ODS 1
Chuvas no Sul: no caos climático, degradação da Amazônia impacta no outro extremo do país
Catástrofe em curso no Rio Grande do Sul, com mais de 140 mortos, é a conjunção de três fatores, e um deles está diretamente ligado à nossa floresta tropical
(Nicoly Ambrósio* – Manaus/AM) – Neste exato instante, o sul do Brasil sofre com as chuvas extremas, mas as florestas na Amazônia Legal continuam queimando e não estão no radar midiático. As secas extremas foram notícia, mas o fogo não. A região, que ainda não se recuperou da última seca histórica, registrou 12.457 focos de calor entre 1º de janeiro e 9 de maio, o dobro do ano passado, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Cientistas ouvidos pela Amazônia Real são categóricos: as tragédias climáticas do Sul do Brasil e da região amazônica estão sendo agravadas pela ação humana. E todos esses fenômenos extremos estão interligados, porque áreas desmatadas, exploradas ilegalmente e cujo modelo de negócios é continuar emitindo carbono na atmosfera influenciam o clima a milhares de quilômetros de distância. Até esta segunda-feira (13/05), estavam confirmadas 145 mortes provocadas pelas chuvas no Rio Grande do Sul.
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Para o cientista Paulo Artaxo, membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), o aumento da frequência e da intensidade de eventos climáticos extremos são causados diretamente pela mudança climática global. A modificação do clima, por sua vez, é inflamada pela emissão de milhões de toneladas de gases de efeito estufa. O desmatamento acelerado dos biomas brasileiros, como a Amazônia e o pampa gaúcho, também é outro fator que acelera esse processo. “A emissão de gases de efeito de estufa é provocada pela queima de combustíveis fósseis. Essa indústria é responsável por 85% das emissões e desmatamento de florestas tropicais. O desmatamento da Amazônia corresponde a cerca de 10% das emissões globais de gases de efeito estufa. Esse é o processo que está ocorrendo globalmente”, alerta o cientista.
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Veja o que já enviamosA rápida aceleração da crise climática, observa Artaxo, está impactando de forma significativa o País, como é o caso do que está acontecendo nos desastres no Rio Grande do Sul. Diante da alteração da dinâmica das chuvas, o pesquisador afirma que não é equívoco relacionar a devastação gradativa da Amazônia como um dos fatores responsáveis por essa tragédia climática.
A catástrofe em curso no Rio Grande do Sul é a conjunção de três fatores, e um deles está diretamente ligado à Amazônia. Um grande corredor de umidade desce até o Sul todos os anos, nos chamados rios voadores. Esse grande volume de água é capaz de provocar problemas em algumas cidades, mas não na ordem de grandeza como a que o mundo testemunha agora. O problema é que ela chegou quando uma onda de calor atinge as regiões Sudeste e Centro-Oeste desde o fim de abril, criando um bloqueio atmosférico que impede que frentes frias avancem, como seria esperado. Uma corrente intensa de vento agindo sobre o Estado gaúcho potencializou para que o tempo ficasse instável – chovendo por dias seguidos e inundando as bacias do Taquari, Jacuí e Caí, além dos rios Pardo, dos Sinos e Guaíba.
ESG e greenwashing
Para Paulo Artaxo, não há a menor dúvida de que as empresas de mineração e das grandes indústrias de transporte são diretamente responsáveis pelas mudanças climáticas, algo que deve ser estendido também ao setor do agronegócio. Mas no mundo corporativo todas estão fazendo o “dever de casa”.
“Na maioria dos casos, as chamadas estratégias ESG (da sigla, em inglês, para as palavras “ambiente”, “social” e “governança”) usadas por essas empresas são basicamente o que a gente chama de ‘greenwashing’, que é essencialmente uma forma de tentar melhorar a sua imagem sem que isto efetivamente contribua para a redução de emissões de gases de efeito estufa ou contribua por um maior efeito social positivo”, afirma o cientista.
Empresas têm se apressado em adotar a sigla ESG, a despeito de suas condutas de preservação ambiental não serem observadas, afirma o pesquisador. Ou seja, há muitas contradições entre o discurso e a prática. Na Amazônia, o interesse econômico gira em torno da implementação de atividades de mineração, da expansão da monocultura e da criação de gado. A exploração de gás e petróleo, por exemplo, avança no Campo do Azulão com apoio de políticos e empresários. O empreendimento, situado no município de Silves, no Amazonas, ameaça a vida do povo Mura naquele território. A Eneva, empresa à frente das atividades no Campo do Azulão, advoga o uso de ESG em suas ações.
Mais recentemente, a liberação de licença de instalação a obras de exploração de potássio foi oficializada pelo governador do Amazonas, Wilson Lima, por meio do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam). A área se sobrepõe à comunidade Lago dos Soares, território reivindicado pelos Mura em Autazes, também no Amazonas. A obra é repudiada pelas comunidades pelos seus impactos socioambientais. Igualmente a Eneva, a empresa de mineração Potássio do Brasil também assume compromisso ambiental por meio das estratégias ESG.
Há também o emblemático caso da construção da estrada conhecida como Ferrogrão. Apresentada pelas gigantes do agronegócio Cargill, Dreyfus, Amaggi e Bunge, a proposta da linha férrea pretende ligar a cidade de Sinop, no Mato Grosso, ao distrito de Miritituba, na margem direita do rio Tapajós, sudoeste do Pará, em prol do escoamento de grãos.
Setores do governo Lula (PT) defendem abertamente a Ferrogrão. A obra, inclusive, tem recursos assegurados pelo novo Programa de Aceleramento do Crescimento (PAC), publicado em agosto de 2023. Os trilhos da ferrovia passarão às margens de terras indígenas e áreas preservadas e a obra enfrenta oposição das comunidades tradicionais, que alegam não ter sido consultadas a respeito dos impactos socioambientais, entre eles o desmatamento de uma área de quase 50 mil quilômetros quadrados.
Populações vulneráveis
O ecólogo e geógrafo Carlos Durigan concorda que os processos naturais do clima, em níveis extremos aos que se vê agora no Rio Grande do Sul e antes na Amazônia, respondem aos estímulos das atividades humanas que exploram. “A maior concentração de carbono na atmosfera leva a esses extremos que estão resultando em situações imprevisíveis, que quebram a rotina climática de algumas regiões”, assegurou.
Durigan explica que a região do Sul “extravasa” as enchentes de forma muito mais rápida e intensamente, já que estão em áreas sujeitas a inundações e são ocupadas por atividades produtivas e desmatadas ao longo das décadas, além do assoreamento dos leitos de rios.
O problema é que, segundo Durigan, todas paisagens geográficas dos biomas brasileiros estão sofrendo e sendo modificadas pelo aquecimento global. “Tudo indica que a cada mês que passa nós temos um mês mais quente que o anterior”, diz. Como as pessoas que ocupam áreas de risco costumam ser as mais afetadas e vulneráveis aos efeitos da crise climática, era possível que parte da população continuasse negando que o mundo esteja próximo do chamado ponto de não-retorno ou que o aquecimento global não existisse. A inundação do Rio Grande do Sul, desta vez, não distinguiu praticamente ninguém.
Mas os povos indígenas, quilombolas e pequenos agricultores continuarão a estar entre os mais afetados, em qualquer parte do território nacional. As enchentes do Sul atingiram mais de 80 comunidades indígenas, de acordo com levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY). São impactados 8 mil indígenas Guarani Mbya, Kaingang, Xokleng e Charrua, em cerca de 50 municípios gaúchos.
Os danos registrados nas comunidades são a destruição de aldeias pelas enchentes, a evacuação de pessoas e o isolamento por estragos em estradas. Plantações foram inundadas, animais e colheitas estão mortos.
Desde o estabelecimento do Acordo de Paris, tratado internacional sobre mudanças climáticas que abrange mitigação, adaptação e financiamento para frear as mudanças climáticas, o ecólogo afirma que não houve nenhuma redução significativa na emissão de gases de efeito estufa na atmosfera.
Esse cenário é fruto da falta de compromisso dos setores relacionados principalmente à produção energética e à queima de combustíveis fósseis. Para Durigan, os países deveriam estar limitando o aumento da exploração e produção de petróleo e derivados. “O desmatamento no Brasil aumentou em todos os biomas e tudo isso está relacionado às essas atividades”, pontua.
A culpa dos governos
Para que o Brasil possa se adaptar a esses eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes, a primeira medida a ser adotada é o estrito cumprimento do Código Florestal, o que garante a existência de áreas de proteção ambiental como reservas e terras indígenas, diz o pesquisador Paulo Artaxo. “Essas áreas ajudam, em muito, a mitigar efeitos de enchentes e alagações. Temos no Brasil uma legislação ambiental concreta, que tanto governos quanto empresas devem seguir para contribuir na adaptação ao novo clima”, diz.
Apesar disso, os governos estaduais e federal, segundo o cientista, não assumem compromisso em reduzir emissões de gases de efeito estufa e mitigar os impactos da crise climática.
O Observatório do Clima, rede formada por 107 organizações ambientais, compilou 25 projetos de lei (PLs) e três Propostas de Emenda à Constituição (PECs) que tramitam no Congresso e atacam os direitos socioambientais. Os retrocessos incluem a flexibilização do Código Florestal, a redução de reservas legais na Amazônia e até anistia para desmatadores. Uma das propostas, que busca criar a Lei Geral do Licenciamento Ambiental (PL 2159/2021), é especialmente prejudicial ao Rio Grande do Sul.
Apontado como carro-chefe do “Pacote da Destruição”, o PL, se aprovado, deverá consolidar e ampliar uma medida já antecipada pelo governo e pela Assembleia Legislativa do Estado gaúcho, que é a implementação da Licença Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC).
Ativista ambiental e diretora de Ciências do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), a geógrafa Ane Alencar é categórica em dizer que uma das políticas públicas ambientais que é fundamental e tem sido negligenciada, é o licenciamento ambiental. “No Rio Grande do Sul, o licenciamento pode ser um processo quase que involuntário, onde você se cadastra na plataforma e a sua licença sai, se você se comprometer a fazer várias coisas. Esse tipo de ação acaba gerando distorções. Quem é que vai fiscalizar isso?”, indaga.
Alencar afirma que é o licenciamento ambiental feito pelos órgãos responsáveis que garante que grandes empreendimentos, como barragens e mineradoras, vão cumprir a legislação ambiental para evitar que eventos causados por questões climáticas tenham um impacto ainda maior.
A LAC vai na contramão dessa política, instituindo o autolicenciamento ambiental no Rio Grande do Sul. As autorizações a empreendimentos são concedidas por um sistema online, sem que haja análise prévia por parte do órgão ambiental estadual.
A criação da LAC foi um projeto apresentado em 2019, no primeiro ano do governo de Eduardo Leite (PSDB), e aprovado pela Assembleia Legislativa em 2021. A lei desfigurou o antigo Código Ambiental do Rio Grande do Sul ao alterá-lo em quase 500 pontos. As mudanças afrouxaram a legislação ambiental no Estado, mas o governador nega.
O projeto também dispensa o licenciamento ambiental para atividades agropecuárias se o imóvel estiver regularizado no Cadastro Ambiental Rural (CAR), em processo de regularização ou se houver firmado termo de compromisso para recompor vegetação desmatada ilegalmente. Em meio ao desastre climático e ambiental no Sul, a Câmara dos Deputados aprovou na quarta-feira (8) o Projeto de Lei 1366/22, que exclui a silvicultura (cultivo de árvores com fins comerciais, como pinhos e eucaliptos) do segmento de atividades potencialmente poluidoras e utilizadoras de recursos ambientais. As monoculturas de eucalipto, chamadas de “desertos verdes”, são ligadas à redução de biodiversidade e à exaustão de recursos hídricos no solo. Muitas dessas empresas da indústria de celulose ostentam o símbolo ESG em seus relatórios para investidores. A proposta aguarda sanção presidencial.
Destruição do Pampa
Em 2021, a sanção de uma lei que flexibiliza o Código Ambiental no Rio Grande do Sul permitiu a construção de barragens e açudes nas em Áreas de Preservação Permanente. O governo de Eduardo Leite também barrou a implementação do chamado Programa de Regularização Ambiental, previsto desde 2012, para recuperar passivos de áreas verdes nos biomas pampa e mata atlântica.
Outro projeto de lei que ameaça o meio ambiente no Estado sulista é o PL 364/2019, que elimina a proteção de todos os campos nativos e outras formações não-florestais. O projeto pode facilitar a destruição de 32% do pampa, bioma que se estende por 69% do território do Rio Grande do Sul.
Segundo a análise de imagens de satélite captadas pelo MapBiomas Pampa, uma rede colaborativa de especialistas da Argentina, Brasil e Uruguai, o pampa sul-americano já perdeu 20% de sua vegetação campestre entre 1985 e 2022, incluindo 9,1 milhões de hectares de campos nativos.
Os dados revelam que a vegetação nativa cobre menos da metade do pampa (47,4%). A maior parte dela corresponde à vegetação campestre (32% do território), e que tradicionalmente é utilizada para a pecuária. Quase metade (48,4%) da região já teve a vegetação nativa convertida para o desenvolvimento da agricultura, pastagens plantadas ou silvicultura.
A vegetação campestre nativa, que é a base para a produção animal, sendo a vocação natural do bioma, caiu de 44 milhões de hectares em 1985 para 35 milhões de hectares em 2022. “A gente quase não ouve falar do desmatamento do pampa, mas salta aos olhos pelo tamanho do bioma. É um dos biomas brasileiros mais frágeis, que proporcionalmente está sofrendo bastante a destruição de sua vegetação nativa”, compara Ane Alencar.
A geógrafa afirma ainda que a preservação da vegetação nativa no pampa ajudaria a reduzir os impactos das enxurradas. Há também a questão do planejamento urbano para prever a retirada das pessoas que estão mais expostas a desastres climáticos, como o de agora.
“Acabar com esse desmatamento é fundamental para contribuir para a mitigação das mudanças climáticas. Temos que lutar para que os impactos não aconteçam na Amazônia ou em um bioma em regiões mais próximas à Amazônia, como no caso do Sul do Brasil. A gente devia estar mais preocupado em conservar a vegetação nativa”, manifesta.
Amazônia em alerta
No fim de abril, a Defesa Civil do Amazonas publicou um relatório de previsão de estiagem para 2024. O estudo é um alerta crítico de que tudo pode voltar a se repetir. Segundo os dados, as bacias da região estão neste momento com seus rios abaixo da cota de cheia considerada normal.
Carlos Durigan diz que a Amazônia está passando por um inverno menos chuvoso, com o fenômeno do El Niño se estendendo para 2024 e formando domos de calor. O período é marcado por chuvas abaixo do normal para muitas regiões da Amazônia. “Isso pode levar a um período de seca muito similar ao que aconteceu ano passado. Pode haver uma seca extrema novamente, com rios secos e áreas isoladas”, defende.
Para Ane Alencar, as relações entre os eventos climáticos extremos no País comprovam que o clima na Terra está mudando. “Quando esse fenômeno do El Niño ocorre por causa de um aquecimento maior e esse aquecimento é combinado com as altas temperaturas, toda essa mudança na superfície da água e na temperatura de vários oceanos impactam as correntes de ar que causam essas tempestades no Sul. Está tudo conectado”, diz a pesquisadora.
*Nicoly Ambrosio é jornalista formada pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e fotógrafa independente residente na cidade de Manaus. Como repórter, escreve sobre violações de direitos humanos, conflitos no campo, povos indígenas, populações quilombolas, racismo ambiental, cultura, arte e direitos das mulheres, dos negros e da população LGBTQIAPN+
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