Como o mercado de carbono pode fortalecer a conservação da biodiversidade?

O primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, em evento preparatório para a COP15: mercado de carbono no debate sobre biodiversidade (Foto: Bryan R. Smith / AFP – 20/09/2022)

COP27 chegou ao fim pavimentando o caminho para a COP15 de Biodiversidade avançar na estruturação de um mercado próprio

Por Juliana Lopes | ODS 14ODS 15 • Publicada em 5 de dezembro de 2022 - 10:16 • Atualizada em 25 de novembro de 2023 - 19:58

O primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, em evento preparatório para a COP15: mercado de carbono no debate sobre biodiversidade (Foto: Bryan R. Smith / AFP – 20/09/2022)

(Com a colaboração de Flávio Ojidos*) – No apagar das luzes da COP 27, em Sharm el-Sheikh, sinais importantes foram dados no sentido de uma maior convergência entre a agenda de clima e biodiversidade.

Pela primeira vez na história, o texto final da COP mencionou alimentos, rios, soluções baseadas na natureza e o direito a um ambiente saudável – recentemente reconhecido como um direito humano pelo Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

O plano de Sharm el-Sheikh não menciona explicitamente a cúpula da biodiversidade da COP15 da ONU, que acontece em Montreal daqui a poucas semanas. Mas o texto “sublinha a necessidade urgente de abordar, de forma abrangente e sinérgica, as crises globais interligadas da mudança climática e da perda de biodiversidade”.

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O texto final também incluiu pela primeira vez uma seção dedicada às florestas, com referência a “soluções baseadas na natureza”, como ações para proteger os ecossistemas e ao mesmo tempo amenizar o aquecimento global.

A COP27 também trouxe novas definições relacionadas aos mercados de carbono no artigo 6.4, que permite a comercialização de créditos de carbono em um mercado aberto, ao invés de acordos entre dois países apenas. Um texto emitido na COP 27 faz avançar esse processo, pedindo a um comitê técnico que emita recomendações antes da próxima COP sobre o que se qualifica para ser vendido como créditos de carbono. Também solicita às partes que ponderem se esses créditos podem ser aplicados às metas líquidas zero dos países.

Uma vez que esse instrumento passe a operar e reconheça soluções baseadas na natureza, pode ajudar a preencher a atual lacuna de investimento para reverter a mudança climática e a perda de biodiversidade. Segundo o Fórum Econômico Mundial, projetos de soluções baseadas na natureza podem ajudar a entregar cerca de um terço das reduções de emissões líquidas necessárias até 2030. Entretanto, apesar de seu vasto potencial de redução de emissões, atraem muito pouco investimento público .

A proteção de 30% das áreas terrestres e marinhas do planeta até 2030, de acordo com o que propõe a Convenção Biológica, permitiria a criação de aproximadamente 400.000 a 650.000 empregos no campo da conservação e da gestão da vida selvagem e outros 30 milhões de postos de trabalho em ecoturismo e pesca sustentável. Além disso, proporciona a expansão de habitats protegidos de espécies ameaçadas na ordem de 2,2 a 2,8 vezes.

Para alcançar o objetivo proposto pela Convenção Biológica, o investimento em conservação precisa crescer entre U$S 20 bilhões a U$S 45 bilhões por ano.

Se considerarmos que a Guerra na Ucrânia deverá custar US$ 2,8 trilhões à economia global em produção perdida até o fim de 2023, o investimento necessário para garantir a manutenção de áreas que prestam serviços ecossistêmicos fundamentais à manutenção da vida, é realmente baixo e mostra-se bastante factível.

De fato, os mercados de carbono podem ser veículos para alavancar esses investimentos. Em 2021, o fluxo financeiro mobilizado em mercados voluntários de carbono para soluções baseadas na natureza foi de U$S 9,2 milhões e a tendência para os próximos anos é de alta.

Além do crescimento esperado para o mercado de carbono nos próximos anos, uma contribuição adicional relevante poderia advir de um futuro mercado de créditos de biodiversidade, já que a distância entre os atuais US$ 9,2 mi para os desejáveis US$ 20 a 45 bi, exige novas camadas incrementais.

Nesse ponto, compartilhamos duas reflexões, primeiro que existe uma barreira de entrada muito grande para que áreas conservadas acessem o mercado de carbono, o que faz com que esse recurso não seja devidamente pulverizado e não chegue onde precisa para gerar o impacto positivo que nós (sociedade global) precisamos. Segundo, quando e onde chega, a receita advinda do carbono não faz frente aos reais custos de conservação, considerando os riscos e ameaças ordinariamente existentes (por exemplo: caça, invasão, desmatamento ilegal). Tais ameaças são agravadas pelos efeitos das mudanças climáticas, que trazem novos riscos à conservação como incêndios florestais, períodos mais longos e situações mais extremas de seca e cheia, comprometendo de forma bastante importante o equilíbrio ecossistêmico e os processos ecológicos de diversas espécies.

Oras, se pensamos em conservação de biodiversidade, precisamos pensar no longo prazo. E nessa linha, existe um risco significativo em apostarmos todas as fichas somente no mercado de carbono, pois se esse mercado continuar existindo para além de 2050, falhamos.

De outro lado, ao pensar em conservação de biodiversidade e na estruturação de um mercado global de créditos de biodiversidade, estamos tratando de uma realidade que se impõe e que deve ser perene para além de 2050, ou seja, esse é o mercado sem prazo de validade. Esse é o mercado no qual deveríamos focar os maiores esforços para que a parte mais significativa dos US$ 20 a 45 bi venham dele e não do efêmero mercado de carbono.

O desafio do novo, a dupla contagem e os múltiplos benefícios

Em “O Buraco Branco no Tempo”, Peter Russel trazia com espantosa clareza o fato de como as transformações humanas acontecem cada vez com maior velocidade. Olhando para a sociedade global de 50 anos atrás, ficamos estarrecidos com as práticas, usos, costumes e a (falta de) tecnologia empregada nos processos de modo geral.

Hoje, pós COP 27 e pré COP 15, temos conhecimento científico, tecnologia cada vez mais presente em nosso dia a dia, muitas lições aprendidas, clareza da urgência de ações concretas e condições técnicas de aplicá-las – a despeito da falta de vontade política que ainda está presente em muitos países e em fóruns de discussões globais – e o mais importante, já estamos vivendo as consequência dos efeitos das mudanças climáticas, que ocorrem cada vez com maior intensidade e menor espaço de tempo.

Para garantir que a sociedade global reconheça, valorize e remunere os esforços de conservação da biodiversidade, precisamos criar novos mecanismos capazes de fazer frente a esse desafio, ou seja, precisamos transcender! E é nesse cenário que os créditos de biodiversidade surgem como um caminho, senão uma resposta.

Todavia, mesmo diante de todas as evidências e do caráter de urgência para a tomada de ações que a todo o tempo nos convidam (sociedade global) a não fazer mais do mesmo, há quem defenda que o reconhecimento seguindo pelo pagamento por uma contribuição de biodiversidade, poderia caracterizar dupla contagem.

De fato, o mercado de carbono precisa buscar altos padrões de integridade para evitar dupla contagem no cancelamento dos créditos, ou seja, garantindo que sejam utilizados para compensação de emissões uma única vez, bem como assegurar a adicionalidade .

Para que esse patamar seja atingido, se fazem necessários esforços tanto para aprimorar mecanismos de transparência e rastreabilidade, quanto também para educar seus participantes de modo que compradores saibam distinguir o joio do trigo.

Da mesma forma, um eventual mercado de biodiversidade que estabeleça critérios para emissão de créditos de biodiversidade, deverá ter a mesma preocupação e poderá, inclusive, se inspirar nas lições aprendidas do mercado de carbono para que os mesmos erros não sejam repetidos, de modo que esse novo mercado já pode nascer, crescer e evoluir de forma extremamente rápida, se comparado ao seu “primo” dos ativos ambientais, o carbono.

Aqui cabe um parêntese para ponderar que, além de carbono e biodiversidade, o ativo ambiental água é outro que merece destaque e tem alto potencial de contribuição para contribuir ou até mesmo reverter o atual cenário de degradação ambiental. Ainda que de forma localizada, são diversos os exemplos de projetos de conservação ou restauração que utilizam o mecanismo do pagamento por serviço ambiental, com base na questão hídrica, para remunerar aqueles que fazem conservação, prestando serviços ambientais e favorecendo a ocorrência de diversos serviços ecossistêmicos para toda a coletividade, de forma difusa.

Fechando o parêntese dos recursos hídricos e voltando para a questão da biodiversidade, é preciso enfatizar que essa confusão que liga a dupla contagem a mercados diferentes é extremamente nociva e prejudicial ao bem que se pretende tutelar, qual seja o meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Parece-nos claro e evidente que as áreas protegidas constituem-se como verdadeiras reservas de ativos ambientais, cuja manutenção favorece a realização de serviços ecossistêmicos distintos e relacionados aos respectivos ativos.

Por exemplo. A manutenção de estoques ou a remoção de carbono da atmosfera contribuem para a regulação do clima; a preservação de nascentes e cursos hídricos contribui para o ciclo hidrológico e o abastecimento de mananciais públicos; a preservação de espécies com algum grau de ameaça de extinção, ou não, contribuem para o equilíbrio ecológico.

Ao final, os diversos serviços providos pela manutenção dos ecossistemas encontrarão diversos grupos de beneficiários, que podem variar em escala de abrangência (local, regional ou global); no tipo de uso (direto ou indireto) e no serviço utilizado. Seja como for, o provedor de variados serviços deve receber pelos variados serviços que presta.

Tanto é assim que o fato de termos internet em nossa conta de telefone, não nos permite usar esse serviço também em nossa TV. Precisamos de uma assinatura independente. E não basta ter internet, quando queremos usar um serviço de streaming, pagamos por isso adicionalmente. Ou seja, as pessoas reconhecem que o uso múltiplo de serviços deve ser remunerado. Por que seria diferente com a natureza?

Esse entendimento pode colaborar com o fortalecimento e aprimoramento de alguns conceitos do mercado de carbono que talvez não sirvam ipsis literis ao mercado de biodiversidade. A ideia da dupla contagem é uma delas e esse conceito de benefício adicional, outro.

Se bem empregados, o mercado de ativos ambientais composto por uma cesta de créditos de carbono, mecanismos de pagamento por serviços ambientais hídricos e créditos de biodiversidade, pode ser o gatilho necessário para acelerar a migração do fluxo de capital de atividades baseadas na degradação da natureza para aquelas baseadas na proteção e restauração de ecossistemas naturais, viabilizando uma economia que funcione para as pessoas e para o planeta.

1 – Disponível em: https://news.mongabay.com/2022/11/cop27-boosts-carbon-trading-and-non-market-conservation-but-can-they-save-forests/

2 – Disponível em: https://www.weforum.org/reports/nature-and-net-zero/

3 – Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/business/guerra-na-ucrania-deve-custar-us-28-trilhoes-a-economia-global-estima-ocde/#:~:text=A%20seguir-,Guerra%20na%20Ucr%C3%A2nia%20deve%20custar%20US%24%202%2C8%20trilh%C3%B5es,%C3%A0%20economia%20global%2C%20estima%20OCDE&text=A%20guerra%20da%20R%C3%BAssia%20na,e%20Desenvolvimento%20Econ%C3%B4mico%20(OCDE).

4 – Valor estimado com base nos dados do levantamento da Ecosystems Marketplace, apontando que a categoria de projetos de florestas e uso da terra representaram 46% das transações de créditos que em 2021 atingiram no total U$S 2 bilhões. Disponível em: https://www.ecosystemmarketplace.com/articles/

5 – O conceito de adicionalidade tem como objetivo assegurar que o projeto não aconteceria não fosse o incentivo do crédito de carbono.

*Flávio Ojidos, formado em Direito, pós-graduado em Direito Ambiental Constitucional e mestre em Conservação de Biodiversidade e Desenvolvimento Sustentável, é Head Future Carbon Removals, da Future Carbon

Juliana Lopes

Juliana Lopes é gestora ambiental e jornalista, com MBA em Marketing e mestrado em Administração, com ênfase em sustentabilidade. Foi diretora executiva para a América Latina da Driving Sustainable Economies (CDP) por oito anos e trabalhou como gerente de engajamento no WWF-Brasil. Atualmente, é Head Future Carbon Solutions, da Future Carbon

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