ODS 1
Sistemas Agrícolas Tradicionais superam preconceitos e ganham visibilidade
Comunidades de fundo de pasto do semiárido baiano concorrem ao Prêmio Dom Helder Câmara, promovido pela Embrapa
(Com fotos de Thiago Ripper) – Ignorados e até mesmo discriminados por muitos anos, os Sistemas Agrícolas Tradicionais (SATs) começam a ser reconhecidos e valorizados, graças ao empenho de instituições acadêmicas e entidades governamentais e não governamentais, somado ao esforço e organização das próprias comunidades. Nesse caso se enquadram povoados no entorno de Angico dos Dias, no município baiano de Campo Alegre de Lourdes, bem como as comunidades das regiões brejeiras como a do Brejo Dois Irmãos, em Pilão Arcado, também na Bahia.
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Organizadas em associações, elas concorrem ao Prêmio Sistemas Agrícolas Tradicionais do Semiárido Dom Helder Câmara, promovido pela Embrapa, a Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias, ficando entre as 12 pré-selecionadas, dentre 29 inscritas. Angico dos Dias e Brejo Dois Irmãos se localizam no semiárido baiano, próximas à divisa com o Piauí, e se destacam por práticas ancestrais de manejo da terra, envolvendo extrativismo e cultivo de plantas nativas, com sustentabilidade e respeito ao meio ambiente. São comunidades de fundo de pasto, método pelo qual criam os animais soltos, sem cercamento, como há centenas de anos, em um bioma de transição entre o cerrado e a caatinga.
De abril a julho, as comunidades pré-selecionadas, entre as quais se incluem também grupos indígenas e quilombolas e assentamentos de reforma agrária, receberam a visita de técnicos da Embrapa e representantes das instituições parceiras, para um diagnóstico de cada sistema. Das 12, seis serão premiadas.
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Veja o que já enviamosOs vencedores serão anunciados no final de agosto e vão participar de uma capacitação em patrimônio cultural e de uma oficina das receitas tradicionais dos SATs. As medidas visam promover o intercâmbio e a troca de experiências, e vão resultar num livro de receitas culinárias com frutos da terra, como o doce de buriti, típico da região dos brejos, cuja coleta utiliza arriscados métodos ancestrais, passados de geração em geração.
Angico dos Dias: grilagem de terras e avanço da mineração
Por muitos anos relegadas à invisibilidade, essas comunidades enfrentam muitas dificuldades de sobrevivência e de preservação de suas práticas ancestrais. Em Angico dos Dias, os problemas vão desde grilagem de terras e ameaças até o enfrentamento com a mineradora Galvani, cuja intervenção gera fortes impactos sobre as atividades extrativistas, de fundo de pasto e de agricultura natural.
Conforme atesta Ednei Dias Soares, presidente da Associação de Fundo de Pasto de Angico dos Dias e Açu, a mineração avança sobre o território tradicionalmente ocupado por trabalhadores rurais, afetando diretamente seu modo de vida, suas culturas e a atividade de fundo de pasto, reduzindo os espaços onde os animais vivem à solta, sem confinamento.
João Roberto Correia, pesquisador da Embrapa, se diz comovido com “a resiliência” desses grupos, sempre alegres e dispostos ao trabalho, apesar das dificuldades. Ele destaca os muitos obstáculos enfrentados pelos moradores dos brejos, isolados e sem recursos básicos, e “a situação de opressão” da mineração de fosfato sobre as comunidades de Angico, obrigadas a conviver diariamente com a densa fumaça, a poeira, as explosões e os rejeitos tóxicos, com prejuízos para a saúde dos moradores e seu modo secular de vida.
Em 2017, a associação de Angico dos Dias e Açu chegou a entrar com ação junto ao Ministério Público, denunciando os graves problemas causados pela mineradora, mas até hoje não obteve resultados.
Lendas e mistérios – A região de Angico, que ainda hoje conserva vestígios de tribos indígenas, é recortada por túneis e cavernas e envolta em lendas e mistérios. Segundo relatos orais, até o século passado, muitas dessas cavernas abrigavam nativos que buscavam se esconder de bandos de cangaceiros interessados em raptar as moças da região. Há quem diga que o local teria sido um dos últimos refúgios de Lampião.
Filho de João Umbelino da Silva e neto de Francisco Umbelino da Silva, que habitaram nessas cavernas, o líder comunitário e cordelista Antônio José da Silva, presidente da Associação Comunitária de Fundo de Pasto de Terra Viva, Baixão Novo, Baixãozinho e Baixão Grande, não deixa a história morrer.
“Quando a chuva cai no chão
Renova minha esperança
E nas terras do Baixão
Onde vivo desde criança
Eu tracei o meu destino
Na comunidade tradicional
Tem um patrimônio cultural
A toca João Umbelino”
Comunidades brejeiras, terra de buritis
“O senhor estude: o buriti é das margens, ele cai seus cocos na vereda – as águas levam – em beiras, o coquinho as águas mesmas replantam; daí o buritizal, de um lado e do outro se alinhando, acompanhando, que nem que por um cálculo.” (Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas)
Cantado em verso e prosa na literatura de João Guimarães Rosa, os buritis não só enfeitam as veredas e os grandes sertões, de Minas à Bahia, como servem, também, de subsistência para as comunidades rurais. É o caso do Brejo Dois Irmãos, e de todas as comunidades brejeiras localizadas no entorno de Pilão Arcado, no Norte da Bahia, divisa com Piauí.
Ali, a poucos quilômetros da Serra da Capivara, famosa por suas pinturas rupestres, os buritizais se erguem majestosos, a 20 e até 30 metros do chão. De seu fruto, extraído do alto das árvores, são produzidos sucos, doces, geleias, azeite, sorvete, massa para bolos e outros alimentos, aproveitados, inclusive, na merenda escolar da região.
Mas o processo de extração é bastante arriscado, exigindo muita habilidade e coragem, já que o apanhador tem que escalar as árvores até o topo, amarrado apenas por uma corda e portando um facão para cortar os frutos, resultando, algumas vezes, em queda, mutilações e até morte.
Talvez, por isso, hoje a região conte apenas com três “subidores”, como relata Cosme Alves de Sousa, professor da escola municipal local, sócio fundador e coordenador da Associação Comunitária Beneficente Brejo Dois Irmãos, cujo trabalho também favorece outras comunidades menores, como as do Brejo do Urubu, do Piqui, do Carrasco e da Capoeira.
Os problemas, contudo, não param por aí. O desmatamento e a monocultura de pasto destroem o solo e reforçam os prejuízos causados pela seca severa, que já perdura há dez anos. “Os brejos e olhos d’água que desaguam no São Francisco estão secando, uma ameaça para os buritizais. Muitas águas já não conseguem mais chegar ao rio”, lamenta Cosme.
“Os buritis estão morrendo, mas ainda tem uma grande reserva. De Pilão Arcado a Barra do Rio Grande, são 160 quilômetros de buritizais, que buscamos conservar, preservando uma atividade extrativista de mais de 200 anos”, diz.
O isolamento da região é outro grande problema enfrentado pelos brejeiros, que sofrem com péssimas estradas, escola distante, falta de estrutura para escoamento dos produtos, dificuldades de acesso à internet e falta de energia. Em 2005, a região foi favorecida com energia solar pelo programa Luz Para Todos, mas o número de placas ainda é insuficiente.
Por determinação legal, a Coelba, companhia de eletricidade da Bahia, deveria ter levado energia elétrica para a região até 2018. Como isso não ocorreu, a comunidade moveu ação coletiva na justiça e ganhou a causa, entretanto, até hoje a empresa não cumpriu a obrigação.Mas uma vitória concreta foi a demarcação do território e a certificação coletiva como comunidade de fundo de pasto. Agora, a luta é pelo título definitivo das terras, ameaçadas por grileiros.
Autoestima – Segundo o líder comunitário, por décadas o povo da região se sentiu desprezado, com baixa autoestima, por conta do preconceito. A produção de buritis era dominada por atravessadores e os nativos, em sua maioria, passavam adiante o produto apenas na forma de escambo (troca por outro produto). Com a organização da comunidade em associação, a produção passou a ser mais bem aproveitada, sobretudo na feira de Campo de Alegre de Lourdes, onde 80% dos frutos e seus derivados são vendidos.
“As mercadorias são também muito apreciadas no Sudeste do Piauí, mas em Pilão Arcado, de onde sai a produção, ainda existe muito preconceito, o produto não é valorizado”, conta Cosme.
“Mas aos poucos vamos vencendo o preconceito. A comunidade não tinha conhecimento do valor do buriti e da atividade extrativista. Hoje, o buriti é uma fonte de renda segura e estável para os nativos, que agora sentem orgulho do seu trabalho”, conclui.
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É jornalista há mais de 40 anos. Entre outros veículos, passou pelo jornal Última Hora, TV Manchete e assessorias de imprensa. Trabalhou como jornalista concursada da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, de onde se aposentou após dez anos. Em 2002, venceu o Concurso de Monografias Giovanni Falcone, na categoria jornalista, promovido pela Associação de Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj), sobre o tema “Direito à privacidade e liberdade de expressão”.