Projeto ensina a pescar e a vender o peixe

Helena Rocha, diretora da Pipa Social Qual o sentido de ter um ofício se isso não gera renda para você? Foto Pipa Social

Pipa Social cria oportunidade de geração de renda e transforma a vida de artesãs em 73 comunidades do Rio de Janeiro

Por Angélica Brum | ODS 12 • Publicada em 7 de novembro de 2023 - 09:29 • Atualizada em 20 de novembro de 2023 - 19:37

Helena Rocha, diretora da Pipa Social Qual o sentido de ter um ofício se isso não gera renda para você? Foto Pipa Social

Assim como tantas outras mulheres, Sidineia Araújo Freitas Souza deixou a cidade onde nasceu, Três Rios, no interior do estado do Rio de Janeiro, para morar na capital. Na bagagem, pouca coisa além da esperança de melhorar de vida trabalhando como empregada doméstica. Hoje, ela não apenas se orgulha de ser chamada de “professora.” Ela se reconhece em cada uma das alunas da Pipa Social, organização voltada para capacitação e profissionalização de artesãs em situação de vulnerabilidade. Mas essa não é uma história de superação.

Pelo menos, não só de superação. Sidineia sabe que não bastam talento, foco e determinação. “Sempre tive jeito para costura e sou muito obstinada. Fiz alguns cursos, aprendi mais. Mas a minha vida mudou mesmo porque eu tive uma chance.”  Esse ponto de virada surgiu justamente na instituição, onde, agora, ela atua como instrutora de mulheres que buscam ferramentas para gerar recursos produzindo e vendendo artesanato feito de matéria-prima sustentável.

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A aprendizagem se dá na troca de experiência e nas aulas de sustentabilidade, história da arte, moda, técnicas de venda, precificação e economia financeira, entre outras disciplinas. A metodologia desenvolvida pela jornalista Helena Rocha, diretora da Pipa, com o apoio voluntário de profissionais de diversos setores, vem transformando a realidade de mais de 1800 moradoras de 73 comunidades da região metropolitana do Rio de Janeiro. Até hoje, o programa produziu mais de 450 mil peças vendidas no Brasil e no exterior.

Escultura confeccionada em linha e madeira com o formato do Abaporu, pintura de Tarsila do Amaral. Foto Pipa Social

A ideia surgiu da inquietação de Helena. Depois de duas décadas de experiência no terceiro setor, ela percebeu que ensinar a pescar não era suficiente para transformar a vida de mulheres que vivem em comunidade. Faltava prepará-las para vender o peixe.  “Capacitação não é apenas aprender a bordar ponto de cruz no pano de prato. Qual o sentido de ter um ofício se isso não gera renda para você?  Lembro de uma pesquisa que chamava atenção para a frustração de quem se qualificava e, depois, não encontrava uma nova oportunidade de trabalho.”

Desde o princípio, ela acreditou que deveria promover atividades em grupo, estimulando a criação de coletivos, e a economia circular, dando novo destino a materiais que seriam descartados – retalhos, borracha de pneu, fios de cobre etc, ou aproveitando recursos da natureza – sementes, fibras naturais, cartilagem de peixe etc. Além da preocupação em reduzir o impacto ambiental, a utilização desse tipo de insumo dispensa maiores investimentos para confecção das mercadorias.

“Funciona, mais ou menos, assim, uma empresa nos faz uma encomenda, pode ser um pedido de brindes para o fim do ano. Apresentamos à demanda ao grupo e todas participam na busca por soluções”, explica.  Assim, surgiram, por exemplo, uma linha de malas feitas de aproveitamento de tecidos de uniforme e uma escultura confeccionada em linha e madeira com o formato do Abaporu, pintura de Tarsila do Amaral.

Novas matérias primas e muita criatividade entre as artesãs. Foto Pipa Social

Entre os clientes da Pipa, se destacam Vivo, Rede Globo Recicla, Papel Craft, Mastercard, Lenny Niemeyer, Farm, entre outros. Depois da entrega, os lucros são divididos. Além disso, a experiência adquirida ao longo do processo acaba sendo útil na produção de mercadorias que as artesãs vão vender nos coletivos ou individualmente.

Mas vamos voltar ao início. A Pipa decolou, em 2012, em projeto-piloto com moradoras do Morro Santa Marta, em Botafogo, na zona sul do Rio. Rapidamente, a iniciativa se expandiu graças ao entusiasmo das próprias participantes, que começaram a convocar amigas e parentes de outras regiões. “Uma dizia que tinha uma irmã que costurava bem, outra lembrava de alguém que entendia tudo de fuxico, assim fomos conquistando novos territórios”, lembra Helena.

O boca-a-boca chegou até Adriana Aparecida Basílio Tomás, em Vargem Grande, zona oeste do município do Rio. Professora de artesanato numa igreja da região, ela garante que a metodologia permitiu a ela descobrir as potencialidades do lugar onde vive. Literalmente: “Durante as aulas, a gente se sente motivada a buscar novas matérias-primas. Decidi, então, fazer gamelas, bandejas e bijuterias usando a palha da palmeira, que a gente tem de sobra por aqui. O resultado foi tão bom que as artesãs do meu grupo se organizaram em uma cooperativa para produzir e vender peças. Muitas já conseguem tirar uma renda extra.”

Projeto estimula o trabalho em grupo: “Não dizemos o que deve ou não ser feito. A demanda, basicamente, se resume a crie o seu próprio negócio”, explica Carla Merlina. Foto Pipa Social

No sentido de capacitar as artesãs para gerar renda de forma sustentável, há a preocupação de estimular a criatividade e autonomia. “Não dizemos o que deve ou não ser feito. A demanda, basicamente, se resume a crie o seu próprio negócio, desenvolva uma marca, atribua um valor ao produto etc.”, explica Carla Merlina Gennari, especialista em Desenvolvimento Humano com atuação em ongs e empresas – Grupo Mulheres do Brasil, Natura, Vale, entre outras.

A experiência em grupo, ressalta Carla, pode significar um obstáculo.  “Viemos de uma tradição de competitividade. A gente observa que uma ou outra se ressente de compartilhar um conhecimento que, até então, era só dela. Aos poucos, fica claro que todo mundo sai ganhando com a troca. Mas o coletivo só funciona com pessoas fortalecidas individualmente.”

Para alcançar essa meta, mais resistências precisam ser vencidas. “Nós apenas afloramos o que há de melhor em cada uma. Todos nós temos qualidades que precisam ser descobertas. Não estamos acostumados a entrar em contato com elas. O mais comum é a gente ficar olhando para o que não tem.”  A dinâmica começa a mudar quando as mulheres se dão conta da força que fez com que elas enfrentassem eventos adversos ao longo da vida. Para ilustrar a situação, Carla cita a história de Ana Cláudia Neves.

Ana Cláudia se recorda de passar a infância cercada de artesãs:  a mãe fazia tricô, a tia desenhava e avó costurava. Mesmo assim, ela só pensou em viver de trabalhos manuais depois do fechamento do lixão de Gramacho, onde era catadora. “Vi numa igreja o anúncio de um curso de corte-e-costura. Não tinha mais vaga só que a minha insistência foi tão grande que consegui assistir às aulas. Depois desse, vieram outros, sempre gratuitos, e fui recuperando a memória dos tempos de criança. Até que, aos poucos, comecei a vender bolsas e chaveiros.”

Mais de dez anos depois, ela garante que se viu diante de outro marco profissional e pessoal. “Agora, não tenho mais dúvida da qualidade das minhas peças. Não preciso da opinião dos outros. Estou sempre de olho em novas matérias-primas e produtos. Tenho certeza de que posso ir mais longe ainda”, afirma se referindo à oportunidade de ter participado do Pipa no Ar, plataforma online, lançada durante a pandemia, que facilitou e ampliou o acesso às oficinas do projeto.

Enquanto o Pipa no Ar promove a expansão digital da organização, o Pipa Exportação acontece no mundo real. Com o apoio da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex), roupas, acessórios e peças de decoração produzidas no Complexo do Alemão, na Gardênia, no Chapéu Mangueira, ou em outras dezenas de comunidades do Rio de Janeiro, já conquistaram Dubai, Londres, Paris e Bogotá.

Com esses desdobramentos, Helena espera atrair investidores. “Até o momento, nos mantemos com recursos próprios. Fomos selecionados para receber uma mentoria com um grande banco. Ouvimos elogios. Mas nos disseram que, para conquistar um financiador, ainda falta escala. A partir daí, nos concentramos em ações para impactar um número ainda maior de pessoas. “

Ao que tudo indica, a história de oportunidade da Pipa Social não acaba aqui.

Angélica Brum

Virou clichê dizer que a gente gosta de contar histórias. Sem nenhuma pretensão de originalidade, reconheço que gosto mesmo é de ouvir histórias. Assim, desde a formatura na UFRJ, há mais de 25 anos, tento passar adiante notícias que a vida me apresenta com generosidade. Seja em sites, em tevê, onde dirigi o documentário "Vida Corrida", em revistas - Elle, Marie Claire, Caras e Veja, ou em jornais - JB e O Globo.

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