A intensa onda global de calor e o degelo dos polos em 2023

Balsa encalhada na Marina do Davi, em ancoradouro do rio Negro, Manaus (AM): crise climática causa onda global de calor e o degelo dos polos (Foto: Michael Dantas / AFP -16/10/2023)

Primavera com chuvas abundantes no Sul e seca sem precedentes na Amazônia é apenas um dos muitos sintomas da incontestável crise climática

Por José Eustáquio Diniz Alves | ODS 13 • Publicada em 23 de outubro de 2023 - 08:49 • Atualizada em 19 de novembro de 2023 - 19:33

Balsa encalhada na Marina do Davi, em ancoradouro do rio Negro, Manaus (AM): crise climática causa onda global de calor e o degelo dos polos (Foto: Michael Dantas / AFP -16/10/2023)

Os climatologistas estão alertando há décadas sobre o aumento da temperatura global e suas consequências catastróficas. Os últimos 9 anos (2014-2023) foram os mais quentes do Holoceno (últimos 12 mil anos) e 2023 deve superar todos os recordes anteriores. Assim, não é mais possível ignorar o fato de que o mundo está esquentando e provocando desastres climáticos frequentes, dispendiosos e mortais.

Os negacionistas do aquecimento global foram desmentidos pela dura realidade e estão ficando desacreditados. Os indícios de um possível colapso climático e ambiental estão se disseminando por todo o planeta. No Brasil, o início da primavera tem sido caracterizado por chuvas abundantes e calamitosas na região Sul e por uma seca sem precedentes na Amazônia. Quem poderia imaginar que os habitantes ribeirinhos da maior bacia hidrográfica do mundo estariam sem acesso a água potável?

O Papa Francisco divulgou a encíclica Laudate Deum (“Louvado seja Deus”), no início de outubro de 2023, onde diz: “Apesar de todas as tentativas de negar, ocultar, encobrir ou relativizar a questão, os sinais das alterações climáticas estão aqui e são cada vez mais evidentes. Ninguém pode ignorar o fato de nos últimos anos termos assistido a fenômenos meteorológicos extremos e períodos frequentes de calor anormal”.

Mas, apesar de todo o conhecimento científico e dos alarmantes registros climáticos da última década, ninguém esperava um aumento tão surpreendente da temperatura global neste terceiro trimestre de 2023, como ilustra o gráfico abaixo, do Goddard Institute for Space Studies (GISS) da NASA.

O mês de julho de 2023 registrou uma temperatura média de 17,2°C, sendo o valor mais elevado dos últimos 120 mil anos. Em comparação com a média do período 1850-1900, a diferença (anomalia) foi de 1,54°C em julho. Em agosto, a temperatura média também permaneceu acima de 17°C, com uma anomalia ainda maior de 1,68°C em relação ao período pré-industrial (1850-1900). Já em setembro, a média da temperatura ficou ligeiramente abaixo de 17°C, mas a anomalia mensal registrada foi a mais significativa já observada nas séries históricas, atingindo impressionantes 1,82°C.

O notável aumento da temperatura em setembro, sem dúvida, encaminha 2023 para se tornar o ano mais quente já registrado, prevendo impactos significativos em escala global. No início de 2023, o Instituto Berkeley Earth estimava que a probabilidade de atingir uma média anual de 1,5ºC este ano era de somente 1%. Mas dado o calor extremo do terceiro trimestre de 2023, a probabilidade de uma anomalia superior a 1,5ºC acima da média de 1850-1900 passou para 90%. Além disso, estes recordes podem ser um presságio de temperaturas ainda mais elevadas em 2024 devido aos efeitos do El Niño.

Até mesmo o Dr. James Hansen, que fez um histórico depoimento perante o Congresso dos EUA em 23 de junho de 1988, alertando as autoridades sobre a grave ameaça do aumento da temperatura do planeta, enquanto dirigia o Instituto Goddard de Estudos Espaciais da NASA, demonstra crescente preocupação com a velocidade das mudanças climáticas. Atualmente, ele tem escrito artigos que apontam para um processo de aceleração do aquecimento global, o qual pode se transformar em uma ameaça existencial à civilização humana.

Desta forma, não é possível negar as evidências. O Instituto Berkeley Earth registra que setembro de 2023 marcou o 14º mês em que a temperatura mensal excedeu 1,5°C em relação ao período pré-industrial, superando o limite inferior estipulado no Acordo de Paris. Durante o ano de 2023, esse limite foi ultrapassado em quatro ocasiões (março, julho, agosto e setembro), com o terceiro trimestre de 2023 (julho, agosto e setembro) registrando a anomalia mais significativa de toda a série de dados, conforme indica o gráfico abaixo.

Até o início de outubro, houve mais de 100 dias consecutivos com anomalias acima de 1,5°C. Em alguns dias, a anomalia chegou a atingir 1,9°C, aproximando-se perigosamente da margem superior estabelecida pelo Acordo climático aprovado pela comunidade internacional em 2015.

Há de se considerar que as metas do Acordo de Paris são entendidas em referência ao clima médio ao longo de muitos anos e não somente em relação aos meses individuais ou a um único ano. No entanto, anomalias isoladas acima de 1,5°C são um aviso de que a Terra está se aproximando desse patamar. Atualmente, o valor mínimo de referência do Acordo de Paris tem sido encarado como a ultrapassagem temporária de um teto. Porém, na próxima década, o limiar de 1,5ºC já pode vir a se tornar o piso de uma temperatura global persistentemente ameaçadora.

O aumento da temperatura global acarreta profundas consequências em diversas áreas. A crise climática afeta os ecossistemas e a biodiversidade, resultando na extinção de espécies e no deslocamento de animais e plantas de seus habitats naturais. O aquecimento global está diretamente associado ao aumento na frequência e intensidade de eventos climáticos extremos, como furacões, secas, enchentes, ondas de calor e tempestades mais intensas.

As ondas letais de calor contribuem para o aumento das doenças relacionadas ao clima, prejudicando as condições de saúde existentes e agravando a carga de doenças e devem ameaçar bilhões de pessoas na segunda metade do século XXI (VECELLIO et al, 09/10/2023). A emergência climática gera custos econômicos significativos, incluindo danos à infraestrutura, erosão dos solos, crises hídricas e dívidas associadas à mitigação e adaptação. Além disso, prejudica a produção agrícola e pecuária, levando à escassez de alimentos e ao aumento dos preços dos produtos alimentícios.

O aquecimento global provoca o derretimento do gelo marinho e o colapso das calotas polares, ameaçando as áreas urbanas costeiras, inundando terras agrícolas em regiões próximas ao mar e colocando em risco a sobrevivência de bilhões de pessoas que residem em áreas litorâneas. Os aumentos de temperatura de 2023 estão acelerando o degelo dos polos, e a perda de gelo no Ártico e na Antártica nunca foi tão intensa como atualmente.

As geladeiras da Terra não estão conseguindo esfriar o Planeta

O Ártico e a Antártica são as regiões mais frias da Terra e são como geladeiras essenciais para o equilíbrio do sistema climático. O frio intenso dos polos leva à formação de sistemas de alta pressão que influenciam os padrões de vento em latitudes médias, determinando a circulação atmosférica planetária. Portanto, o Ártico e a Antártica desempenham papéis críticos na regulação do sistema climático global. Por conseguinte, a perda de gelo pode ter consequências catastróficas em todo o mundo.

De maneira preocupante, os polos estão aquecendo acima da média global. Esse fenômeno é conhecido como “amplificação do aquecimento polar”. À medida que o gelo marinho do Ártico e da Antártica derrete, devido ao aumento da temperatura, a superfície exposta, geralmente mais escura, absorve mais calor do sol, em vez de refleti-lo de volta para o espaço. Isso leva a um aquecimento adicional, à medida que o gelo diminui, um fenômeno conhecido como “retroalimentação de gelo-albedo positivo”.

O degelo do Ártico vem ocorrendo de forma acelerada desde o início dos anos 2000. O último ano em que a média anual de gelo marinho ficou acima da média de 1981-2010 foi em 2001. A partir de 2002 o degelo se acelerou e atingiu o menor nível no verão ártico de 2012, com cerca de 3 milhões de km2 a menos do que a média de 1981-2010. Em setembro de 2023 a área de gelo ficou 2,1 milhões de km2 a menos do que a média de 1981-2010. No dia 19 de outubro a diferença estava em 2,3 milhões de km2, conforme mostra o gráfico abaixo do Centro Nacional de Dados sobre Neve e Gelo dos EUA.

O que estava ruim na região setentrional, tem piorado no continente meridional. A aceleração do degelo da Antártica é mais recente do que no Ártico, pois até 2015 a área do gelo marinho estava aumentando levemente. Contudo, o montante de gelo marinho começou a recuar a partir de 2016, atingiu o nível mínimo em 2022 e assumiu proporções dramáticas em 2023.

O nível do gelo marinho ao redor da Antártida no corrente ano atingiu o mínimo histórico desde que os cientistas começaram a usar satélites para medi-lo no final dos anos 1970. No verão meridional, o ar, os ventos e as águas mais quentes reduziram a cobertura de gelo para apenas 1,79 milhão de km2 no dia 21 de fevereiro, conforme mostra o gráfico abaixo, também do Centro Nacional de Dados sobre Neve e Gelo dos Estados Unidos.

O mínimo anterior aconteceu em 21/02/2022 com 2,02 milhões de km2. Na média do período de 1981 a 2010, o valor estava em 2,82 milhões de km2 e em 21/02/2015 o nível de gelo estava em 3,6 milhões de km2. Portanto, no dia 21 de fevereiro do verão Antártico, o nível de gelo em 2023 estava cerca de 1 milhão de km2 a menos do que na média de 1981-2010.

Se o verão antártico foi dantesco, o inverno de 2023 foi totalmente atípico. A média da área de gelo do período 1981-2010, no dia 21 de setembro, foi de 18,594 milhões de km2, mas o dia 21 de setembro de 2023 registrou somente 16,943 km2, menos 1,6 milhão de km2. O que ocorreu no inverno da Antártida é um evento jamais visto e tem deixado a comunidade científica surpresa com o grau e a rapidez das mudanças ocorridas. No dia 19 de outubro de 2023, a área de gelo marinho marcou 16,1 milhões de km2, cerca de 2 milhões de km2 abaixo da média de 1981-2010.

Considerando a variação conjunta da área de gelo do Ártico e da Antártica, o gráfico abaixo mostra que os polos tinham perdido 4,49 milhões de km2, no dia 17 de outubro de 2023. Nunca houve uma queda tão abrupta da área de gelo e, se não houver reversão, as consequências serão catastróficas.

Para efeito de comparação, o degelo de uma área de 4,49 km2 equivale ao território geográfico conjunto da Índia (3,3 milhões de km2), Paquistão (796 mil km2), Bangladesh (148 mil km2), Nepal (147 mil km2) e Butão (38mil km2). Estes 5 países possuem 25% da população mundial. Portanto, os polos perderam uma área de gelo em 2023 equivalente à área geográfica de 5 países que possuem quase 2 bilhões de habitantes.

A Antártida possui a maior massa de gelo do planeta, contendo aproximadamente 90% de toda a água doce da Terra na forma de gelo. O degelo da Antártica tem implicações significativas para o nível do mar, as correntes oceânicas, os ecossistemas marinhos e o clima global. O gráfico abaixo mostra que o volume global de gelo marinho atingiu o menor valor em 2023.

O volume de gelo perdido nos polos é uma quantidade que varia ao longo do tempo e tem sido monitorada de perto por cientistas usando uma variedade de métodos, incluindo observações por satélite, medições de balanço de massa, registros históricos e modelos climáticos.

O artigo “Annual mass budget of Antarctic ice shelves from 1997 to 2021”, publicado na revista acadêmica Science Advances, (DAVISON, BJ et al, 12/10/2023) avaliou a massa de todas as plataformas de gelo da Antártica de 1997 a 2021. O estudo revelou que mais de 40% das plataformas de gelo encolheram, com toneladas de água doce entrando no oceano. Os cientistas da Universidade de Leeds calcularam que a Antártica perdeu 7,5 trilhões de toneladas métricas de gelo desde 1997.

A causa principal desse rápido derretimento é o aquecimento da atmosfera e das águas oceânicas. A Antártica é um regulador importante do clima global. O derretimento do gelo sobre o mar pode ter consequências significativas, afetando habitats de muitas espécies, incluindo baleias, pinguins e focas, além de gerar mudanças na salinidade dos oceanos que afetariam toda a vida marinha. Além de aumentar o nível dos mares, o derretimento do gelo pode afetar a circulação oceânica e atmosférica, com impactos significativos no clima planetário.

Sem dúvida, o aquecimento global está contribuindo para o aumento do degelo dos polos e, devido ao efeito de retroalimentação, a redução da cobertura de gelo está elevando as temperaturas médias do planeta, acelerando uma espiral infernal de calor que tem causado um desequilíbrio climático rápido e sem precedentes ao longo da história da evolução da raça humana, incluindo os hominídeos e nossos ancestrais mais distantes.

Por causa disso, o Secretário-geral da ONU, António Guterres, declarou na abertura da Cúpula da Ambição Climática realizada em Nova York, em setembro de 2023, que a elevação da temperatura global causada pelo crescimento desenfreado das atividades antrópicas “abriu as portas do inferno”.

Mas o caminho para o inferno é longo. Segundo o poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321), o inferno é o local em que os pecadores recebem punição. Ele é composto por 9 círculos, sendo o primeiro deles o menos terrível e o último, o pior de todos. Antes do 1º círculo há o Vestíbulo do Inferno – lar dos indecisos, dos covardes, daqueles que viveram a vida toda sem se posicionar, estando condenados a correr em filas, sendo torturados por picadas de vespas e moscas, enquanto vermes roem suas pernas.

Entre o Vestíbulo e o 1° Círculo, existe um arco com a frase que sintetiza os tempos difíceis e que serve de alerta na atualidade a todas as pessoas que ousaram ultrapassar os limites das fronteiras planetárias, que destruíram o paraíso terrestre e que contribuíram para a atual crise climática e ambiental:

“Deixai toda a esperança, vós que entrais!”

Referências:

ALVES, JED. O recorde de degelo da Antártida e o fim das praias do Rio de Janeiro, # Colabora, 13/03/23

https://projetocolabora.com.br/ods13/o-recorde-de-degelo-da-antartida-e-o-fim-das-praias-do-rio-de-janeiro/

ALVES, JED. Seis fronteiras planetárias foram rompidas aumentando o risco de um colapso ambiental global, # Colabora, 25/09/2023 https://projetocolabora.com.br/ods6/risco-de-colapso-ambiental-cresce-com-o-rompimento-de-seis-fronteiras-planetarias/

DAVISON, BJ et al. Annual mass budget of Antarctic ice shelves from 1997 to 2021, Science Advances, 12 Oct 2023 https://www.science.org/doi/10.1126/sciadv.adi0186

VECELLIO, DJ et al. Greatly enhanced risk to humans as a consequence of empirically determined lower moist heat stress tolerance, PNAS, October 9, 2023

https://www.pnas.org/doi/full/10.1073/pnas.2305427120

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

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