ODS 1
Litoral gaúcho: refúgio e recomeço para alunos após as enchentes de 2024
Desastre climático reforça a tendência de migração e escolas se tornam pontos de acolhimento e apoio essencial no processo de adaptação
Os dados oficiais ainda não dão conta de mensurar a migração que aconteceu no Rio Grande do Sul após as enchentes de 2024. Segundo a Defesa Civil estadual, foram 478 municípios e mais de dois milhões de pessoas afetadas. Para onde foram os que perderam tudo nas águas e não puderam voltar para casa?
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O Litoral Norte desponta como um lugar de recomeço para muitas famílias. Moradores da região, formada por 22 municípios, relatam uma maior movimentação desde maio, período crítico das enchentes e normalmente de baixa temporada. As transferências escolares confirmam essa tendência de migração.
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Veja o que já enviamosA rede municipal de Imbé, com cerca de 5 mil alunos, recebeu 50 transferências após as enchentes, oriundas de Porto Alegre e Canoas. Segundo a secretaria de Educação, a cidade litorânea, a 125 km da capital, tinha vagas para receber todos os estudantes: nos últimos anos, a capacidade de atendimento de escolas de Educação Infantil e Ensino Fundamental foi aumentada, com a ampliação também da oferta e de espaço físico nos projetos de turno inverso, como é o caso do Centros de Apoio Pedagógico da Educação Básica (Capebs).
O motivo foi o crescimento da população do município, que chegou a 27 mil pessoas, segundo dados do Censo Demográfico de 2022, um aumento de 51% em relação ao Censo de 2010. O aumento populacional não é exclusividade de Imbé. Os resultados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que outras cidades do Litoral Norte – como Tramandaí, Capão da Canoa e Arroio do Sal – estão entre as que mais cresceram no Rio Grande do Sul. As enchentes de 2024 parecem só reforçar essa tendência de migração e busca por oportunidades na região.
Novo começo para Lorenzo e família
Luana dos Santos, 33 anos, o marido e o filho, Lorenzo, de 6 anos, se mudaram para Tramandaí em junho, depois de viver a terceira enchente em menos de um ano. Os três chegaram ao município do Litoral Norte gaúcho só com algumas roupas e a vontade de recomeçar a vida. “Eu vim para um lugar em que eu não conheço ninguém. Eu não quis ficar em Eldorado porque quando o Lorenzo via água ou chuva ficava com muito medo. Eu saí da minha zona de conforto por ele; toda a minha família continua lá”, conta Luana.
Eles moravam em Eldorado do Sul, cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre que teve 82% dos 39 mil habitantes atingidos pelas inundações. Uma das principais preocupações da família era a educação e o bem-estar de Lorenzo, que tem o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Depois de perder a casa, ficar em abrigo, sem escola e os acompanhamentos terapêuticos de costume, Luana estava apreensiva com a adaptação do pequeno na nova escola. Mas foi surpreendida positivamente pela Escola Municipal de Ensino Fundamental Erineo Scopel Rapaki. “Ele foi acolhido desde o primeiro momento. Em Eldorado, ele tinha o atendimento, mas não era como aqui. Em um mês de aulas, ele gastou um caderno inteiro de atividades. Bem diferente da antiga escola”, relata.
A mãe também destaca uma compreensão maior da direção em relação às sensibilidades do filho, permitindo que ele entre pelos fundos para evitar o barulho. Para Luana, tudo isso contribuiu para o aprendizado e a boa adaptação de Lorenzo. “Percebemos que ele gostava muito de planetas, então iniciamos com atividades desse tema, para ele pintar e escrever. Depois, fomos intercalando com o conteúdo que estava sendo trabalhado na turma”, explica Kelen Martins Franco, professora auxiliar do primeiro ano do Ensino Fundamental da turma de Lorenzo. Ela também percebe o aluno mais entrosado com os colegas e se alimentando melhor no refeitório.
Nesse momento de recomeço, a escola tem sido um lugar fundamental de apoio e socialização para a família, que ainda conhece poucas pessoas na nova cidade. “O Lorenzo anda muito ansioso. Só aceita sair de casa para ir para a escola. Nem na praia ele gosta de ir”, conta Luana.
Em Eldorado do Sul, além da escola, Lorenzo fazia acompanhamento com psicóloga, psicopedagoga, terapeuta ocupacional e fonoaudióloga. Todos os atendimentos eram oferecidos pela prefeitura ou disponibilizados pela Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE). Em Tramandaí, o menino ainda está esperando vaga para seguir com suas terapias. A prefeitura alega falta de profissionais, por isso ele está na fila de espera para atendimento.
Acolhimento e apoio da comunidade
Lorenzo é um dos 30 alunos que chegaram na Escola Erineo Scopel Rapaki após as enchentes. Priscila Rocha dos Santos, diretora da instituição, conta que os novos estudantes vieram de Porto Alegre, Canoas, São Leopoldo e Eldorado do Sul. Chegaram só com a roupa do corpo e sem material escolar, com relatos de que haviam perdido tudo.
Alunos sem documentos, histórico escolar e, às vezes, até sem saber em que ano estava estudando: a escola teve que flexibilizar os requisitos básicos para fazer as matrículas. Muitos estavam em casas de parentes e endereços provisórios, sem conseguir fornecer um comprovante de residência.
A diretora conta que houve uma grande comoção da comunidade. Professores e funcionários se mobilizaram para arrecadar itens de limpeza, higiene, roupas e material escolar para apoiar o recomeço dessas famílias. Aliás, essa já é uma prática comum na Erineo: auxiliar estudantes que chegam em Tramandaí em situação de vulnerabilidade social. “Nossa escola é na periferia da cidade. Estamos acostumados a receber famílias que, por outros motivos, deixam tudo para trás e vem tentar a vida aqui. Sempre tentamos ajudar de alguma forma”, afirma Priscila.
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Desde maio, quando as inundações atingiram seu ápice, a escola começou a receber transferências, fazendo com que a instituição chegasse a 615 alunos. A diretora explica que não foi necessário criar novas turmas para atender a demanda, mas o limite de alunos foi extrapolado em algumas salas, que costumam ter entre 25 e 30 estudantes.
Priscila lembra que em junho realizaram um evento chamado Dia D na Erineo, em que as portas do colégio foram abertas para comunidade escolar. A ação teve parceria com o Lions Clube, prefeitura de Tramandaí, Sine e Senac e ofereceu consultas, vacinação, cadastro de emprego e atualização do bolsa família. A ideia era aproximar as famílias da escola e facilitar o acesso a serviços básicos, principalmente as que vieram após as enchentes. “Acolher não é só ter uma vaga. É fazer o aluno saber que ele é esperado e querido na escola”, afirma a diretora.
Mais alunos, mesma verba = uma conta que não fecha
Ao todo, foram 153 transferências após as enchentes de 2024 para a rede municipal de educação de Tramandaí, que contabiliza sete mil alunos. A cidade recebeu estudantes e suas famílias de Porto Alegre, Canoas e Novo Hamburgo, a maioria para as séries iniciais do Ensino Fundamental.
A secretária de Educação de Tramandaí, Alvanira Gamba, explica que o impacto dessa demanda extra na estrutura da rede de ensino é grande. Um dos motivos é porque os recursos financeiros para a educação, como o Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), são organizados com antecedência, a partir do número de alunos do Censo Escolar do ano anterior.
Para garantir vaga, alimentação, transporte e uniforme para todos, a secretaria teve que abrir novas turmas e convocar professores para trabalhar um turno a mais em algumas escolas. Também foi preciso negociar com os pais que não encontravam vaga em uma escola perto de onde estavam morando. Para isso, foi disponibilizado o transporte escolar da prefeitura.
Sobre a verba para a merenda, a secretária de Educação explica que, além das parcelas federais do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), a prefeitura utiliza recursos próprios para complementar a alimentação dos alunos. Dessa forma, é mais fácil ajustar os investimentos de compra ao número atualizado de estudantes da rede. Já os uniformes, a secretaria sempre compra algumas unidades a mais para eventuais emergências e necessidades, como foi o caso das transferências por causa da enchente.
Enquanto gestores se esforçam para equilibrar recursos e atender à demanda crescente, famílias como a de Lorenzo seguem enfrentando os desafios de recomeçar do zero. O acolhimento nas escolas e na comunidade do Litoral Norte têm sido fundamentais para famílias que buscam não apenas um novo endereço, mas também uma oportunidade de reconstruir suas vidas.
*Pauta selecionada pelo 6º Edital de Jornalismo de Educação da Jeduca e da Fundação Itaú
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Emilene Lopes é jornalista gaúcha com foco em educação, meio ambiente e cultura. Atua como repórter freelancer e lidera o projeto de jornalismo local Retratos de Guaíba, dedicado a resgatar memórias e promover o diálogo sobre a identidade e cultura dos guaibenses. Vencedora do Prêmio Paulo Freire de Jornalismo 2022, na categoria Mídias Digitais, também produziu o documentário Histórias do Cine Gomes Jardim (2019)