ODS 1
A sobrecarga da Terra e a necessidade de planejar o decrescimento demoeconômico


Humanidade está entrando em uma espécie de “cheque especial ecológico”, pago com a destruição do capital natural e com crises ambientais cada vez mais severas


O elevado crescimento demográfico e econômico dos últimos 250 anos fez a humanidade ultrapassar a capacidade de carga da Terra. A capacidade de carga refere-se à quantidade máxima de recursos naturais que o planeta pode garantir de forma sustentável, levando em consideração as necessidades de subsistência da população, o padrão de consumo e a preservação dos ecossistemas. É uma medida que indica o impacto máximo de uma espécie biológica que o meio ambiente pode sustentar indefinidamente, ao considerar alimento, água, habitat e todas as demais demandas da referida espécie.
O instituto Global Footprint Network apresenta uma metodologia que viabiliza o cálculo da capacidade de carga, contabilizando o impacto humano sobre o meio ambiente e a disponibilidade de “capital natural” do mundo. A primeira medida, chamada de pegada ecológica, serve para avaliar o impacto do ser humano sobre a biosfera. A segunda medida, chamada de biocapacidade, avalia o montante de terra, água e demais recursos biologicamente produtivos para prover bens e serviços do ecossistema, sendo equivalente à capacidade regenerativa da natureza. Ambas as medidas são representadas em hectares globais (gha).
A pegada ecológica e a biocapacidade são conceitos centrais da sustentabilidade, criados e sistematizados na década de 1990 por Mathis Wackernagel e William Rees, que desenvolveram uma metodologia de medição da pressão humana sobre os ecossistemas em termos comparáveis e padronizados. Quando a pegada ecológica de uma população é maior do que a biocapacidade disponível, ocorre um déficit ecológico (sobrecarga), indicando uso acima da capacidade regenerativa da Terra.
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Veja o que já enviamosO gráfico abaixo, da Global Footprint Network, apresenta os valores da pegada ecológica global e da biocapacidade global de 1961 a 2022, com uma estimativa até 2024. Em 1961, a população humana era de aproximadamente 3 bilhões de habitantes, com uma biocapacidade de 9,76 bilhões de gha e uma pegada ecológica de 7,01 bilhões de gha. Portanto, havia um superávit ambiental no planeta, superávit este que se manteve durante toda a década de 1960 e está representado pela área verde do gráfico.
Porém, com o crescimento da população e o maior volume da produção de bens e serviços, a pegada ecológica global ultrapassou a biocapacidade global a partir do início da década de 1970, gerando um déficit ecológico que se ampliou ao longo dos anos (representado pela área vermelha do gráfico).
Para 2022, com uma população mundial de cerca de 8 bilhões de habitantes, a pegada ecológica foi de 21,3 bilhões de gha e a biocapacidade global em 12 bilhões de gha. Os números para 2024 estão estimados em 21,4 bilhões de gha para a pegada ecológica e 12 bilhões de gha para a biocapacidade. Portanto, o déficit ecológico absoluto para 2024 está estimado em 9,4 bilhões de gha e o déficit relativo em 78%.


Ou seja, em 2024, a humanidade estava consumindo 78% a mais do que o planeta podia fornecer de forma sustentável. Isso quer dizer que precisaríamos de quase duas Terras para sustentar indefinidamente o padrão de consumo médio da população mundial. Significa também que a humanidade está vivendo além da capacidade regenerativa da Terra, entrando em uma espécie de “cheque especial ecológico”, só que pago com a destruição do capital natural e com crises ambientais cada vez mais severas.
Portanto, os recursos renováveis (alimentos, madeira, fibras, pescado) estavam sendo extraídos em um ritmo muito maior do que os ecossistemas conseguiam regenerar no mesmo período. E os serviços ecossistêmicos (como a absorção de CO₂ pelas florestas e oceanos) foram ultrapassados, acumulando estoques de poluição e intensificando a crise climática.
Desta forma, para manter o seu padrão atual de consumo, a humanidade está dilapidando o capital natural — ou seja, destruindo florestas, degradando solos, esgotando estoques de peixe, extraindo água subterrânea além da recarga natural, etc. Evidentemente, esta situação é insustentável, pois o aumento da sobrecarga da Terra pode levar a um colapso ambiental global.
Decrescimento populacional e redução da sobrecarga da Terra
Para evitar a aceleração da crise climática e ambiental, é preciso reduzir a pegada ecológica global e aumentar a biocapacidade planetária, por meio da restauração ecológica. Para diminuir a sobrecarga da Terra, que tem se avolumado nos últimos séculos, é preciso planejar o decrescimento demoeconômico.
Felizmente o ritmo de crescimento populacional mundial já está caindo e o pico populacional deve ocorrer, no máximo, no início dos anos de 2080, sendo que a Divisão de População da ONU prevê um decrescimento da população global nas duas últimas décadas do atual século.
Mas o decrescimento populacional já é uma realidade em muitos países do mundo como China, Rússia, Japão, Coreia do Sul, Polônia, Portugal, Cuba, etc. O caso chinês é paradigmático, pois a China era a nação mais populosa do mundo, porém iniciou o decrescimento da população em 2022 e foi ultrapassada pela Índia em 2023.
Como mostrei no artigo “O profundo e rápido decrescimento populacional da China no século XXI”, publicado aqui no # Colabora (Alves, 25/08/2025) a China deverá perder cerca de 793 milhões de habitantes entre 2022 e 2100. Ou seja, em cerca de 80 anos a China deve perder um número de habitantes equivalente à soma das populações atuais da Austrália, Argentina, Alemanha, Japão, Rússia, México, Etiópia e Vietnã. Em outra comparação, a perda populacional chinesa será maior do que a soma de toda a população atual da América Latina e Caribe. Assim, a China terá desafios futuros bem diferentes dos enfrentados no passado.
A transição demográfica da China já está fazendo efeito, pois o decrescimento da população ajudou a China a alcançar o pico das emissões de CO2 em 2024 e deve permitir uma redução ainda maior nos próximos anos. No dia 24 de setembro de 2025, no âmbito do Acordo de Paris, a China anunciou a nova meta climática do país, conhecida como Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC na sigla em inglês), defendendo uma “sociedade climaticamente adaptável”.
O líder chinês Xi Jinping afirmou que a nação se compromete em reduzir as emissões de gases de efeito estufa entre 7% e 10% até 2035, expandir as fontes de energia não fósseis para 30% da matriz (o que representa seis vezes mais do que em 2020) e ampliar a capacidade instalada de usinas eólicas e solares em 3.000 gigawatts. O volume de reservas florestais deverá ultrapassar 24 bilhões de metros cúbicos. Os veículos de novas energias se tornarão predominantes entre os novos carros vendidos e o mercado chinês de comércio de carbono cobrirá os principais setores de alta emissão.
Ao contrário dos analistas que enxergam um “apocalipse demográfico” na China, o economista Adair Turner, em artigo recente (PS, 03/10/2025), mostrou que o rápido crescimento populacional raramente gera dividendos demográficos, enquanto as baixas taxas de fecundidade não levam necessariamente à estagnação. Na verdade, a fecundidade persistentemente alta costuma agravar o subemprego, limitar os investimentos em educação e infraestrutura e perpetuar a pobreza entre gerações.
Para Turner, “A estabilização populacional e o eventual declínio também facilitariam o enfrentamento do maior desafio ambiental de todos: as mudanças climáticas. Com as temperaturas globais aumentando a um ritmo alarmante, a principal prioridade é reduzir as emissões per capita, melhorando o acesso à energia e garantindo a prosperidade por meio da implantação das tecnologias limpas atualmente disponíveis”.


Planejar o decrescimento demoeconômico global
O decrescimento é necessário para reduzir a sobrecarga antrópica sobre o planeta. Para isso, é indispensável a diminuição tanto da população quanto da economia. Se o PIB cair enquanto a população se mantiver estável, haverá redução da renda per capita e, em média, as pessoas ficarão mais pobres. Por outro lado, decrescer apenas a população exigiria uma redução muito acentuada para equilibrar a Pegada Ecológica com a Biocapacidade, o que seria inviável no curto e médio prazo.
Existe, contudo, um caminho possível: promover um decrescimento demoeconômico que una prosperidade econômica e social à sustentabilidade ambiental. Como argumentei no artigo “Crescimento demoeconômico no Antropoceno e negacionismo demográfico”, publicado na revista Liinc do IBICT (Alves, 2022), esse processo deve ser planejado no longo prazo, visando assegurar o bem-estar de seres humanos e não humanos.
O essencial seria reduzir as atividades poluidoras, ao mesmo tempo em que se estimula o crescimento de atividades ambientalmente sustentáveis. Alguns pontos fundamentais podem ser sistematizados da seguinte forma:
- Decrescer os gastos militares e reduzir a produção e uso de instrumentos de guerra, aumentando os investimentos em atividades de engrandecimento da solidariedade nacional e internacional, na promoção da paz e na ampliação do bem-estar social (com melhoria da saúde, da educação e cultura ecocêntrica);
- Decrescer a produção e o consumo de fertilizantes químicos e agrotóxicos e aumentar os investimentos na agricultura orgânica, na permacultura e na agricultura urbana, produzindo alimentos saudáveis perto dos grandes centros urbanos (para decrescer os custos de transporte e o desperdício dos alimentos);
- Decrescer as áreas de pastagem e a produção e o consumo de proteína animal, promovendo a transição para uma dieta vegetariana e vegana, além de aumentar as áreas de vegetação nativa;
- Decrescer a produção e o uso de carros particulares (principalmente aqueles grandes, pesados e que demandam muita energia por quilômetro rodado) e aumentar os investimentos em transporte coletivo e no compartilhamento de automóveis elétricos;
- Decrescer as desigualdades, o consumo conspícuo, os bens de luxo e investir em bens e serviços que permitam a universalização do bem-estar, aumentando as atividades da economia solidária, da economia colaborativa, de forma a diminuir os impactos das atividades degradantes do meio ambiente;
- Decrescer a demanda dos serviços ecossistêmicos, reduzir a poluição e diminuir as áreas ecúmenas, aumentando as áreas verdes (florestas e matas), limpando os rios, lagos e oceanos para viabilizar a recuperação da biodiversidade, o aumento das áreas anecúmenas e o incremento da qualidade de vida ecológica;
- Garantir os direitos sexuais e reprodutivos e taxas de fecundidade abaixo do nível de reposição, para promover o decrescimento demográfico global de longo prazo;
- Decrescer a economia material e aumentar a economia imaterial, a produção de bens intangíveis e a sociedade do conhecimento, da solidariedade e do compartilhamento.
Mas como alertou o decrescentista Jason Hickel na entrevista “A crise climática não pode ser resolvida dentro do capitalismo” (IHU, 02/10/2025), os governos desistiram em grande parte da crise ecológica da Terra. Eles estão implementando algumas mudanças modestas, mas nenhuma na escala ou velocidade necessárias para limitar as mudanças climáticas, conforme previsto no Acordo de Paris. A razão é que esta crise não pode ser resolvida dentro do capitalismo. Este é um ponto crucial.
O autor considera que sob o capitalismo, a produção é controlada principalmente pelo capital: grandes corporações, bancos comerciais e o 1% que possui a maioria dos ativos investíveis. Eles determinam como alocamos nossa capacidade produtiva coletiva.
Segundo Hickel: “O único objetivo do capitalismo é maximizar os lucros. Isso cria um problema em duas frentes. Primeiro, muitas das coisas mais importantes que precisamos fazer — como desenvolver capacidade de energia renovável, construir transporte público, regenerar ecossistemas, isolar edifícios e assim por diante — não são suficientemente lucrativas para o capital. Portanto, isso não acontece. Em segundo lugar, sabemos que realmente precisamos reduzir ou diminuir a produção de produtos nocivos e desnecessários, como combustíveis fósseis, carros, fast fashion, jatos particulares, mansões, carne industrial, etc. Mas estes são altamente lucrativos para o capital e, portanto, o capital nunca reduzirá voluntariamente sua produção”.
O fato é que a humanidade precisa mudar o estilo de vida e o padrão de produção e consumo para evitar a possibilidade, cada vez mais provável, de um colapso sistêmico global. Sem dúvida, é impossível manter o crescimento sistemático e contínuo da exploração humana sobre o meio ambiente, quando o sistema produtivo e o padrão de consumo geram, ininterruptamente, um fluxo metabólico entrópico. Em geral, as sociedades entram em declínio quando os retornos da complexidade são decrescentes e quando as externalidades são crescentes.
Desta forma, somente a redução do volume das atividades antrópicas ao longo do século XXI poderá viabilizar uma maior sustentabilidade ambiental, evitando o colapso ecológico e propiciando maior qualidade de vida para os seres humanos e para as demais espécies vivas do Planeta Terra.
Referências
ALVES, JED. Crescimento demoeconômico no Antropoceno e negacionismo demográfico, Liinc em Revista, RJ, v. 18, n. 1, 2022 https://revista.ibict.br/liinc/article/view/5942/5595
ALVES, JED. O profundo e rápido decrescimento populacional da China no século XXI, # Colabora, 25/08/2025 https://projetocolabora.com.br/ods1/o-profundo-e-rapido-decrescimento-populacional-da-china-no-seculo-xxi/
TURNER, Adair. The Case for Gradual Population Decline, Project Syndicate, 03/10/2025
HICKEL, Jason. “A crise climática não pode ser resolvida dentro do capitalismo”, IHU, 02/10/2025
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José Eustáquio Diniz Alves
José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.