ODS 1
Uma crise para acabar com a infestação de centopeias
Febre consumista que tomou conta do país nos últimos dez anos fez muita gente perder o controle dos desejos e da carteira
Trata-se do assunto do momento. Anunciado nos jornais. Exibido nas TV’s. Comentado no rádio e nas redes sociais. Discutido nas mesas de bar. É algo que afeta a todos, impossível escapar da exposição. A chance está aí. Você não pode ficar de fora! Vai perder?
Estas linhas poderiam perfeitamente se referir a algum novo gadget com mil e uma funções mirabolantes, a alguma peça de roupa desejada da estação ou a qualquer modice passageira que nos faz gastar muitos reais por impulso. Mas, antes que alguém corra para o shopping ou para algum site de compras em busca da suposta novidade, explico. Falo da desaceleração econômica brasileira. E o que ninguém deveria perder nesses dias de ajustes nas contas é oportunidade de repensar nossos hábitos de consumo e, quem sabe, acabar com o que chamo de “o país das centopeias”.
O bichinho, que pode ter até 190 pares de pernas conforme sua espécie, ilustra o exagero de nossos dias. Após uma temporada de oito anos fora do Brasil, ao voltar, fui surpreendida pela febre consumista que tomou conta do país após uma década de emprego, crédito, crescimento e, claro, difusão da internet. Pensei nos chamados “quilópodes”, nome científico das pequenas lacraias, quando uma amiga, aflita, se queixava de não ter uma sapatilha que combinasse com o vestido novo – embora a mocinha tivesse no armário pelo menos uns oito pares daquele tipo de calçado, de cores diferentes. Mas, para ela, não bastava. Vaidosa, já planejava visitar determinada loja para adquirir um novo modelo. Eram necessárias opções de combinação para montar o look do singelo chope de sábado à tarde. Disparei:
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Veja o que já enviamos– Mas veja quantas sapatilhas você tem aí! Para que comprar mais uma? Quantos pés você tem? Não são apenas dois? Parece até uma centopeia para ter tantos pares assim!
Ela riu e deu de ombros; eu fiquei com essa ideia fixa na cabeça. Compras, compras, compras. Para quê? Por quê? Costumávamos comprar para satisfazer nossos desejos, mas o século XXI transformou tudo em excesso. Desde a Revolução Industrial fomos doutrinados, sem perceber, a comprar em quantidades cada vez maiores. Afinal, uma grande produção sempre precisou de uma super demanda. E com a concorrência cada vez mais acirrada entre as empresas, surgiram na primeira metade do século XX a propaganda e o marketing. Na outra metade, vieram o crédito e a popularização da ideia de “comprar agora e pagar depois”. Perdemos, então, o controle de nossos desejos e de nossa carteira. Mas não só. Contribuímos para poluir e degradar ainda mais o planeta com produção e consumo sem limites. Será que alguém se lembra que tudo o que você compra e não usa, por exemplo, será jogado fora? E esse “fora”? É aonde? E quanto custa?
Manter essas questões em mente é um exercício e tanto para a vida. Ou deveria ser. A facilidade de consumir o que não precisamos e mesmo o que precisamos é assustadora. Outro dia li sobre uma novidade que já invade as casas dos Estados Unidos, o Amazon Dash Button . É um pequeno botãozinho móvel para ser acoplado em vários pontos da casa, cujo slogan de divulgação é “Place it. Press it. Get it” (Coloque, aperte e receba). Para suas compras habituais, basta pressionar o botão quando algum produto estiver chegando ao fim e confirmar o pagamento através de um aplicativo de celular. Ou seja, se você colocar a jeringonça na sua máquina de lavar, e o sabão em pó estiver perto do fim, é só apertar a pequena tecla para que a gigante varejista faça uma entrega, através do correio, de um novo pacote no conforto do seu lar.
Entra aí outro ponto de reflexão. Além de questões econômicas e ambientais, pesam nessa balança do consumo as relações sociais. Será que estamos nos tornando seres mais solitários? Isolados? Antissociais? Que efeitos terão todas as facilidades tecnológicas sobre nosso comportamento como humanos? Podemos sobreviver sem sair de casa, dar “bom dia” ao padeiro, “boa tarde” à caixa do supermercado ou interagir com o companheiro da fila? Sobram dúvidas e incômodos.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Em Israel, aprendi que, quando quisesse me desfazer de roupas, e não soubesse a quem doar, bastava colocar as peças organizadas, dobradas, em cima de uma sacola plástica, ao lado do lixo. Alguém passaria e pegaria o que lhe conviesse.
[/g1_quote]Em Israel, lembro de ter aprendido que, quando quisesse me desfazer de roupas, por exemplo, e não soubesse a quem doar, bastava colocar as peças organizadas, dobradas, em cima de uma sacola plástica, bem acomodadas, ao lado do lixo. Alguém – e não necessariamente uma pessoa carente – passaria e pegaria o que lhe conviesse. Desperdiçar qualquer coisa por lá é quase um crime social.
Mas foi somente numa viagem recente à Alemanha que percebi não estar tão sozinha nas minhas elucubrações sobre o ato de comprar. A chamada “consciência verde” por lá é bem mais desenvolvida que nos trópicos. Pratica-se uma separação meticulosa do lixo para reciclagem (dizem meu amigos germânicos que esse é um dos maiores motivos de brigas entre vizinhos, porque se os dejetos não forem separados corretamente, o lixeiro não leva! Nesses casos, é preciso, então, acionar o departamento de limpeza da prefeitura e pagar uma alta taxa para que o caminhão retorne e faça a coleta adequada! Como ninguém, claro, quer ter esse custo extra, existe uma “patrulha” velada da vizinhança para assegurar que todos estão separando o lixo da maneira certa). Há ainda o uso de sacolas de pano no lugar das terríveis sacolinhas de plástico para as compras no supermercado, o incentivo ao uso das bicicletas… Sobram iniciativas para tentar garantir um planeta habitável por mais tempo.
E crescem também as preocupações de caráter sócio-ambiental. Em visita à casa de uma amiga que havia acabado de se mudar para o descolado bairro de Neuköln, passei uma tarde acompanhando suas tentativas de mobiliar o novo espaço. E não foi visitando uma megaloja ou pesquisando em algum site de compras – mas no Facebook. Proliferam-se nas cidades alemãs comunidades chamadas “Free your stuff” (liberte suas coisas), onde internautas usam a rede social para promover o velho escambo. Os grupos fazem sucesso em diversas cidades europeias, como Paris e Barcelona e até na americaníssima Nova York.
“O grupo é dedicado a todos nós que tendemos a acumular, acumular e a preencher espaços que poderiam ser usados para algo mais interessante do que um depósito ou um coletor de poeira”, diz uma descrição na página da comunidade. Quem tem, oferece. Quem precisa, pede. Um passeio pela página de Berlim mostra atividade intensa. Com mais de 56 mil membros, pode-se encontrar desde um sofá em excelente estado ofertado por alguém que vai se mudar para um apartamento menor a peças de roupa de grife de outra pessoa que emagreceu ou engordou demais, computadores, eletrônicos e até pedir empréstimos. Precisa de uma furadeira? Não precisa ir correndo comprar uma. Pegue por algumas horas e devolva. Basta apenas um sorriso e um agradecimento.
– Dá para encontrar tudo de graça. Às vezes, também ficamos de olho no lixo. Muita gente joga fora coisas em bom estado. Vou gastar dinheiro para quê? Para alimentar as grandes empresas e destruir a Terra? É bom reutilizar, só compro quando preciso muito – disse tranquilamente minha amiga Katrin, uma assistente social alemã, de 35 anos, diante do meu misto de espanto e encantamento.
Pela própria rede social de Mark Zuckerberg, passei a ler tudo sobre o que os alemães chamam de “pós-consumismo” e os americanos de “lowsumerism”, um trocadilho com as palvras “low”(baixo) e “consumerism” (consumo), além de monitorar grupos como a Feira da Gratidão. Sob o lema “Abolindo a ilusão da escassez”, a iniciativa itinerante se propõe a fazer troca-troca de todo tipo de bens no Rio de Janeiro. “É uma feira onde as pessoas levam o que quiserem ou nada, e pegam o que quiserem ou nada”, diz a descrição da comunidade. E a inspiração veio de uma iniciativa não muito distante, no Uruguai.
Iniciativas como essa começam, finalmente, a decolar abaixo do Equador. Afinal, cada vez mais pessoas parecem compreender que dosar a sacola de compras é, sim, um ato político, ambiental e econômico. Aquele simples desejo de gastar por gastar num dia triste ou mesmo num dia feliz tem consequências muito maiores do que um armário lotado e uma carteira vazia. Resta torcer para que, independente do cenário econômico do Brasil, todos nós possamos pensar no Saci Pererê e não na centopeia quando bater o impulso de correr para o shopping center e arrebatar um novo par de sapatos em três vezes sem entrada e sem juros. O bolso, o planeta e a sociedade certamente agradecem.
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Carioca nada da gema, na Alemanha desde 2016. Mestre em Estudos de Paz e Guerra pela Universidade de Magdeburg. Jornalista, inconformista e flamenguista. Mochileira e cervejeira. Ex-correspondente do jornal O Globo no Oriente Médio e da alemã Deutsche Welle no Brasil. Contadora de 'causos', mantém as antenas ligadas em ciência, direitos humanos e política internacional.