Meta de 1,5ºC está mais morta do que uma porta

Ano de 2024 está a caminho de entrar para os registros históricos como o mais quente dos últimos 125 mil anos

Por José Eustáquio Diniz Alves | ArtigoODS 13 • Publicada em 25 de novembro de 2024 - 09:39 • Atualizada em 4 de dezembro de 2024 - 09:25

Enquanto as lideranças mundiais não chegam a um acordo nas COPs e no G20, o tufão Man-yi segue seu ritmo de destruição nas Filipinas. Se o aquecimento global não for contido, eventos como estes serão cada vez mais frequentes. Foto Villamor VISAYA / AFP

“Este ano de 2024 tem sido uma aula magistral de destruição humana”

António Guterres, Secretário-geral da ONU na abertura da COP29

Apesar de inúmeras reuniões, encontros e cúpulas voltadas à governança internacional do desenvolvimento e do clima, o aquecimento global segue quebrando recordes. O ano de 2024 está a caminho de entrar para os registros históricos como o mais quente dos últimos 125 mil anos, além de ser o primeiro a ultrapassar a marca de 1,5ºC acima da média do período pré-industrial (1850-1900). Segundo o Instituto Copernicus, o mês de outubro de 2024 foi o segundo outubro mais quente a nível mundial, depois de outubro de 2023, com uma temperatura média do ar à superfície de 1,65°C acima do nível pré-industrial e foi o 15º mês num período de 16 meses em que a temperatura média global excedeu 1,5°C. A temperatura média global dos últimos 12 meses (novembro de 2023 – outubro de 2024) foi de 1,62°C acima da média do período pré-industrial.

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A anomalia média da temperatura global em 2023 bateu o recorde histórico e foi de 1,48ºC acima do nível pré-industrial, mas deve ser superada no corrente ano, pois é praticamente certo que a temperatura anual para 2024 superará o limite de 1,5°C e, provavelmente, atingirá a marca de 1,55°C, conforme mostra o gráfico abaixo.

A série histórica da temperatura planetária mostra que os anos de 2023 e 2024 ficaram muito “acima da curva”, indicando que o planeta passa por um processo de aceleração do aquecimento global. Dados da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA), dos Estados Unidos da América, mostram que o ritmo de aumento da temperatura, em relação à média do século XX, estava aumentando apenas 0,02ºC por década entre 1850 e 1970, passou para 0,19ºC por década entre 1970 e 2010 e deu um salto para 0,41ºC por década entre 2011 e 2024, conforme mostra o gráfico abaixo.

Os estudos científicos do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) indicam que limitar o aquecimento a 1,5°C em relação ao período pré-industrial é crucial para evitar os impactos mais catastróficos das mudanças climáticas. Considerando o ano de 2024, pode-se dizer com certeza que a meta do Acordo de Paris de 1,5ºC está mais morta do que uma porta. Todavia, o IPCC recomenda o uso de médias de 30 anos, como uma abordagem científica padronizada para minimizar as variações anuais e capturar as tendências climáticas de longo prazo.

Considerando a recomendação do IPCC, o Instituto Copernicus fornece uma ferramenta que permite analisar a evolução da temperatura global considerando a média de 30 anos e projetando a data para se atingir definitivamente o limite de 1,5ºC.

O gráfico abaixo mostra a média de 30 anos da temperatura global, com base na série histórica do aquecimento global. A anomalia da média de 30 anos (1994-2024), em relação ao período pré-industrial (1850-1900), foi de 1,36ºC em outubro de 2024. Mantendo-se a tendência de longo prazo, a meta de 1,5ºC seria atingida definitivamente em junho de 2030, conforme mostra o gráfico abaixo.

Desta forma, a meta mínima estabelecida pela COP21, que aprovou o Acordo de Paris e buscava limitar o aumento da temperatura global a 1,5°C em relação ao período 1850-1900, já foi temporariamente ultrapassada nos últimos 12 meses. No entanto, esse limite ainda não foi superado quando considerada a média de 30 anos. Ainda assim, a ultrapassagem definitiva da marca de 1,5°C é iminente, já que interromper o aquecimento global tornou-se praticamente impossível diante da demora dos líderes mundiais em implementar ações efetivas de mitigação.

Mas se a meta de 1,5ºC está praticamente perdida, não significa que devemos abandonar a luta para evitar cada fração de grau adicional, assim como não devemos renunciar à meta de limitar a temperatura global ao teto mais alto de 2ºC, pois as consequências seriam significativamente mais graves em um aquecimento acima dessa marca, uma vez que os impactos climáticos aumentam de forma não linear à medida que a temperatura sobe. A meta de 2°C é frequentemente descrita como um “limite do desastre”, pois ultrapassá-lo resultaria em mudanças climáticas amplamente incontroláveis, tais como:

  • Eventos extremos mais frequentes e severos: Tempestades e furacões catastróficos, ondas letais de calor e secas mais intensas.
  • Maior elevação do nível do mar: Colocando em risco comunidades costeiras, os deltas dos rios, as praias urbanas e os países insulares.
  • Danos irreversíveis aos ecossistemas: Como a perda quase total de recifes de corais, danos a florestas tropicais e aceleração da 6ª extinção em massa das espécies.
  • Desafios sociais e econômicos crescentes: Aumento da insegurança alimentar e do estresse hídrico, conflitos por recursos e deslocamentos em massa.

O orçamento de Carbono e a Lacuna de Emissões

A correlação entre o aumento das emissões de carbono e o aquecimento global é amplamente documentada pela ciência. O orçamento de carbono refere-se à quantidade máxima de dióxido de carbono (CO₂) que pode ser emitida globalmente para limitar o aquecimento global a um determinado nível, como 1,5°C ou 2°C acima dos níveis pré-industriais. Esse conceito baseia-se em cálculos científicos que consideram a relação quase linear entre o acúmulo de CO₂ na atmosfera e o aumento da temperatura.

Para reduzir as emissões, o Acordo de Paris impulsionou as Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs, na sigla em inglês) que são os compromissos voluntários assumidos pelos países para mitigar as mudanças climáticas. As NDCs podem ser classificadas em condicionais e incondicionais, dependendo das condições associadas à sua implementação.

Porém, as emissões globais de gases de efeito estufa (GEE) continuam aumentando e as análises recentes sugerem que, sem esforços adicionais, o mundo está mais próximo de um aquecimento de 2,4°C a 2,7°C até o final do século. A lacuna de emissões é a diferença entre as emissões projetadas com base nos compromissos climáticos atuais das NDCs e as emissões necessárias para permanecer dentro do orçamento de carbono para limitar o aquecimento global.

A mais nova edição do “Emissions Gap Report” (UNEP, 2024) mostra que para trilhar o caminho para limitar o aquecimento abaixo de 2°C, as emissões anuais em 2030 precisam ser reduzidas em 14 GtCO2e (14 gigatoneladas de CO2 equivalente) do que as atuais NDCs incondicionais e implicam uma redução de 22 GtCO2e para um limite de aquecimento de 1,5°C. Para 2035, essas lacunas aumentam em 4 GtCO2e para um limite de aquecimento de 2°C, e 7 GtCO2e para um limite de 1,5°C. Se as NDCs condicionais também forem totalmente implementadas, as lacunas em 2030 e 2035 para ambos os limites de temperatura serão reduzidas em cerca de 3 GtCO2e, conforme mostra a figura abaixo.

Portanto, tecnicamente, ainda é possível se atingir a meta de 1,5ºC, desde que as emissões caiam 42% até 2030, em comparação com os níveis de 2019. Para o limite de 2°C, as emissões devem cair 28% até 2030. Olhando para 2035, as emissões devem cair 57% para 1,5°C e 37% para o limite de 2°C.

Porém, ao invés de diminuir, as emissões de gases de efeito estufa (GEE) continuam aumentando. O gráfico abaixo, também do “Emissions Gap Report 2024”, mostra que as emissões totais de GEE estavam em 37,8 GtCO2e em 1990 e passou para 57,1 GtCO2e em 2023, um aumento de 51% no período. Entre 2020 e 2023 o aumento foi de 6,3%. As informações preliminares indicam que houve aumento também em 2024. Neste sentido, percebe-se que é muito difícil reduzir as emissões de GEE em 42% até 2030.

O documento “Emissions Gap Report 2024” considera que, a despeito das dificuldades, a meta de emissões líquidas zero continua viva no horizonte e quanto mais cedo for alcançada melhor. Os membros do G20, os maiores emissores do planeta, precisariam fazer o trabalho pesado, pois representam mais de 80% da economia mundial. E os participantes da COP29, reunidos em Baku, Azerbaijão, precisariam reunir vontade política para estabelecer os meios para implementar NDCs dramaticamente mais fortes para manter viva a meta de 1,5ºC até 2030.

A governança global em novembro de 2024: 19ª Cúpula do G20 e COP29

A 19ª Cúpula do G20 que ocorreu no Rio de Janeiro, nos dias 18 e 19 de novembro de 2024, realizada à sombra da atuação conjunta dos negacionistas Donald Trump e Javier Milei, foi importante para manter viva a chama do multilateralismo e para reafirmar algumas deliberações já ocorridas no âmbito da Agenda 2030 da ONU.

A iniciativa proposta pelo Brasil de uma Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza, com a adesão de 82 países, tem como meta erradicar a fome e a extrema pobreza no mundo até 2030. Sem dúvida é uma iniciativa benemérita. Porém, no ano 2000, 191 nações aprovaram na ONU os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), cuja meta número 1 estabelecia o objetivo de “Acabar com a fome e a miséria”. Em 2015, na Assembleia Geral dos 70 anos da ONU, 193 países do mundo assinaram os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), onde o ODS1 visa erradicar a extrema pobreza e o ODS2 visa erradicar a fome até 2030.

Mas, na prática, o número de pessoas em situação de fome, que estava em declínio durante o primeiro quindênio do século XXI, voltou a crescer. Dados da FAO indicam que 539 milhões de pessoas enfrentavam a fome (7,3% da população global) em 2014, enquanto em 2023 esse número subiu para 733 milhões (9,1% da população mundial). A meta de fome zero permanece um desafio significativo, mas isso não parece impedir a realização de Cúpulas onerosas, que muitas vezes se limitam a promessas atraentes para cativar a opinião pública internacional.

Na declaração final da 19ª Cúpula do G20, os líderes reafirmaram o compromisso com o Acordo de Paris e com o objetivo de limitar o aumento da temperatura global a 1,5°C. Também destacaram a importância de avanços nas negociações da COP29 para alcançar um resultado concreto em relação ao financiamento climático. No entanto, a maioria dos países não se comprometeram com o desembolso financeiro e Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) mais ambiciosas.

No contexto dos combustíveis fósseis, a Cúpula do G20 reiterou apoio ao Global Stocktake (GST) aprovado na COP28 em Dubai, que incluiu a meta de “transição para longe dos combustíveis fósseis”. Além disso, reforçou o compromisso de triplicar os investimentos em energias renováveis e dobrar os recursos destinados à eficiência energética. Contudo, na COP28, o documento final enfatizou a necessidade de uma transição “justa, ordenada e equitativa” no uso de combustíveis fósseis, sem estabelecer prazos concretos ou proibir seu uso. As negociações evidenciaram a resistência de algumas nações exportadoras de petróleo em assumir compromissos mais rigorosos, ressaltando as divergências entre os países sobre a velocidade e os meios para alcançar a descarbonização econômica.

Se as deliberações da 19ª Cúpula do G20 foram acanhadas e sem grandes novidades, o cenário da COP29, em Baku, foi mais desalentador. Logo na abertura do evento, o presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, disse que as jazidas de petróleo e gás são um “presente de Deus” e acrescentou: “os países não devem ser culpados por terem combustíveis fósseis e não devem ser culpados por trazer os recursos ao mercado, porque o mercado precisa deles”. Reforçando esta ideia, a delegação da Arábia Saudita disse que não aceita nenhum texto que tenha como alvo setores específicos, incluindo combustíveis fósseis.

O financiamento internacional para a transição energética e para ação climática a partir de 2025 foi um ponto crucial das negociações da COP29. Isto porque o próximo ciclo da NDCs, nos 10 anos do Acordo de Paris, deverá ser renovado pelos países até fevereiro de 2025 e a ambição dos novos compromissos de mitigação dependerá do volume de financiamento a ser definido pelos países ricos, que são os principais responsáveis pelas emissões históricas.

A meta de financiamento de US$ 100 bilhões anuais definida pelos governos desenvolvidos na COP15 de Copenhague, em 2009, não foi plenamente implementada e já é insuficiente para os desafios atuais da mitigação da crise climática. Os países em desenvolvimento defendem que a nova meta seja de pelo menos US$ 1 trilhão por ano a partir de 2030, mas este montante vem sendo sistematicamente rejeitado pelos governos desenvolvidos de alta renda. Qualquer valor menor tem sido considerado um insulto pelos países mais pobres do mundo.

Não existe consenso sobre quem vai pagar a conta, como e quanto será pago e quais países receberão os recursos. Em contraposição a COP29 conseguiu apressar novas regras para os mercados de carbono, permitindo que países e empresas negociem créditos de carbono, o que equivale, na prática, à permissão para continuar poluindo.

Assim, enquanto os governos nacionais discutem nos fóruns internacionais, sem conseguir estabelecer ações efetivas para reduzir as emissões globais de gases de efeito estufa, a concentração de CO2 na atmosfera continua batendo recordes históricos, que são seguidos por níveis cada vez mais elevados da temperatura planetária (Alves, 2024).

É muito difícil reverter 200 anos de crescimento das emissões de carbono em apenas 5 anos. Avançar com a transição energética e abandonar os combustíveis fósseis gasta tempo, dinheiro e vontade política. Portanto, não é exagero repetir que a meta de 1,5ºC está mais morta do que uma porta.

Entretanto, ainda seria possível para a humanidade, movida pela urgência, conseguir reduzir as emissões de gases de efeito estufa ou, ao menos, interromper o avanço do aquecimento global antes que a temperatura média global ultrapasse 2°C em relação ao período pré-industrial.

Apesar das incertezas e das dificuldades, as alternativas permanecem em aberto, longe de estarem encerradas e definitivamente enterradas. Afinal, como diz o ditado popular, a esperança é a última que morre. Por fim, vale lembrar o que disse Vinícius de Moraes (1913-1980) no poema A Porta:

“Sou feita de madeira

Madeira, matéria morta

Não há nada no mundo

Mais viva que uma porta”

Referências:

ALVES, JED. A concentração de CO2 na atmosfera se aproxima de valores só registrados há 14 milhões de anos, # Colabora, 19/02/2024  https://projetocolabora.com.br/ods13/concentracao-de-co2-se-aproxima-de-valores-registrados-ha-14-milhoes-de-anos/

United Nations Environment Programme. Emissions Gap Report 2024: No more hot air … please! With a massive gap between rhetoric and reality, countries draft new climate commitments. Nairobi, 2024

https://www.unep.org/resources/emissions-gap-report-2024

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

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