Diante do agravamento da crise climática, são ainda maiores os desafios para garantir a abundância de frutas, legumes e hortaliças plantados – em meio às árvores nativas da Amazônia – por moradores de comunidades que também lutam para regenerar áreas degradadas de territórios em municípios cortados pelo Rio Tapajós, no Pará. Em regiões já afetadas por incêndios e também pela seca que assola grandes rios amazônicos, a liderança de mulheres está fazendo a diferença em um projeto voltado ao fortalecimento de Sistemas Agroflorestais (SAFs) que envolve capacitação, estímulo ao empreendedorismo e geração de renda a partir de novos negócios com visão de longo prazo.
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Rosângela Silva, diretora-presidente da Associação dos Agricultores Familiares da Batata (Asafab), organização de 103 associados criada em 2000, conhece profundamente as dificuldades para manter vivas tanto as mudas do viveiro, cuidadas desde a coleta das sementes, como as já plantadas na sua comunidade, em Trairão, no Sudoeste paraense. Esse município teve a história marcada por conflitos causados por madeireiros que devastaram florestas e ameaçaram lideranças comunitárias engajadas em movimentos socioambientais.
Mãe de sete filhos, ela vive com a família há mais de duas décadas em um assentamento onde os moradores estão envolvidos com agroecologia, mesmo sem a maioria saber que era essa a denominação das suas práticas agrícolas ancestrais. A terminologia ganhou popularidade quando a Asafab foi uma das quatro organizações contempladas pelo Projeto de Restauração da Floresta Amazônica no Tapajós, iniciativa realizada em parceria pela Conservação Internacional (CI-Brasil) e pelo Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia (IPAM), com apoio financeiro da General Motors. A participação em ações de capacitação tem trazido a dimensão da importância desse sistema agrícola no desenvolvimento local.
Ela conta com orgulho sobre o andamento do projeto que inclui, entre outras iniciativas inovadoras, infraestrutura de beneficiamento de polpas de frutas como cupuaçu, buriti, graviola e acerola colhidas na comunidade. O empreendimento garante reforço na segurança alimentar, além de renda extra para as famílias envolvidas na iniciativa. A líder comunitária relata que foi preciso fazer adaptações em casa para instalar a máquina despolpadeira, dois freezers e a área de lavagem fundamental ao andamento do processo. “A casa ficou pequena”, observa. Mas considera que os esforços têm valido a pena. “Fazemos para consumo próprio e para vender”. Além de fornecer para a merenda escolar do município, por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que compra parte dos alimentos de agricultores familiares, as empreendedoras vendem polpas congeladas para mercados e lanchonetes locais.
Em épocas de seca, como tem acontecido atualmente, os esforços são ampliados para manter viva a natureza que garante segurança alimentar e reforço financeiro para a comunidade. Além de frutas, famílias assentadas como a de Rosângela, têm cultivos consorciados de mandioca, abóbora e outros alimentos que também são fornecidos para as escolas municipais. “São pequenos plantios, mas são tão diversificados que sempre tem algum alimento para ser colhido”, afirma a líder comunitária, uma entusiasta da agroecologia.
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Veja o que já enviamosEla conta que a cidade onde vive já foi reconhecida nacionalmente como área de conflitos com madeireiros, além de terra arrasada pelo desmatamento. Rosângela diz que “a madeira se esgotou”, fora das áreas legalmente protegidas, Mas, agora, reitera que chegou o tempo de recuperar áreas degradadas com a produção própria de mudas de espécies nativas que se misturam às frutíferas e às roças diversificadas dos moradores. Rosângela explica que não somente a venda de alimentos, mas as mudas produzidas pelos comunitários também trazem reforço na renda das famílias envolvidas e contribuem para a regeneração florestal desse município amazônico altamente degradado.
Como parte dos desafios decorrentes dessa realidade local, a líder comunitária ressalta que as comunidades enfrentam temperaturas cada vez mais altas nesse pedaço de uma Amazônia já afetada pelo agravamento da crise climática. Segundo Rosângela, a expectativa dos associados é de que mais projetos como esse sejam apoiados para fortalecer a economia local e gerar melhoria na qualidade de vida das famílias em tempos que demandam reforço à resiliência como questão fundamental. “Com mais estrutura, a gente poderia expandir o beneficiamento de polpa incluindo outras comunidades”, afirma. Ela acrescenta que o estatuto da associação que dirige permite a atuação em nível municipal.
Capacitação profissional fortalece autoestima
Suelen Costa Feitosa tem colhido bons resultados na comunidade de São Miguel, em Mojuí dos Campos, município do Oeste do Pará que integra a Região Metropolitana de Santarém, área consolidada, nas últimas décadas, como pólo de produção de soja. Por lá, são explícitas as grandes mazelas ambientais associadas ao desmatamento e ao uso em larga escala de agrotóxicos em plantações cada vez mais próximas das casas de moradores da zona rural. Nessa região, a Associação de Mulheres Agricultoras de Belterra (Amabela), organização da qual é vice-presidente, também tem buscado fazer a diferença em sustentabilidade.
Antes do projeto SAFs sua família plantava feijão, arroz e algumas hortaliças, colhendo esses alimentos somente para o consumo próprio no assentamento onde vive. Mas a iniciativa trouxe outra dimensão para a dinâmica comunitária. Suelen conta sobre o prazer sentido em conhecer sobre a perspectiva do Sistema Agroflorestal e de perceber como os saberes das comunidades já incorporavam essa filosofia. “A gente já praticava agroecologia e não sabia”, afirma com orgulho sobre as descobertas envolvendo estudos desse tema e sua importância. Além de atuar com outra alternativa de produção alimentar, com maior potencial de geração de renda e qualidade ambiental, ela relata a alegria de estar passando por uma capacitação por meio de um curso técnico de agroecologia.
Nos plantios de alimentos consorciados, sua família tem colhido frutas cítricas, além de cupuaçu, goiaba, cacau, acerola, abacate e urucum, base para a produção de corante natural alimentar que também é parte de rituais de pinturas indígenas. “O que mais me encantou nesse projeto foi a possibilidade de consorciar várias culturas em pouco espaço”, afirma. Ela também conta orgulhosa que já plantou árvores nativas da Amazônia como castanheira, cumaru e andiroba.
Outro motivo de orgulho de Suelen envolve o plantio de quase 400 mudas de açaí que produziu, com sementes que consequiu coletar com a família, e adianta que o seu projeto terá uma característica agropastoril já que também cria carneiros. O marido e os quatro filhos estão todos envolvidos com esse modelo de produção do SAFs. “A gente está feliz por poder produzir tudo isso. Sabemos que no nosso país é muito difícil viver do que se produz, mas nós estamos conseguindo. Temos muitas conquistas nessa associação de mulheres”, afirma.
A líder comunitária relata sobre o encantamento que sentiu ao visitar um projeto de agroecologia em Tomé-Açu, município localizado a cerca de 200 quilômetros de Belém. De lá, trouxe mais inspirações para ampliar e diversificar a sua produção familiar. Ela ainda se orgulha de ter a mãe e mais duas irmãs envolvidas com esse sistema de produção que segue avançando na comunidade. E acredita que o aprendizado em agroecologia vai fazer a diferença no futuro de uma região de onde os jovens precisam sair para estudar e trabalhar e onde a população mais idosa não vê substitutos para continuar a agricultura familiar. Por essas e outras razões, Suelen considera que o projeto que contemplou a sua associação é muito importante e deixará um legado de esperança e melhoria de qualidade de vida.
“Desde que entrei nesse curso percebi que essa era uma cultura para levar para a vida. Sabemos que não precisamos destruir para construir”, relata. “Hoje tenho melhores expectativas de que os meus quatro filhos [entre seis e 17 anos] vão tirar daqui uma renda para investir no futuro deles, quem sabe para garantir um curso ou uma faculdade. Eles estão muito envolvidos e encantados também com esse projeto”, relata. Ela acrescenta que, no ano passado, a região onde vive foi muito afetada por incêndios e pela forte seca que levou à perda de muitas mudas. Mesmo assim, as comunidades têm persistido com as atividades de fortalecimento da produção por SAFs.
Além da Asafab e da Amabela, foram contempladas pelo projeto SAFs, a Associação dos Moradores do Areia (AMA) e a Casa Familiar Rural de Belterra que tem dado grande suporte às atividades de campo dessa iniciativa. O Laboratório de Sementes Florestais da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), sob a coordenação do professor Everton Almeida, também tem contribuído para as ações de capacitação ministradas às famílias agricultoras.
Desenvolvimento local sustentável em construção
Maria Farias, coordenadora de projetos da CI-Brasil, conta que desde 2018 a organização ambientalista tem atuado com o Projeto Tapajós Sustentável e Resiliente que já envolveu famílias da Floresta Nacional (Flona) do Tapajós e Flona do Trairão, entre outras localidades, onde as comunidades estão envolvidas em ações de produção agroecológica e em regeneração florestal de áreas degradadas. Para as atividades do projeto SAFs do Tapajós, ela afirma que havia uma grande demanda das famílias assentadas e que a organização foi em busca de apoiadores. “A General Motors foi a grande empresa que aceitou nos dar esse apoio”, ressalta.
Animada com os resultados alcançados por essa iniciativa, a coordenadora relata o envolvimento de associações contempladas como a Asafab e a Amabela. Da mesma forma, ressalta que a CI-Brasil não trabalha sozinha e que tem sido muito importante contar com parceiros de peso como o Ipam que prestou assistência técnica em duas fases dessa iniciativa do Tapajós e também com o Laboratório de Sementes Florestais da UFOPA. A união em rede possibilitou o plantio de aproximadamente 7 mil mudas nas duas etapas de realização do projeto SAFs.
Infelizmente, a seca severa, segundo a coordenadora, levou à perda de parte das mudas plantadas e a situação não se tornou ainda mais crítica porque as famílias que têm poços artesianos em casa puderam manter os seus plantios vivos. “Infelizmente esse é o cenário já configurado pela crise climática”, observa. Mesmo assim, Maria comemora os resultados do projeto. “As mulheres que formam a maioria dessa iniciativa, além de praticarem a agroecologia por natureza, serão técnicas dentro de algum tempo e poderão multiplicar novos conhecimentos”, opina.
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“Percebemos grandes avanços com toda essa bagagem que vem sendo construída para a melhoria da qualidade de vida de quem cuida da natureza para todos nós”, afirma a coordenadora. “Bom seria se mais empreendedores e apoiadores olhassem por essas comunidades também, pois apesar da seca e de outros desafios enfrentados, a gente vê o resultado de tudo na prática”, ressalta. Ela conta orgulhosa que tem uma tradicional feira realizada na UFOPA e que as mulheres envolvidas com o projeto estão lá presentes, vendendo seus produtos. “São frutas, legumes, hortaliças, farinha, bolinhos e tudo feito por elas. Elas são muito engajadas e estão conquistando cada vez mais autoconfiança porque sabem que não estão sozinhas”, observa.
Ela enfatiza ainda que as sementes são fundamentais para a garantia da restauração de Áreas de Preservação Permanentes (APPs) como nascentes, matas ciliares e outras áreas das propriedades rurais que precisam ser protegidas para o cumprimento do novo Código Florestal, legislação que rege sobre a proteção da vegetação nativa em terras privadas. “Temos nesse projeto uma espécie de laboratório a céu aberto”, celebra Maria, que também se orgulha da construção de três viveiros comunitários com capacidade atual de produção de 60 mil mudas, 20 mil unidades, cada.
Ela conclui que todas as ações têm envolvido metodologias próprias que também vão somar esforços para que o próprio estado do Pará possa alcançar suas metas de restauração florestal que são altas e vão demandar capacidade de produção de mudas. “As comunidades têm conhecimentos ancestrais e sabem onde as sementes estão. Mas precisam ser apoiadas com análises e suporte para idas a campo, entre outras iniciativas”, explica Maria Farias sobre o papel do projeto na operacionalização dessas e outras ações que fazem as famílias e grupos envolvidos avançarem. “Com isso, vários atores devem se organizar e fazer da rede de sementes uma realidade”, opina.
Como próximos passos, a a coordenadora de projetos da CI-Brasil destaca que será importante trazer mais projetos para ancorar ações práticas de capacitação, garantia de insumos e outras ações que garantam que a rede de sementes em consolidação possa funcionar com sustentabilidade.
Em alinhamento à Década da Restauração de Ecossistemas, instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) para o período de 2021 a 2030, à qual o projeto SAFs se integra também, o governo brasileiro assumiu o compromisso de restaurar 12 milhões de hectares de áreas degradadas, enquanto a meta subnacional do Estado do Pará, envolve a recuperação de 5,6 milhões de hectares, pelo Plano Estadual Amazônia Agora (PEAA).