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Falta meio ambiente nesse samba

Fase progressista do Carnaval ainda não abriu o devido espaço ao assunto nos enredos; produção de alegorias e fantasias também precisa aderir à sustentabilidade

ODS 12ODS 13 • Publicada em 3 de fevereiro de 2023 - 13:59

Pega a visão: uma floresta opulenta, no meio da metrópole, plantada pelos humanos após ser totalmente dizimada. Trabalho iniciado por seis escravizados, a mando de um imperador que entendeu a importânca da natureza séculos antes de ser tornar urgência global. Graças à floresta, a temperatura na selva de concreto é três graus mais amena. A mata de biodiversidade monumental impõe o convívio com animais selvagens em pleno território urbano.

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Dá um enredo, não?

Pois é: até hoje, não. A Floresta da Tijuca, ícone pioneiro e admirável de iniciativa ambiental, uma das melhores caras da capital do Carnaval, jamais foi tema de uma das grandes escolas de samba do Rio. Por enquanto, exemplo (caseiro) de como o meio ambiente não está conseguindo o mesmo espaço de outras causas – igualmente urgentes – na nossa maior festa popular.

Nos últimos tempos, notadamente desde 2016, o Carnaval das escolas de samba embrenhou-se numa viagem (até onde a vista alcança, sem volta) por enredos identitários, engajados, críticos e progressistas, que denunciam mazelas da sociedade brasileira no ritmo do paticumbum. Crise climática, preservação do planeta, povos da floresta, aquecimento global e outros assuntos – verdes como Imperatriz, Império Serrano, Mocidade, Grande Rio, azuis como Beija-Flor, Portela, Vila Isabel – ainda carecem de espaço e atenção dos bambas.

Enfrentamento ao racismo, tolerância religiosa, valorização de fatos e personagens apagados da história oficial e exaltação dos pretos têm passado constantemente na Sapucaí, em mudança virtuosa da festa que, por décadas, se escorou no adesismo. Mas falta espaço para a causa ambiental.

Cacique Raoni no desfile da Imperatriz: presença marcante. Foto Gabriel Monteiro/Riotur
Cacique Raoni no desfile da Imperatriz: presença marcante. Foto Gabriel Monteiro/Riotur

Nos últimos carnavais, ficou com a Imperatriz Leopoldinense, em 2017, a exceção que confirma a regra do esquecimento. “Xingu, o clamor que vem da floresta”, enredo desenvolvido pelo carnavalesco Cahe Rodrigues, exaltou a resistência da cultura e dos povos amazônicos e denunciou os homens brancos, suas doenças e seus venenos, como ameaça à sobrevivência indígena. O cacique Raoni e o pajé Sapain desfilaram com a verde e branco, comovendo o público na Passarela.

O enredo enfureceu os barões do agronegócio, retratados – ora, ora – como vilões devastadores da floresta. A escola terminou em sétimo no caótico desfile daquele ano, que teve empate entre Mocidade e Portela no primeiro lugar. (Dois acidentes mancharam a festa em 2017: uma alegoria do Paraíso do Tuiuti derrapou na pista molhada, matou uma pessoa e feriu outra gravemente. Na Unidos da Tijuca, o piso de um carro cedeu e mais de 30 componentes se feriram. As duas ocorrências geraram questionamentos e suspeitas sobre a construção e fiscalização das estruturas gigantes.)

“Os enredos ambientais tiveram sim menos espaço em meio às pautas identitárias recentes. A intolerância contra religiões de matrizes africanas – muitas vezes, fomentada pelo próprio Estado – fez as escolas se dedicar ao exaltar de entidades e processos que embasaram sua formação”, atesta Fábio Fabato, jornalista e premiado criador de enredos, reconhecendo que as causas ecológicas não tiveram o protagonismo necessário. “Nos anos 1980 e até 1990, por exemplo, a temática teve muito mais destaque na esteira do processo de redemocratização”, recorda ele.

Fabato destaca que mesmo durante a ditadura as escolas tentaram defender o meio ambiente (assunto muito menos valorizado, à época), enfrentando até a censura. “O samba para o enredo “Aruanã Açu”, de Martinho da Vila, na Vila Isabel em 1974, foi descartado ao denunciar o drama dos indígenas diante do progresso desenfreado. Por imposição do governo autoritário, a proposta sofreu guinada completa, terminando por fazer apologia à Transamazônica, obra-orgulho dos militares, e que machucava a floresta e seus povos”, narra o pesquisador, ratificando o aforismo “vingança é prato que se come frio”.”Em 1980, veio a revanche de Martinho: a canção escolhida para embalar o enredo ‘Sonho de um sonho’ criticava o autoritarismo, com ‘as mentes abertas/ sem bicos calados/ juventude alerta’.”

A cruzada ambiental motivou a genialidade de Fernando Pinto (1945-1987) e seu estilo único, em especial na Mocidade Independente. “Em 1983, ‘Como era verde meu Xingu’ virou marco na conscientização ecológica, coroada no espetacular ‘Tupinicópolis’ (1987), retrato de uma metrópole indígena autossuficiente e responsável no uso dos recursos naturais”, recorda Fabato, ressaltando que o grande momento “ecológico” do Carnaval se deu na virada do século, com importantes enredos como “Quase no ano 2000” (Imperatriz 1998), “O dono da Terra” (Unidos da Tijuca 1999) e “Manoa, Manaus, Amazonas – Alimenta o corpo, equilibra a alma e transmite a paz” (Beija-Flor 2004).

Em 2023, somente a pequenina Acadêmicos de Santa Cruz, dos confins da Zona Oeste carioca, apostou no ambientalismo folião. “Santa é minha cruz. É luz da preservação. Meu canto é flecha certeira, para findar o pranto da devastação”, do carnavalesco Cid Carvalho, vai denunciar a destruição da floresta e clamar pela salvação dos povos originários. “Na aldeia a sabedoria/ Rituais, harmonia/ Um tesouro a preservar/ E no afã de um novo mundo/ A ganância navegou/ Dizimando o paraíso/ Yanomami chorou/ Na lança a bravura guerreira/ Ainda hoje vejo a devastação/ Resplandece a consciência/ A Amazônia é o pulmão, é resistência”, canta o samba, assinado por uma tropa: Cláudio Brow, Elias Andrade, J.Giovanni, Jorge Maia, Júnior Boboda, Marquinho Bombeiro, Rafael Lima, Robinho Ki Samba, Zé Gloria, Zezé e Zieco Santa Cruz. O desfile será dia 25 de fevereiro, sexta-feira pós-folia, na Passarela Popular da Intendente Magalhães.

Além dos temas, as grifes da Sapucaí precisam se atualizar na gestão e na construção das alegorias e fantasias, ainda presas num antediluviano processo insustentável. Os carros, cada vez maiores, são movidos a combustíveis fósseis, usa-se plástico de maneira desenfreada e as roupas continuam utilizando penas de animais como faisões e pavões na decoração.

Nas quadras e barracões, as escolas resistem a instalar painéis fotovoltaicos, para captação de energia solar. Não aprenderam a óbvia lição de que a medida diminui a conta de luz, e dá lucro precioso em imagem, além de atrair parceiros e investidores. Ecologia é, também, dinheiro.

Está na hora de o Carnaval apostar à vera em todo esse enredo. Será mais um presente, entre os muitos que as escolas de samba dão ao mundo.

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