Voltado para pessoas trans, ateliê costura moda, cidadania e meio ambiente

Projeto TRANSmoras, da empreendora social e ativista Antonia, amplia debate sobre sustentabilidade e direitos humanos e transforma vidas como a da travesti Dadivoza

Por Luiza Souto | ODS 12ODS 8
Publicada em 16 de outubro de 2025 - 09:46  -  Atualizada em 16 de outubro de 2025 - 10:51
Tempo de leitura: 10 min

A cearense Dadivoza (de óculos) mostra sua criação no Ateliê TRANSmoras: projeto voltada para pessoas trans une moda, sustentabilidade e inclusão social (Foto: Divulgação)

Aos 61 anos, Dadivoza Nonato de Pinho Pessoa sentia que não tinha mais espaço para recomeçar. “Achava que não existiria uma perspectiva melhor para alguém como eu”, conta a travesti cearense que mora em São Paulo há 18 anos. Sua vida, no entanto, ganhou novos contornos ao entrar, este ano, no programa Direitos, Renda e Vida (DRV), do Ateliê TRANSmoras, uma associação sem fins lucrativos que une moda, sustentabilidade e inclusão social, e que funciona em Campinas e na capital paulista.

Dadivoza passou a vida cuidando da mãe, fazendo bicos e alimentando o sonho de ser estilista. Deixou um trabalho em um ateliê de perucas para se dedicar ao curso. “Gosto muito de moda. Estou muito feliz, é uma nova conquista de vida.”

As pessoas trans não estão falando só sobre gênero. Estamos falando de cidadania, de meio ambiente, de soluções que podem transformar o mundo

Antonia Moreira
Empreendedora social e ativista

No espaço, no Bom Retiro, região central de São Paulo, aprende a desenhar, entender a proposta de um desfile e criar peças com arte. “É um curso completo de alto padrão na moda sustentável. Aprendemos o que é montar um look de passarela e um conceitual artístico, a costurar em máquinas industriais, e temos noções básicas de empreendedorismo”, detalha.

Hoje, Dadivoza não apenas confecciona bolsas, cachecóis e macacões feitos de camisetas reaproveitadas, como reencontra um propósito. “O curso levanta minha autoestima. Vejo que existem novos horizontes a serem conquistados. Agora eu penso em empreender, ser autônoma, virar MEI, e até ensinar outras pessoas lá na minha terra o que aprendi aqui.”

A empreendedora social e ativisa Antonia Moreira na Universidade de Columbia em Nova York: primeira brasileira negra e trans a participar do Human Rights Advocates Program (Foto: Reprodução / Redes Sociais)
A empreendedora social e ativisa Antonia Moreira na Universidade de Columbia em Nova York: primeira brasileira negra e trans a participar do Human Rights Advocates Program (Foto: Reprodução / Redes Sociais)

Entre letras e tecidos

A transformação de Dadivoza é reflexo direto da visão do TRANSmoras, que tem entre suas principais lideranças Antonia Moreira, de 29 anos, diretora executiva e presidenta do Conselho Deliberativo. Formada em Publicidade e Propaganda, ela é idealizadora de iniciativas como o DRV, que costura debates que vão de gênero à mudança climática.

Sua trajetória foi construída na intersecção entre letras e tecidos. Desde pequena, em Lins (SP), escrevia “cartinhas de amor” e “poesias apaixonadas” para a mãe, que a incentivava a ler. Na adolescência, a escrita tornou-se um refúgio “quase terapêutico e confessional” para seus incômodos como jovem LGBTQIAPN+.

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A mãe revendia roupas de porta em porta, além de fazer pequenos reparos. Antonia recorda a “coisa subversiva” de experimentar os vestidos às escondidas, um gesto compartilhado por muitas pessoas trans em seus processos de descoberta.

A gente pega retalhos e transforma em moda. É importante ter essa consciência, usar o material que seria jogado fora e dar continuidade à vida daquela peça

Dadivoza Nonato de Pinho Pessoa
Costureira

Com o apoio da família, formou-se pela PUC-Campinas, com o objetivo de promover mudanças por meio de “comunicações inclusivas”. Foi na cidade que conheceu o TRANSmoras, criado em 2013 pela estilista Vicenta Perrotta como uma ocupação estudantil na Unicamp. O espaço, que começou em uma moradia estudantil, promove arte, moda e cultura voltadas à comunidade trans e periférica, e foi ali onde Antonia entendeu sua identidade de gênero feminina.

A empreendedora passou a atuar em projetos voltados não apenas para pessoas trans, mas para quem é excluído de políticas públicas e oportunidades sociais. O DRV veio em 2024, após uma emenda parlamentar da deputada Érika Hilton (PSOL-SP), a primeira mulher trans e preta eleita para a Câmara dos Deputados, ao lado de Duda Salabert (PDT), também mulher trans.

Com investimento de R$ 600 mil, o programa impacta, hoje, cem participantes: 40 alunos em duas turmas presenciais e cerca de 60 pessoas envolvidas em formações online, oficinas e ateliês abertos.

Além de curso de corte e costura, o programa oferece bolsas de auxílio, alimentação e suporte psicológico, permitindo dedicação integral à formação. As atividades acontecem em São Paulo e Campinas.

Integrantes do programa Direitos, Renda e Vida (DRV), no Ateliê TRANSmoras: oficinas e cursos envolvendo moda, cidadania e meio ambiente, voltados para pessoas trans (Foto: Divulgação)
Integrantes do programa Direitos, Renda e Vida (DRV), no Ateliê TRANSmoras: oficinas e cursos envolvendo moda, cidadania e meio ambiente, voltados para pessoas trans (Foto: Divulgação)

Costura, reciclagem e futuro

A metodologia trabalha com a chamada transmutação têxtil, técnica que reaproveita roupas e retalhos descartados para criar novas peças e gerar renda, valorizando o conhecimento popular e a economia circular. Para Antonia, essa prática conecta a moda à urgência ambiental. “As pessoas trans não estão falando só sobre gênero. Estamos falando de cidadania, de meio ambiente, de soluções que podem transformar o mundo.”

Dadivoza vê isso no dia a dia das oficinas: “A gente pega retalhos e transforma em moda. É importante ter essa consciência, usar o material que seria jogado fora e dar continuidade à vida daquela peça.”

Essa consciência ambiental e social, que parte das mãos de pessoas como Dadivoza, é a mesma que tem levado o trabalho do TRANSmoras a ganhar reconhecimento muito além das fronteiras do Brasil.

Dadivoza com suas criações: retalhos transformados em moda (Foto: Divulgação)
Dadivoza com suas criações: retalhos transformados em moda (Foto: Divulgação)

Reconhecimento internacional e ativismo trans

Pela sua trajetória, em 2023 Antonia tornou-se a primeira brasileira negra e trans a participar do Human Rights Advocates Program, da Universidade Columbia, em Nova York. Desde 1989, o programa capacita pessoas do mundo inteiro que se destacam por defender os direitos humanos em seus países. Os participantes recebem bolsa de estudos e participam de encontros com líderes internacionais e instituições interessadas em financiar projetos sociais.

Antes de Antônia, entre 1991 e 2002, apenas cinco brasileiros foram selecionados. “Eu fiquei incrédula, porque eu mesma não via o que fazia como direitos humanos. Mas percebi a potência do trabalho”.

Não é legal ser tratado como um projetinho. É um programa que tem o potencial de se transformar em política pública

Antonia Moreira
Empreendedora social e ativista

Lá, diz que contou sobre os retrocessos políticos vividos pelo Brasil nos anos anteriores, quando direitos da população LGBTQIAPN+ estavam sendo ameaçados. “Todo mundo queria conversar comigo sobre o Brasil. Eu tive que explicar muito a nossa situação.”

De volta ao país, Antonia criou o Programa de Ativismo Trans, financiado pela Embaixada e Consulados dos Estados Unidos, inspirado na experiência que viveu em Nova York. A iniciativa, realizada pelo TRANSmoras em parceria com a Unicamp, ofereceu uma formação de três meses para ativistas trans de todo o país.

“Levamos 17 ativistas para uma imersão de três dias em Campinas, com hospedagem, oficinas e debates. Tivemos resultados muito legais, e alguns desses alunos depois criaram uma rede e desenvolveram outros projetos”, conta.

A partir dessa experiência, ela passou a posicionar o TRANSmoras não apenas como um ateliê de moda, mas como uma plataforma de movimentação artística e política, que combina criação, formação e incidência pública.

Antonia Moreira com a placa do MIT Innovation Under 35: prêmio destaca jovens de até 35 anos que desenvolvem soluções inovadoras nas áreas de ciência, tecnologia e impacto social (Foto: Divulgação)
Antonia Moreira com a placa do MIT Innovation Under 35: prêmio destaca jovens de até 35 anos que desenvolvem soluções inovadoras nas áreas de ciência, tecnologia e impacto social (Foto: Divulgação)

Do MIT à realidade brasileira

O DRV também foi reconhecido internacionalmente: neste ano, Antonia foi eleita para o MIT Innovators Under 35, prêmio promovido pela revista MIT Technology Review, ligada ao Instituto de Tecnologia de Massachusetts, uma das universidades mais prestigiadas do mundo. Criado em 1999, o prêmio destaca jovens de até 35 anos que desenvolvem soluções inovadoras nas áreas de ciência, tecnologia e impacto social.

Apesar do reconhecimento, manter parcerias ainda é um desafio, ela diz. “Este ano foi um divisor de águas. Ficou evidente quais empresas realmente acreditam e quem só usa diversidade como estratégia de marca. Muitas simplesmente desapareceram”, afirma.

Hoje, o TRANSmoras sobrevive com recursos e doações recorrentes feitas pela internet. Há também vagas de voluntariado voltadas à captação de recursos e à profissionalização da equipe. “Sempre fizemos tudo por necessidade.”

O ciclo atual do DRV termina em dezembro, mas a expectativa é que os resultados sirvam de argumento para que o poder público adote o modelo em Campinas e o leve a outras cidades. “Não é legal ser tratado como um projetinho”, resume Antonia. “É um programa que tem o potencial de se transformar em política pública.”

Luiza Souto

Jornalista e pesquisadora do Rio de Janeiro. Tem experiência na cobertura sobre Direitos Humanos, diversidade e gênero. Também produtora e roteirista de campanhas e minidocumentários com essas temáticas. Contribuiu com veículos como Folha de S. Paulo, Extra, O Globo, GloboNews e UOL.

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