A ruptura e o novo ‘anormal’

Na Tanzânia, uma mulher carrega uma cesta na cabeça enquanto caminha em frente a um grafite pintado pelo grupo de artistas Wachata para aumentar a conscientização sobre o uso de máscaras na pandemia. Foto Ericky BONIPHACE / AFP

Emergências planetárias como as mudanças climáticas, o combate à pobreza e às doenças não transmissíveis precisam ter o mesmo tratamento e atenção da covid-19

Por Marina Grossi | ODS 1ODS 13 • Publicada em 14 de junho de 2020 - 11:53 • Atualizada em 11 de fevereiro de 2021 - 22:15

Na Tanzânia, uma mulher carrega uma cesta na cabeça enquanto caminha em frente a um grafite pintado pelo grupo de artistas Wachata para aumentar a conscientização sobre o uso de máscaras na pandemia. Foto Ericky BONIPHACE / AFP

Estamos diante de uma ruptura sem precedentes na história contemporânea. É certo que a covid-19 trará consigo consequências não só de curto prazo, mas de longo prazo e de longo alcance no mundo inteiro, seja na saúde, na economia, na política, e ainda na cultura individual e coletiva.

A pandemia de gripe espanhola, a Grande Depressão, as duas grandes guerras mundiais, a crise do petróleo dos anos 1970 e a crise financeira de 2007 e 2008. Todas essas crises anteriores resultaram em profundas mudanças políticas, econômicas e sociais, algumas boas, outras nem tanto. Não será diferente nesta crise, e muito dependerá de nossas respostas a ela.

Ainda estamos sob a sombra da pandemia, mas podemos vislumbrar algumas janelas de oportunidade se abrindo a partir dela. Aceleração em formatos de trabalho online, digitalização de bancos e transações comerciais por redes e não mais presenciais, são apenas os primeiros e visíveis reflexos possíveis ante essa crise.

O lucro com propósito que algumas empresas e governos estavam assimilando, ou a absorção dos riscos climáticos e impactos socioambientais na decisão de investimentos, parece fazerem mais sentido agora com a chegada desta pandemia. Somente garantindo que a recuperação seja inclusiva, com medidas que beneficiem a maior parte da sociedade, sairemos da crise mais resilientes

Tanto no Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS), quanto no World Business Council for Sustainable Development (WBCSD), estávamos pouco antes da quarentena nos debruçando a destrinchar a publicação Visão 2050, lançada oito anos atrás, revisitá-la e repensá-la. Já havia ficado evidente que muitos dos caminhos traçados ao longo desta década até 2020 se desviaram do que havíamos previsto como necessário para desenhar as trajetórias para um mundo justo e bom para as 9 bilhões de pessoas previstas para viverem nele. O objetivo desta revisão era alinhar-se aos ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável) lançados em 2015, com metas para serem cumpridas até 2030, atualizar o projeto Visão 2050 para refletir algumas das grandes mudanças ocorridas e redefinir as prioridades de ações críticas que as empresas poderiam realizar durante o que a ONU definiu agora como “década da ação”, para o período dos próximos dez anos.

Mas então, em meio a essa revisão de planos, projetos e processos, a pandemia assolou o mundo e, por mais que tivesse sido anunciada, nos pegou a todos de surpresa. O risco de uma pandemia estava lá na primeira edição da Visão 2050, mas nenhuma empresa ou governo estavam preparados para o que ocorreu.

Nos arredores de Amritsar, na Índia, migrantes de Maharastra seguram utensílios de cozinha enquanto protestam contra o governo pela falta de comida durante a pandemia. Foto Narinder Nanu/AFP
Nos arredores de Amritsar, na Índia, migrantes de Maharastra seguram utensílios de cozinha enquanto protestam contra o governo pela falta de comida durante a pandemia. Foto Narinder Nanu/AFP

Estudo que o WBCSD acaba de lançar – e o CEBDS está preparando para traduzir, adaptar e disponibilizar também aqui no Brasil – explora as implicações, os riscos e as oportunidades da covid-19 para o cumprimento da agenda Visão 2050.

Além de expor vulnerabilidades, a covid-19 evidenciou o tipo de resposta que governos, empresas e instituições internacionais são capazes de oferecer quando confrontadas com um determinado tipo de emergência. Muitos talvez tenham sido lentos, mas tem sido extraordinária a velocidade e a amplitude com que os recursos têm sido desde então mobilizados para atender à crise de saúde pública e apoiar meios de vida e empresas. “Custe o que custar” passou a ser o mantra dos governos e bancos centrais do mundo inteiro, conforme mostra o estudo do WBCSD.

Isto significa também acelerar processos em relação ao debate sobre o futuro do capitalismo e o papel da empresa na formação desse futuro, que vinha ganhando relevância antes da pandemia, ainda que timidamente, e que agora ganha um apelo exponencial.

O tal lucro com propósito que algumas empresas e governos estavam assimilando, ou a absorção dos riscos climáticos e impactos socioambientais na decisão de investimentos – como alertara no início do ano, Larry Fink, CEO da maior gestora de fundos do mundo, a BlackRock – parece fazerem mais sentido agora com a chegada desta pandemia, afinal, as consequências econômicas desta crise exercerão forte pressão sobre a estabilidade política e social. Somente garantindo que a recuperação seja inclusiva, com medidas que beneficiem a maior parte da sociedade, sairemos da crise com uma sociedade mais resiliente.

A covid-19 representa um perigo real e atual para populações do mundo inteiro. Mas isso também é verdade para outras emergências planetárias de lenta evolução – das mudanças climáticas à pobreza e às doenças não transmissíveis. Essas outras emergências não tiveram o mesmo tratamento e atenção de governos ainda. Precisamos esperar que sejam mais emergentes para agir?

Em suma, o estudo do WBCSD no qual me baseio para este artigo sugere que em vez de esperar um “novo normal” após a Covid-19, talvez devêssemos pensar em termos de um “novo anormal”, no qual as rupturas que geram resultados rápidos e extremos são cada vez mais comuns.

Fica claro que o desmatamento, a perda de biodiversidade, as mudanças climáticas e a desigualdade contribuem para o aumento do risco de uma crise como a que estamos vivendo ou para tornar as sociedades e economias mais vulneráveis. Considerando isso, temos uma oportunidade pós-crise de acelerar o trabalho que já estava sendo feito para habilitar os mercados a integrarem e precificaram ativos sociais e ambientais devidamente, contribuindo desta maneira para criar incentivos mais fortes para a construção da resiliência, a descarbonização e o crescimento inclusivo.

Crises podem acelerar processos e a covid-19 serviu como lembrete doloroso do tamanho dos riscos sistêmicos que podem se consolidar, e do impacto exponencial que eles podem ter quando permitimos que externalidades negativas se acumulem com o tempo. Responsabilidade, resiliência e regeneração são os 3Rs que compõem o conceito de expansão da agenda de sustentabilidade corporativa que estava crescendo antes da crise e que é agora condição necessária para a retomada econômica.

Marina Grossi

Marina Grossi, economista, é presidente do CEBDS (Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável), entidade com mais de 100 empresas associadas cujo faturamento somado equivale a quase 50% do PIB brasileiro. Foi negociadora do Brasil na Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima entre 1997 a 2001 e coordenadora do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas entre 2001 e 2003.

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