ODS 1
Migração e adaptação: a vida escolar após as enchentes no Sul
Levantamento mostra que pelo menos 50 mil alunos de escolas gaúchas pediram transferência após desastre ambiental
As enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul entre o final de abril e o começo de maio deixaram um rastro desolador. Segundo a Defesa Civil estadual, foram 478 municípios afetados – e mais de dois milhões de pessoas tiveram que deixar suas casas e fugir para sobreviver à velocidade das águas. Muitos viveram uma dupla perda: o lar e a escola.
Leu essas? As reportagens da série especial ‘A vida escolar dos deslocados climáticos no Sul’
O Mapa Único Plano Rio Grande (MUPRS) aponta que 365 escolas municipais foram atingidas pelas enchentes. Esse número representa 7,5% do total de 4.864 escolas de redes municipais que existem no estado. Na rede estadual, 1.104 instituições de ensino tiveram a rotina escolar afetada de algum modo e cerca de 600 foram danificadas, impactando diretamente mais de 403 mil estudantes.
Por isso, a migração que acontece após as inundações não é só em busca de um lar – novo ou provisório – em bairros e cidades que não alagaram. Ela também significa conseguir vaga em uma nova escola e recomeçar a vida escolar.
A reportagem fez o levantamento da quantidade de transferências e os destinos dos estudantes gaúchos entre maio e setembro de 2024 e do mesmo período de 2023. Na rede estadual, os dados foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação e indicaram a ocorrência de 45 mil transferências. O número é 28% maior do que os cerca de 35 mil alunos transferidos no mesmo período em 2023.
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Veja o que já enviamosNa rede municipal, foram selecionadas dez cidades fortemente atingidas pelas enchentes no Rio Grande do Sul: Muçum, Roca Sales, Cruzeiro do Sul, São Sebastião do Caí, Igrejinha, Eldorado do Sul, Guaíba, Porto Alegre, Canoas e São Leopoldo. As informações foram solicitadas diretamente na secretaria de Educação de cada município. Nem todas enviaram as informações completas, principalmente as de 2023. Mas o levantamento apurou que, pelo menos, 5.487 estudantes pediram transferência destas dez cidades no período das enchentes de 2024.
Para ter acesso aos dados completos da pesquisa, clique aqui.
Litoral Norte como destino
Mesmo sem dados oficiais que façam o mapeamento da migração após as enchentes no Rio Grande do Sul, moradores do Litoral Norte relatam uma maior movimentação nas praias, na procura por alugueis, serviços públicos e nas transferências escolares. A rede municipal de educação de Tramandaí, que fica a 128 km de Porto Alegre, recebeu 153 estudantes de famílias que foram atingidos pelas inundações em Porto Alegre, Eldorado do Sul, Canoas e Novo Hamburgo – a maioria dos alunos veio para as séries iniciais do Ensino Fundamental.
Cassiana Santos Bastos, 32 anos, voltou a morar em Tramandaí depois de viver duas enchentes em Novo Hamburgo. A última foi em maio deste ano e fez com que a família ficasse sem nada: móveis, roupas, eletrodomésticos, pertences pessoais… a água levou tudo. O recomeço após a tragédia não está sendo fácil para ela, o marido e os três filhos.
Ela conseguiu matricular os dois filhos mais velhos em escolas municipais, mas a pequena Isabela, de 3 anos, ficou sem vaga na creche. Isso fez com que a mãe largasse o emprego de vendedora em loja para ficar em casa com a pequena. Atualmente, só o marido sustenta a casa, trabalhando como mecânico em uma oficina da cidade.
A secretária de Educação de Tramandaí, Alvanira Gamba, informou que existem 400 crianças na fila para uma vaga em creche no município. Ela explica que o impacto dessa demanda extra na estrutura da rede de ensino é grande e que teve que abrir novas turmas e convocar professores para trabalhar um turno a mais em algumas escolas.
Cicatrizes emocionais das enchentes
A migração causa impactos emocionais nos estudantes e suas famílias. “Eu nunca fui quietinho assim. Eu estou com trauma de enchente”, afirma Arthur, 9 anos, filho de Cassiana. Atualmente, o garoto estuda na Escola Municipal de Ensino Fundamental Marechal Castelo Branco, em Tramandaí. Apesar de bem adaptado e de não querer voltar para Novo Hamburgo, ele demonstra desconforto em lembrar de tudo o que passou e um comportamento mais retraído.
Já o irmão Willian, 14 anos, estuda em outra escola e está enfrentando problemas na instituição: já foi furtado pelo menos três vezes – perdeu lanches e estojo – depois que foi transferido. Cassiana já foi reclamar da situação na escola, mas não se sentiu acolhida. Em 2025, os planos são mudar Willian para a mesma escola de Arthur.
“Eles ficaram bem abalados. Quando chove e tem vento forte, eles ficam bem nervosos. Aí acabam dormindo no meu quarto”, conta Cassiana. Quando questionada sobre como ela está, a mãe relata que sofre bastante. “Eu choro muito, fico deprimida. Porque é uma vida inteira, sabe? Bate um desânimo”.
Escola como ponto de apoio no recomeço
Além de Arthur, a escola Marechal Castelo Branco recebeu outros três alunos que vieram para Tramandaí por causa das enchentes de 2024. Francieli Valim e Gabriela Grassi Anflôr, que fazem parte da gestão da instituição, explicam que os estudantes chegaram sem documentação ou histórico escolar e que a orientação da Secretaria de Educação era facilitar a entrada no sistema de ensino e fazer a matrícula.
As educadoras contam que a mobilização para acolher e auxiliar os atingidos pela enchente foi grande. Além dos novos alunos, outras pessoas da comunidade escolar estavam abrigando familiares em casa. E o tema foi introduzido na sala de aula, tanto para receber os novos colegas, quanto para conscientizar sobre o que e porque as enchentes estavam ocorrendo. “Tudo com cuidado para não expor, não machucar, mas dizendo para as turmas terem cuidado e acolherem os colegas”, conta Gabriela.
Maria Fernanda Hennemann, psicóloga clínica e educacional, explica que espaços de escuta e acolhimento nas escolas foram e ainda são fundamentais para os alunos atingidos pelas enchentes. A psicóloga afirma que pais e educadores precisam ficar atentos ao comportamento e reações exageradas desses alunos, tanto de agressividade quanto de introspecção. As atividades de expressão como desenhos e textos também podem dar sinais de como eles estão lidando com o que viveram. “Não tem data para terminar o sofrimento e ele vai reverberar em cada um de maneiras diferentes”, afirma.
*Pauta selecionada pelo 6º Edital de Jornalismo de Educação da Jeduca e da Fundação Itaú
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Emilene Lopes é jornalista gaúcha com foco em educação, meio ambiente e cultura. Atua como repórter freelancer e lidera o projeto de jornalismo local Retratos de Guaíba, dedicado a resgatar memórias e promover o diálogo sobre a identidade e cultura dos guaibenses. Vencedora do Prêmio Paulo Freire de Jornalismo 2022, na categoria Mídias Digitais, também produziu o documentário Histórias do Cine Gomes Jardim (2019)