Dinheiro começa a virar relíquia

As novas notas da Suécia, alem de mais sustentáveis, trazem figuras de artistas do século XX

Países escandinavos caminham rapidamente para acabar com as notas e as moedas

Por Flavia Milhorance | ODS 12 • Publicada em 11 de agosto de 2016 - 08:00 • Atualizada em 12 de agosto de 2016 - 12:59

As novas notas da Suécia, alem de mais sustentáveis, trazem figuras de artistas do século XX
Na Dinamarca, até 1990, mais de 80% dos pagamentos ocorriam com dinheiro ou cheque. Agora eles giram em torno de 25%
Na Dinamarca, até 1990, mais de 80% dos pagamentos ocorriam com dinheiro ou cheque. Agora eles giram em torno de 25%

No início desta semana, saí de casa e esqueci a carteira. Só percebi horas depois, quando a fome apertou. Não tinha cartão, nem uma moeda perdida na bolsa. E agora? Olhei para o lado e vi meu celular. Lembrei que tinha instalado um aplicativo para pagamento online. Fui à cafeteria e, na hora de pagar, digitei o número de telefone que estava indicado num pequeno cartaz no estabelecimento. Coloquei o valor, a minha senha… e pronto. Em poucos segundos, a conta estava paga. O vendedor recebeu a notificação e agradeceu.

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Nosso movimento em direção a uma sociedade com menos e menos dinheiro está despertando interesse e curiosidade. Outros bancos centrais querem entender por que e como a Suécia está caminhando nesta direção.

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Esse aplicativo é apenas um de uma longa lista de produtos e medidas que estão colocando países escandinavos entre os que poderiam abandonar o dinheiro em espécie num futuro não muito distante. Será que isto vai colar?

Na Dinamarca, há um projeto de lei que está prestes a ser votado no Parlamento que, se aprovado, desobrigará estabelecimentos de aceitar dinheiro em papel. Ficará a cargo de cada um decidir. A proposta vem provocando debate, e o Banco Nacional chegou a pedir “moderação na discussão”. Disse que, qualquer que seja a decisão, não haverá “nenhum desastre nacional”.

Num relatório publicado pelo Conselho de Pagamentos, os lados ficam claros. De um, empresários querem mais liberdade e reforçam que portar dinheiro em papel é caro, além de atrair roubos. De outro, entidades de defesa de idosos e deficientes dizem que esses indivíduos poderiam ter problemas para lidar com o dinheiro eletrônico.

Tendência de redução do uso de dinheiro em espécie

De toda forma, uma forte tendência de redução do uso de dinheiro em papel já vem ocorrendo naturalmente no país.

O aplicativo é o Mobile Pay. Foi criado em 2013 pelo Danske Bank, um dos maiores bancos da Dinamarca. Não é preciso ser cliente para fazer o download, tanto que dois terços dos usuários são de outras instituições financeiras no país. Desde então, o aplicativo já ultrapassou os três milhões de usuários, mais de 50% dos 5,6 milhões de dinamarqueses. É o terceiro aplicativo mais usado no país, depois do Facebook e do Facebook Messenger.

[g1_quote author_name=”Dominic Frisby ” author_description=”Especialista em finanças” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Num mundo sem dinheiro, cada pagamento realizado seria rastreável. Além disso, ele dá poder aos usuários. Permite que você compre, venda, armazene sua riqueza, sem ser dependente de mais ninguém.

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Essa forma de pagamento é aceita em 24 mil estabelecimentos. Isso sem contar ambulantes. Na tenda de crepe, de cachorro quente ou de suco, sempre tem uma plaquinha do aplicativo. É também a forma mais fácil e popular de se transferir dinheiro de uma pessoa a outra.

Há outras soluções populares na Dinamarca. Na primeira vez que experimentei o sistema contactless, eu não estava preparada psicologicamente. Pedi uma bebida num bar, e o vendedor me orientou a encostar o meu cartão num dispositivo parecido com um celular. “Ok, obrigado”, disse ele. “Oi? Não coloquei a senha, não inseri o cartão na maquininha. O que está acontecendo aqui?”, pensei, preocupada.

O meu cartão dinamarquês tem um selo que parece com o da rede wi-fi e indica que ele tem a identificação de rádio frequência que permite este tipo de transação. Como não requer senha, o número de pagamentos é limitado. E uma pesquisa da MasterCard mostra que a tendência é de consumir mais usando este sistema. No meu caso foi o oposto, fiquei desconfiada e parei de consumir.

Mas os dinamarqueses, ao contrário, têm alto grau de confiança nos seus sistemas eletrônicos e financeiros, segundo uma pesquisa do Copenhagen Finance IT Region, a mesma que está fazendo campanha pela aprovação da lei de desobrigação de notas de dinheiro em lojas. Este é um dos fatores, diz o estudo, que tem levado a mudanças tão rápidas de hábitos. Pois na década de 1990, mais de 80% dos pagamentos ocorriam com dinheiro ou cheque. Em 2012, este índice caiu para 25%, de acordo dados do Conselho Dinamarquês de Pagamentos.

Aplicativos como o Mobile Pay já alcançaram mais de três milhões de usuários na Dinamarca

Na Suécia, nova moeda x menos dinheiro

Curiosamente, a Suécia vive um processo de transição para novas notas e moedas. As antigas estão nas ruas há mais de 30 anos e, segundo o Banco Central do país (Riksbank), precisavam ser modernizadas. As lançadas recentemente são menores, mais leves, com metais que causam menos impactos ao meio ambiente e com mais características de segurança. Também estão em menor quantidade e trazem figuras de artistas do século XX, como Greta Garbo.

Podem acabar virando peças de coleção se a tendência de redução do uso de notas e moedas se mantiver no país. Segundo o Banco Central sueco, o dinheiro em papel representa 2% do Produto Interno Bruto (PIB). Em 2015, apenas 20% dos pagamentos em lojas foram feitos em dinheiro, queda de 15% em comparação com 2007.

“A transformação estrutural que estamos vendo é em grande medida positiva”, afirmou Sara Edholm, economista no Departamento de Estabilidade Financeira do Banco Central sueco.

“Nosso movimento em direção a uma sociedade com menos e menos dinheiro está despertando interesse e curiosidade. Outros bancos centrais querem entender por que e como a Suécia está caminhando nesta direção”.

A principal explicação está principalmente na redução de gastos: na fabricação e distribuição do dinheiro e na limitação do número de agências bancárias, serviços e caixas eletrônicos. Cerca de metade das agências bancárias do país não têm dinheiro disponível, ou seja, não há como fazer saques ou depósitos.

Trata-se ainda de uma questão de segurança para evitar roubos. Em 2013, um caso acabou virando piada no país: um ladrão tentou roubar um banco em Estocolmo e saiu de mãos vazias porque o local não armazenava mais dinheiro.

Lá, por sinal, estabelecimentos não são obrigados a aceitar notas e moedas. Fui surpreendida com isso no Museu Fotografiska, em Estocolmo. Mas no site a informação está lá e justifica de forma breve a medida: “acreditamos que o sistema sem dinheiro em papel é mais seguro e eficiente. Você pode pagar apenas com cartão”.

O cartão de crédito é o método mais usado na Suécia, e 98% da população têm acesso ao sistema. Entre 1998 e 2014, o número de pagamentos com cartão aumentou de 213 milhões para 2,6 bilhões ao ano.

Também existe o aplicativo de pagamento via celular, o Swish. Embora popular, ainda tem menos usuários proporcionais do que a Dinamarca. São três milhões de usuários, 30% da população de 9,5 milhões. Mas lá, dinheiro não é aceito nem mesmo em ônibus, que recebem apenas cartões de crédito e pré-pagos.

Fim do dinheiro de papel em cinco anos

O pesquisador do Instituto de Tecnologia Real de Estocolmo, Niklas Arvidsson, é um dos entusiastas da Suécia sem dinheiro em espécie. Em outubro de 2015, ele divulgou um estudo apontando que o país seria o pioneiro no mundo a acabar com as notas e moedas, devido ao rápido avanço de suas tecnologias de informação, além da forte repressão ao crime organizado e ao terrorismo.

“Acho que, na prática, a Suécia se tornará uma sociedade sem dinheiro em cerca de cinco anos”, previu o professor. “O dinheiro ainda é um importante meio de pagamento em muitos países, mas isto não se aplica mais à Suécia. Nosso uso de dinheiro é pequeno e está se reduzindo rapidamente”.

Já Sara Edholm, do Banco Central da Suécia, diz que para uma sociedade totalmente sem dinheiro, ainda há “um longo caminho”.

Na Noruega, além de tendência semelhante à dos outros países escandinavos, o diretor executivo do DNB (o maior do país), Trond Bentestuen, deu uma entrevista ao jornal norueguês “VG”, defendendo o fim total do uso de dinheiro. O banco já tem a maior parte de suas agências sem notas e moedas armazenados.

“Apenas 6% dos nossos consumidores usam dinheiro diariamente”, justificou Bentestuen, segundo o jornal. “Existem tantos perigos e desvantagens associados ao dinheiro que concluímos que ele deveria ser superado”.

Depois da entrevista, publicada em janeiro deste ano, o Ministério das Finanças se posicionou contrário à sugestão do diretor do DNB e disse que o dinheiro ainda ficaria na sociedade por um bom tempo.

As novas notas da Suécia, alem de mais sustentáveis, trazem figuras de artistas do século XX

Vigilância ou inclusão financeira?

Há outros argumentos que entram na disputa sobre ter ou não ter uma sociedade sem dinheiro em papel. Dominic Frisby é escritor financeiro e publicou alguns livros na área. Ele escreveu em março um artigo no jornal britânico “The Guardian”, com o título “Por que devemos temer um mundo sem dinheiro”, no qual lista algumas preocupações.

A principal delas é que a tendência daria ainda mais poder a bancos e companhias de tecnologia financeira de vigiar as transações. “Num mundo sem dinheiro, cada pagamento realizado seria rastreável”, escreve.

“O dinheiro, por sua vez, empodera os usuários. Ele permite que você compre, venda, armazene sua riqueza, sem ser dependente de mais ninguém. Ele pode ficar fora do sistema financeiro, se assim você desejar”, diz ainda.

Frisby acrescenta que metade da população mundial sequer tem conta bancária, sem acesso a serviços básicos financeiros. Aliás, boa parte da população não tem conexão à Internet, necessária para parte das transações eletrônicas.

Já Celia de Anca, diretora do Centro para a Diversidade na Gestão Global, da IE Business School (Madrid), tem um argumento pelo viés social. Ela não trata especificamente da questão da sociedade sem dinheiro, mas defende que somos apegados às moedas locais. O dinheiro traz um sentimento de pertencimento, um sentimento de identidade.

“Não é coincidência que moedas e notas carregam imagens de monarcas, presidentes e heróis nacionais”, escreveu Celia no “Harvard Business Review”.

Por outro lado, a “Better Than Cash Alliance” é uma parceria entre governos, companhias e organizações internacionais – entre elas o Fundo de Desenvolvimento de Capital da ONU e a Bill & Melinda Gates Foundation – que trabalha com políticas públicas para acelerar a transição para os pagamentos digitais.

Um relatório da aliança publicado em parceria com o Banco Mundial defende a digitalização de pagamentos como forma de inclusão financeira. O documento ainda argumenta que os as transações digitais são mais sustentáveis, eficazes, rápidas, transparentes e podem ser mais bem controladas, reduzindo-se, assim, potenciais atividades criminosas.

Além disso, o texto defende que o modelo tem custos mais baixos. Como exemplo, ele cita, entre outros, o Bolsa Família, que reduziu de 14,7% para 2,6% o custo das transações financeiras quando adotou o pagamento por cartão.

O Brasil, aliás, tem um projeto de lei que quer acabar com o dinheiro em espécie, assim, de uma só vez. O PL 48/2015 foi proposto pelo deputado federal Reginaldo Lopes (PT-MG), que justifica a medida não pela inclusão financeira da população, mas pela possibilidade de aumento da arrecadação. Ele cita dados de que 37% das transações financeiras no Brasil, em 2012, foram feitas com cartão, 4% a mais que em 2008. O documento está aguardando parecer do relator na Comissão de Defesa do Consumidor.

Flavia Milhorance

Jornalista com mais de dez anos de experiência em reportagem e edição em veículos de imprensa do Brasil e exterior, como BBC Brasil, O Globo, TMT Finance e Mongabay News. Mestre em jornalismo de negócios e finanças pelas Universidade de Aarhus (Dinamarca) e City University, em Londres.

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