A seca que traz ainda mais injustiças ao Nordeste

A seca que traz ainda mais injustiças ao Nordeste

Em frente à lagoa que não tem mais sururu, Cristiane Silva — grávida do 11º filho no dia das fotos — quer dias melhores para a família. Os meninos mais novos são Isaac (no chão) e Jacó (no colo). Foto Pei Fon (Instagram @peifonphotography)

Mudanças climáticas e desigualdades sociais agravam a crise hídrica e expõem crianças e adolescentes à pobreza, doenças e violência

Por Camila Saccomori | ODS 13 • Publicada em 22 de outubro de 2024 - 00:10 • Atualizada em 25 de outubro de 2024 - 09:50

O clima da região Nordeste tem quatro variações: equatorial, semiárido, tropical típico (seco e úmido) e tropical atlântico. E nos últimos anos as mudanças climáticas bagunçaram todas estas classificações e, portanto, a vida de quem mora no Nordeste. Os principais impactos são a desertificação e a redução de recursos hídricos, de forma geral. Em certas localidades, outros impactos são justamente o oposto, com inundações em estados como Pernambuco, Bahia, Piauí e Maranhão. As enxurradas também causam deslizamentos de terra em encostas, onde muita gente mora sob risco.

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Se, historicamente, o Nordeste sempre apareceu no noticiário nacional com as imagens de seca prolongada, agora as projeções trazem na ponta do lápis um prognóstico também difícil: chuva abaixo da média, calor acima da média e o conhecido semiárido em condição de totalmente árido. Quem analisa a mudança do clima para trazer estas projeções é o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC na sigla em inglês), instância da ONU, Organização das Nações Unidas.

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A infância e a juventude vividas nestas condições de risco terão aumentadas as situações de vulnerabilidade, de ordem física ou emocional. A água é uma parte crítica do ambiente de desenvolvimento de uma criança, e a sua falta afeta a saúde de diversas formas. Crianças precisam beber mais água por quilo de peso do que adultos. Bebês são o grupo etário que mais consome água, seja pelo leite materno (padrão ouro da amamentação) ou por fórmula infantil preparada com água.

Estudos como o mais recente realizado em Harvard se referem à importância da água como “Impactos em cascata” nas áreas mais fundamentais da vida da criança. Uma é o próprio desenvolvimento cerebral, pois na primeira infância a membrana protetora do cérebro não está totalmente formada, ou seja, contaminantes na água podem atravessá-la (nitrato, chumbo, arsênio, mercúrio e tantos outros). Outro impacto direto é no sistema imunológico, com maior ou menor exposição ou resistência a infecções, e a própria nutrição: tanto secas quanto inundações podem reduzir a produção agrícola e o acesso a alimentos.

As duas histórias do Nordeste que trazemos a seguir estão relacionadas à água com suas particularidades. Enquanto Cristiane e seu marido perderam a fonte de renda pelo desaparecimento do molusco pescado nas lagoas em Maceió, em outras centenas de municípios do semiárido nordestino a escassez hídrica intensifica a vulnerabilidade de meninas e mulheres. Elas ficam mais expostas a abusos, exploração sexual e negligência, em um ciclo de pobreza e violência perpetuado pela desigualdade de gênero.

Na favela do Sururu, a busca por dignidade

O sururu é um molusco típico da culinária alagoana. É encontrado nos manguezais banhados por água doce como a Lagoa Mundaú, em Maceió, capital de Alagoas. Quer dizer, onde o sururu ERA encontrado. Pescadores e marisqueiras que viviam da comercialização do molusco estão sem sua principal fonte de sustento há mais de 1 ano. Se você chegou até aqui na leitura da reportagem, já sabe que a explicação vem das mudanças climáticas.

No caso específico do cenário maceioense, há mais fatores na conta. A cidade desde 2018 vem sofrendo os efeitos do desastre ambiental causado pela Braskem, mineradora que realizava atividades de exploração de sal-gema, usado na produção de itens como bicarbonato de sódio e soda cáustica. A extração inadequada foi responsável pelo afundamento do solo em vários bairros, que estão interditados para moradia e trânsito.

O desabamento de uma das minas da petroquímica não impactou apenas quem morava em casas que começaram a ceder ou rachar, como a própria fotógrafa Pei Fon, que realizou as imagens da família de Cristiane Silva, mãe de 10 filhos, no dia das fotos – agora já são 11. Havia previsão de aumento de sal na Lagoa Mundaú por conta da atividade da Braskem, desestabilizando o meio ambiente e extinguindo espécies nativas locais, como o agora sumido sururu.

O molusco é/era tão importante para a subsistência que até batiza a comunidade onde os moradores viviam: Favela do Sururu do Capote, localizada no Vergel do Lago, na parte baixa de Maceió. O lugar enfrenta condições de extrema pobreza, com barracos construídos com materiais como lonas, plásticos, madeira e papelão. Pescadores (os homens) e marisqueiras (as mulheres da área) colhiam os sururus, limpavam suas conchas, cozinhavam e separavam comestível, descartando o restante, sem utilidade. Todo esse trabalho era informal e agora está agonizando.

Já perdi a contagem de quantas vezes aqui alagou tudo. Nem sei por que isso acontece. Quando a água desce, a gente volta e tem que limpar tudo, aquela nojeira toda

Cristiane
Dona de casa

Cristiane e seu marido vieram de Murici para a capital alagoana em busca de mais oportunidades. “Lá a gente passava mais dificuldade do que aqui”, contou. Estão casados há 22 anos, sendo que o primeiro dos 11 filhos veio quando ela tinha 18 anos. Hoje já são até avós. Cristiane tem 39 anos e engravidou praticamente a cada dois anos: começando pela filha mais velha, os nascimentos vieram em escadinha, chegando até os menores, Isaac, 3 anos, e Jacó, 1 ano e 8 meses. Só estes ainda não estão na escola; todos os irmãos já estudam, oportunidade que Cristiane jamais teve na infância.

Carregava o 11º bebê na barriga no dia em que conversamos, ainda sem saber se viria menino ou menina. Conta que a família sempre foi muito numerosa. “Fui criada no meio de muito irmão, os mais velhos cuidam dos mais novos. Segui fazendo do jeito que a minha mãe me criou”, conta. Comparando com seu passado, diz que hoje é mais fácil, pois os filhos terão estudo e recebem vacinas, algo que também não tinha acesso.

As vacinas são ainda mais importantes por ali, mesmo que não cubram todos os riscos do entorno, como por exemplo a sombra da leptospirose sempre por perto, devido aos ratos, e das doenças transmitidas por mosquitos. Quando chove, as lagoas como a Mundaú transbordam. “Já perdi a contagem de quantas vezes aqui alagou tudo. Nem sei por que isso acontece. Quando a água desce, a gente volta e tem que limpar tudo, aquela nojeira toda”, diz a mãe. O mau cheiro dos esgotos toma conta, expondo todos à contaminação no contato com a água: animais, crianças, adultos.

Esta falta de infraestrutura e de saneamento básico também acomete outras comunidades de Maceió. Alagoas tem o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país, conforme os rankings do IBGE de 2010 e 2020. Depois da pandemia, Cristiane conta que a situação da família piorou. Atualmente o marido trabalha como carroceiro, de sol a sol, procurando trabalho. Eles recebem como benefício social o valor do programa Criança Alagoana (CRIA), que dá R$ 150 a cada filho até os 6 anos de idade. Muitas famílias da favela Sururu, desde 2012, estão sendo transferidas aos poucos para moradias do programa Minha Casa, Minha Vida. Os Silva são praticamente os últimos que restaram ali, mas ainda não sabem quando a boa notícia da mudança virá. Por tudo que já passou, Cristiane sonha em melhores condições para os filhos: “Ter uma moradia pelo menos decente, ter dignidade”.

Ilustração Tereza de Quinta @terezadequinta
Ilustração Tereza de Quinta @terezadequinta

Sede de água e de justiça no Semiárido

Todos os dias elas saem de casa em busca de fontes de água para abastecer suas famílias. Andam quilômetros sob o sol forte, voltam com o balde equilibrado na cabeça, e ainda correm perigo no meio do caminho, o tempo todo. Meninas, adolescentes e mulheres do semiárido sofrem mais violências de gênero do que em cidades fora destas condições. Estamos falando de casos de estupro, abuso sexual e exploração sexual, além de números mais altos de gravidez na adolescência e casamento infantil. A escassez de recursos naturais aumenta a vulnerabilidade à violência contra meninas e mulheres durante a caminhada para buscar água. E é preciso considerar que boa parte das pessoas impactadas já vive em contextos de desigualdade de gênero, raça e território. Nas notificações de violência sexual contra meninas de 10 a 19 anos, 80,27% são negras nos municípios do semiárido em extrema pobreza.

Os dados fazem parte do relatório “Semiárido em perspectiva de gênero: violências sexuais contra meninas e adolescentes e os efeitos dos períodos prolongados de seca“, da pesquisadora Emanuelle Góes, coordenadora científica da associação de pesquisa independente Iyaleta, com sede em Salvador, Bahia. Doutora em saúde pública, Emanuelle usou dados de violências registradas entre 2019 a 2022 pelo Ministério da Saúde, cobrindo cerca de 71 mil notificações envolvendo meninas, adolescentes e mulheres. Os números foram cruzados com as taxas de analfabetismo, abastecimento de água no domicílio, proporção de crianças em situação de baixa renda e dados de raça/cor.

Cabe contextualizar o semiárido antes de seguir adiante. A crise hídrica é bem conhecida no Nordeste: apenas 3% da água superficial disponível no país está na região. O semiárido engloba os nove estados do Nordeste e parte de Minas Gerais. Soma 24 milhões de habitantes, entre população rural e urbana. O Ceará, por exemplo, tem quase 100% dos seus municípios considerados semiáridos e é um dos mais afetados pela seca. Na tentativa de humanizar as estatísticas, procuramos a história de alguma família com o perfil descrito no estudo, para trazer um depoimento de forma anônima. Conversamos com ONGs e instituições dedicadas às causas femininas no Nordeste, mas o tema é por demais sensível; optamos por não vitimizar novamente quem já tanto sofreu. Assim, convidamos a artista visual Tereza de Quinta, natural de Caucaia, região metropolitana de Fortaleza, para criar uma ilustração representativa.

A autora do estudo, Emanuelle Góes, lidera a linha de pesquisa “Equidade de Gênero e Justiça Reprodutiva” da Iyaleta. Ela relata que outras partes do mundo também constatam a ligação entre escassez de água / seca prolongada com o aumento das violências baseadas em gênero. Cita países como Quênia, Índia e Filipinas, onde registros provam que eventos climáticos extremos mais frequentes e intensos exacerbam as violências contra meninas e mulheres. “Precisamos chamar para o centro da agenda climática as questões da violência baseada em gênero”, reforça Emanuelle.

Vale ressaltar que os números analisados por Emanuelle ainda contam com subnotificação, isto é, quando a violência ocorre, mas não é registrada. Isso acontece no Brasil inteiro: pesquisa de 2022 do Datafolha e do Instituto Liberta mostrou que uma a cada três pessoas sofreram alguma violência antes dos 18 anos e só 11% denunciaram.

Como denunciar: Disque 100 é o principal canal para denunciar casos de exploração e abuso sexual de crianças e adolescentes. A ligação é gratuita, a denúncia é anônima e o serviço funciona 24 horas, com opção de falar pelo WhatsApp: (61) 99611-0100. Delegacias de polícia e Conselhos Tutelares também recebem essas denúncias.

*A série especial ‘As crianças e a crise climática’ foi uma das vencedoras da Bolsa #Colabora de Reportagem – 8 anos

Camila Saccomori

Jornalista gaúcha formada pela Unisinos, mestre em Comunicação pela PUCRS. Atuou por 20 anos no Grupo RBS, onde foi repórter e editora nos veículos Zero Hora, clicRBS, Diário Gaúcho e outros. É freelancer desde 2018, com matérias publicadas em jornais, revistas e sites (Terra, Crescer, Porvir etc). Fellow do Dart Center/Columbia University, especialista em Primeira Infância, e bolsista de reportagem das fundações National Press e Heinrich Boell. É instrutora da rede Instituto Fala, ministrando oficinas da Google News Initiative.

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