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Veja o que já enviamosO trabalho precisa deixar de ser um inferno
A precarização, o desmonte das redes de proteção e o assédio naturalizado transformam a vida profissional numa tortura; passou da hora de mudar

Mais de 2,4 milhões de perfis seguem a paulista Luana Zucoloto no Instagram; outro 1,3 milhão a acompanha no TikTok. Publicitária e atriz, ela desembarcou dos empregos formais após oito sofridos anos de carreira, e pulou no oceano cheio de ondulações e correntezas das redes sociais, reinventando-se como comediante. Até aqui tudo bem – lota teatros Brasil afora, com espetáculo emblemático, a começar pelo título: “Esse show poderia ser um e-mail”.
LEU ESSA? A felicidade é que resolve
Luana faz piada com o cotidiano do qual se livrou, mas que ainda atormenta milhões de pessoas. Zomba das idiossincrasias do mundo corporativo, das reuniões inúteis, dos chefes patéticos, dos pequenos poderes, dos favorecimentos espúrios, do inclemente achatamento salarial – e do assédio naturalizado que espreita os trabalhadores.
Como típica comédia de qualidade, a dela convida à reflexão: o trabalho precisa ser um inferno? A inviabilidade conceitual do capitalismo, da sanha incansável por lucro, da busca obcecada pelo acúmulo de riqueza, da aposta teimosa na desigualdade, transformou a atividade, fundamental para a existência humana, num massacre permanente, como se não houvesse outra maneira de fazer.
Ressignificou, para (muito) pior, até a sigla que um dia simbolizou a conquista do povo assalariado: a CLT, Consolidação das Leis do Trabalho, conjunto de regras aprovado em 1943 que protegeu gerações de brasileiros. Ter “carteira assinada” era sinônimo de segurança e estabilidade, status cobiçado por todo mundo tirando os herdeiros). Mas um conjunto de mazelas corroeu garantias e benefícios, tornando a condição cada vez menos compensadora. Reformas seguidas tungaram direitos e solavancos econômicos sugaram postos de trabalho.
A remoção do Estado como mediador e a devoção cega à tal autorregulação do mercado – em uma palavra: ganância – dissolveram quase tudo que restava da rede protetora aos trabalhadores. (E olha que as garantias chegaram somente 55 anos após o fim da escravidão.) Pouco mais de oito décadas se passaram, e a CLT virou piada.

O humor, ferramenta excelente para denunciar desajustes e outros males, não é exclusividade de Luana. Num exemplo entre muitos, correu a internet, logo depois de uma enchente no Rio, em 2019, o áudio do suposto empregado de uma padaria em Botafogo, na Zona Sul. Com a casa alagada em Belford Roxo, Baixada Fluminense, ele esculachava o patrão, “seu Armando”, que não autorizou a falta, mesmo diante do quadro devastador causado pela tempestade.
Era, como se diz hoje em dia, fake news – mas, bem de acordo com nossos tempos, deu problema, porque muitos consumidores foram protestar diante da insensibilidade patronal. Não por acaso, a ficção está baseada em fatos reais. “Vi uma moradora falando no telefone com alguém que parecia ser o chefe dela, justificando porque seria difícil chegar ao trabalho. A ideia do áudio veio na mesma hora”, narrou Leandro Menezes, um dos autores da ideia. “A publicação deu certo porque mostra o que muitos gostariam de dizer. São pessoas que passam horas em transportes públicos, que usam duas ou três conduções todos os dias. Acho que se sentiram representadas”, arrematou Bruno Castanha outro autor. Com Thaís Ribeiro, os dois mantêm o canal “Ninja, o Sincero”, nas redes sociais.
No que deu tamanha insensibilidade? No empreendedorismo inviável do transporte de aplicativo, das entregas do comércio eletrônico e barbaridades afins. Para “não ter patrão” e “fugir da CLT”, as pessoas se submetem a condições sub-humanas, movidas pela ilusão de “ter o próprio negócio”. Mentira inventada no bojo da revolução das big techs.
O nome verdadeiro, que ninguém gosta de pronunciar, é precarização. O delírio se desmancha em precarização absoluta – condição muito pior do que a dos empregos formais. Para viabilizar o negócio, sobra trabalhar quase as 24 horas do dia, em jornadas insanas, insalubres, praticamente suicidas. Quando a conta chega – e não fecha –, despeja frustração e revolta. Prato cheio para a extrema-direita se alastrar.
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Veja o que já enviamosOnde está a solução? Nos lugares de sempre: na divisão mais equânime de trabalho e lucro; na dignidade para os profissionais de todos os degraus da escala produtiva; no respeito pelos subordinados; nas garantias sociais para quem faz a roda da economia girar na direção certa (xô, Faria Lima); num sistema tributário que onere mais quem emprega menos – e redistribua a renda.
Aqui, aliás, o pensamento do sociólogo italiano Domenico de Masi (1938-2023) serve de ensinamento mais precioso. Ele propôs o conceito de “ócio criativo” como ferramenta para mover o setor produtivo na direção certa, estimulando a inventividade pessoal. Quem só trabalha não consegue tempo nem sossego para pensar, criar. Ainda em 1999, ele lançou “O futuro do trabalho”, livro no qual oferece tese simples e revolucionária: na sociedade pós-industrial – a atual – conhecer vale mais do que fazer. Assim, a felicidade está na integração entre ócio e as ocupações profissionais.
Daí está o acerto de iniciativas como o fim da jornada 6×1 e o urgente freio de arrumação que vai afrouxar o torniquete dos trabalhadores. Atravessar a vida num inferno cotidiano não tem a menor graça.
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