrica. Não foi constatado impacto no acesso a água ou esgoto.

Ruas de Santa Cruz inundadas: falta infraestrutura básica (Foto Flávia Milhorance)

Em Luís Eduardo Magalhães, apenas 18% das famílias têm esgotamento sanitário adequado, abaixo da média nacional – já pequena – de 43%. A prefeitura até instalou o esgotamento sanitário em Santa Cruz, dizem os moradores, mas o sistema ainda não funciona.

Há clínicas, mas não há hospital público, apenas postos de saúde. Fazendeiros comentam por lá que o melhor hospital é o avião, conta Clóvis Caribé. Enquanto isso, em Santa Cruz, quem precisa de atendimento tem a rodovia BR 020 como única opção. “Semana passada um conhecido morreu na estrada indo para o hospital (em Barreiras)”, diz Tatiana Alves, 23 anos.

Desenvolvimento contraditório

“Eu fico intrigado com estes indicadores sociais. Você só precisa andar um pouco para perceber como este desenvolvimento é fantasioso. De cima você mostra uma realidade, mas aqui embaixo você percebe que estamos indo na direção errada”, diz Valney Rigonato, professor da Universidade Federal do Oeste da Bahia, que mora numa rua sem asfalto em Barreiras, mas cujo aluguel é mais alto do que o de muitas capitais, ele afirma.

Nessas cidades, especialmente em Luís Eduardo Magalhães, até os bairros de classes média e alta têm pouca pavimentação. Ao lado de Santa Cruz está Jardim Paraíso, onde, de cima de muros altos, câmeras de segurança resguardam pickups e casas de dois andares. Árvores ou asfalto são raridades ali também.

Em Jardim Paraíso, bairro de classe média alta, belas casas e poucoas ruas pavimentadas (Foto Alicia Prager)

A prefeitura de Luís Eduardo Magalhães foi contactada diversas vezes, mas não se posicionou. Mas como especialistas ressaltam, isso não é uma particularidade da cidade. O agronegócio tende a impulsionar o crescimento populacional, trazendo ganhos econômicos e urbanização em áreas rurais. No entanto, na sequência, não implanta um plano de desenvolvimento ou aplica os recursos gerados pelo setor. A área cresce desordenadamente, com impacto ao meio ambiente, concentração fundiária e especulação imobiliária.

Um artigo com base nos exemplos de Luís Eduardo Magalhães e Barreiras mostra o aumento da segregação e das desigualdades entre as áreas urbanas. Enquanto bairros como Jardim Paraíso testemunham a especulação imobiliária, Santa Cruz continua crescendo de maneira informal e precária.

“Luís Eduardo é a nova Wall Street da soja”, diz Deusdete Santiago, ex-vendedor de agrotóxicos da Monsanto e hoje dono de uma grande loja de ferramentas agrícolas no centro de Barreiras. “Mas o dinheiro grande não fica aqui, segue para São Paulo ou para o exterior”, acrescenta. E da mesma forma que o dinheiro se vai da cidade, a esperança de futuro melhor de muitos migrantes também se esvai.

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Flavia Milhorance

Jornalista com mais de dez anos de experiência em reportagem e edição em veículos de imprensa do Brasil e exterior, como BBC Brasil, O Globo, TMT Finance e Mongabay News. Mestre em jornalismo de negócios e finanças pelas Universidade de Aarhus (Dinamarca) e City University, em Londres.

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