Maconha, o novo barato digital

Depois do clima, ONU prepara conferência mundial sobre drogas

Por Helena Celestino | ODS 12 • Publicada em 22 de dezembro de 2015 - 08:28 • Atualizada em 22 de dezembro de 2015 - 11:18

No ano eleitoral de 2016, ou seja, daqui a poucos dias, começará a campanha pela legalização da maconha para fins recreativos em seis estados americanos
No ano eleitoral de 2016, ou seja, daqui a poucos dias, começará a campanha pela legalização da maconha para fins recreativos em seis estados americanos
No ano eleitoral de 2016, ou seja, daqui a poucos dias, começará a campanha pela legalização da maconha para fins recreativos em seis estados americanos

Parece ficção, mas é só a nova cara da economia.  Não no Brasil onde tudo anda com jeito de filme velho com final triste. Mas em Silicon Valley, na Califórnia, onde o futuro chega primeiro – para o bem ou para o mal. Num fim de tarde, Farhad Manjoo, repórter do New York Times, conectou-se com o website Hello MD, uma start up especializada em botar  médicos e pacientes em contato, via internet. Registrou -se, deu número do cartão para pagar a consulta (US$ 50) e relatou seu problema:  uma azia frequente demais para ser esquecida. Cinco minutos depois, uma pediatra vestida de vermelho – jaleco branco é passado – surgiu na tela, num ambiente que parecia ser seu home-office, em Washington.  Perguntou sobre o histórico médico do repórter, sintomas, remédios de uso frequente, num ritual igual ao dos consultórios do mundo. Três minutos depois, ela deu o diagnóstico: os sintomas relatados por Manjoo faziam dele um candidato ao uso de marijuana para fins medicinais, prática legalizada na Califórnia desde 96.

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Ano passado, a marijuana já foi a indústria que mais cresceu nos EUA – 74% em um ano, com faturamento de US$ 2,4 bi. Se a maconha legal vencer na Califórnia, é só uma questão de pouco tempo para todo o país seguir a tendência e os negócios explodirem

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Em menos de uma hora a maconha foi entregue em casa, num processo tão simples como encomendar a pizza de domingo à noite. No Weedman – um google especializado em cannabis – Monjoo procurou um site de vendas, com serviço de entrega a domicílio:  escaneou receita médica e identidade, teve acesso a um volumoso cardápio com inúmeras opções para cumprir a recomendação médica – claro, a estas alturas ele já esquecera a azia. Escolheu um vaporizador de extrato de maconha, em formato de caneta: pagou US$ 100 e um motoqueiro fez a entrega em sua casa no tempo estipulado.

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Marijuana tech é a nova aposta dos nerds de Silicon Valley. Melhor apagar da memória o espírito rebelde dos anos 60, a cultura do paz e amor ou o estilo sexo, drogas e rock n’’roll. O nome do jogo agora é business, big business. A utopia é inventar o Airbnb ou o Facebook da cannabis e entrar para a lista dos top bilionários.  No ano eleitoral de 2016, ou seja, daqui a poucos dias, começará a campanha pela legalização da maconha para fins recreativos em seis estados americanos. O lobby já está em ação e as cannabis startups já se anteciparam para criar tecnologias, sofisticar os produtos e deixar tudo ao alcance de um click. Ninguém pensa nos doidões como consumidores preferenciais, a ideia é fidelizar jovens mamães e papais, profissionais de sucesso, senhorinhas antenadas: gente normal, com vida normal e vontade de se divertir.

Ano passado, a marijuana já foi a indústria que mais cresceu nos EUA – 74% em um ano, com faturamento de US$ 2,4 bi. Se a maconha legal vencer na Califórnia, é só uma questão de pouco tempo para todo o país seguir a tendência e os negócios explodirem.  Alguns já estão marcando o território: como a Hello MD. A Meadow também facilita a obtenção de recomendação médica para consumir marijuana sem passar por hospital. Em novembro, lançou um software para conectar agricultores, distribuidores, centros de saúde, médicos e pacientes, ou seja,  toda a cadeia de negócios. A Privateer, holding de um grupo com várias empresas dedicadas à maconha, recebeu um multimilionário investimento para ampliar a Leafly – site com notícias e informações sobre produtos com selo cannabis – e a Tilray, uma espécie de Embrapa da marijuana.

Manifestante, na Califórnia, veste a camisa da legalização

Nos EUA, a corrida é para criar o império da maconha legal.  Não é esta, claro, a motivação dos políticos ao defenderem o fim da proibição.  O mais corajoso deles, o ex-presidente do Uruguai Pepe Mujica, definia com muita precisão a sua política ao fazer do seu pais o primeiro a legalizar a plantação, venda e consumo de maconha no mundo: acabar com o monopólio dos traficantes e a violência ligada ao comércio ilegal.

“Não vai existir o turismo da maconha. A decisão tomada não tem nada que ver com esse mundo boêmio. Nada que ver, é uma ferramenta de combate a um delito grave, o narcotráfico, é para proteger a sociedade. É muito sério”, disse-me, há quase dois anos, numa entrevista, o então presidente do Uruguai.

Seu sucessor, Tabaré Vasquez, não gostou da ideia de vender cannabis nas farmácias como estava previsto em lei, mas uns 40 clubes já funcionam em Montevidéu legalmente – plantam e entregam aos sócios 40 gramas de erva” por mês –, o cheiro da maconha nas ruas não assusta ninguém nem desperta a atenção da polícia. Ainda é cedo para avaliar o impacto da legalização no tráfico – dizem especialistas – mas o consumo aparentemente não aumentou.

Aqui, no Brasil, a conversa sobre a mudança na lei parou, mas em Portugal a legalização já fez o primeiro aniversário, assim como nos quatro estados americanos onde adultos podem fumar maconha por puro prazer, sem precisar de recomendação médica – alguém lembra que para comprar pílula anticoncepcional exigia-se receita?  O parlamento na Colômbia, México, Argentina e Espanha também estão discutindo a legalização da maconha, o novo primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, já avisou que pressionará o congresso a lançar essa pauta, o Reino Unido também pretende entrar nessa onda.

O clima é radicalmente diferente da cultura dominante em 1998 quando aconteceu a última sessão especial da ONU para discutir o assunto, sob uma palavra de ordem totalmente delirante: “um mundo livre das drogas, nós podemos fazer isto”.  Na época, a guerra às drogas era a única política no radar, a Holanda era o país dissidente e as coffee-shops consideradas coisa de holandeses exóticos – a audácia não se traduziu numa política pública realista. Até hoje eles fazem de conta que não veem o comercio ilegal, único caminho para a cannabis chegar aos bares.

Neste Ano Novo, em abril, os países se reunirão em Nova York para uma nova sessão especial da ONU sobre drogas.  Os EUA – sob pressão da opinião pública – cedeu à Rússia de Vladimir Putin o papel de comandante em chefe da guerra às drogas, tendo como aliados a vanguarda do atraso em questões de comportamento, países como China e Irã. A maioria dos governos ocidentais já se convenceu de que este não é o bom combate, mas são poucas as esperanças de mentes abertas arrancarem um consenso para mexer na convenção, assinada por todos os países, proibindo o uso de drogas no mundo. “Será a conferência da hipocrisia”, sintetiza a Economist.

Estima-se que existam 8 milhões de consumidores de maconha, a mais usada das drogas ilegais, mercado que gera negócios calculados em US$ 100 bilhões. É muito dinheiro circulando clandestinamente, sem pagar imposto e impulsionando máfias e crimes de sangue. Hipocrisia não vai adiantar para esconder o fracasso da guerra às drogas.

Helena Celestino

Jornalismo é um vício assumido, é difícil me imaginar longe da notícia. Acostumei a viver com o dedo na tomada: aprendi isto trabalhando, viajando pelo mundo e sendo por muitos anos editora executiva do Globo.

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