Muito temos falado sobre as transformações que a indústria da moda global vem passando e sobre os incontáveis desafios que estão colocados. É inegável reconhecer que avanços vêm sendo feitos na pesquisa e investimento em novas tecnologias limpas, na redução das emissões de gases de efeito estufa, e na rastreabilidade e transparência das práticas e ações empresariais. Precisamos acelerar o ritmo para que as metas do milênio sejam atingidas, e para isso é necessária a colaboração e o esforço de todos. Mas ainda há pontos obscuros quando se fala em sustentabilidade. Como por exemplo, quando olhamos para o início da cadeia produtiva: do que e como é feita nossa roupa de algodão?
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O algodão é um tecido natural, um dos mais antigos usados pelo homem. Nossos ancestrais indígenas já o conheciam quando os portugueses aqui chegaram, e usavam para fazer suas roupas e acessórios. Há milhares de anos é cultivado em muitos continentes do sul global sempre integrado a cultura alimentar e geração de renda familiar.
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Veja o que já enviamosO Brasil é parte interessada no comércio global do algodão desde os tempos da colônia (século 18), quando o insumo passou a ser cultivado em grandes propriedades de monocultura com base no trabalho escravo e intensa devastação de natureza. De lá até os dias de hoje, nosso país esteve entre os maiores produtores e exportadores dessa commodity, sempre disputando com Estados Unidos, Índia, Paquistão e China.
[g1_quote author_name=”Yamê Reis” author_description=” diretora-executiva do Rio Ethical Fashion” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]O algodão é hoje responsável por aproximadamente 10% do volume total de pesticidas utilizados em território nacional, e a quarta cultura que mais consome agrotóxicos
[/g1_quote]Numa estratégia ousada e assertiva, os produtores do agronegócio da soja viram no algodão uma grande oportunidade de rotação de culturas, após a grave crise da praga do bicudo que varreu as plantações do Sul e Sudeste do país no final dos anos 1980. Experientes com a exportação da soja e com uma produção turbinada por alta tecnologia, sementes transgênicas e uso intensivo de agrotóxicos, esses produtores passaram a investir no algodão como um produto capaz de atender às demandas de um mercado internacional exigente com relação a sustentabilidade. Organizados em inúmeras associações e também nacionalmente, criaram o programa de certificação Algodão Brasileiro Responsável (ABR) que mais tarde vinculou-se ao maior certificador internacional, o Better Cotton Initiative (BCI). Desse modo, em pouco tempo, o Brasil recebeu o título de “o maior produtor de algodão sustentável do mundo”.
[g1_quote author_name=”Yamê Reis” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Um produto que nasce nessas condições de monocultura e extrativismo de natureza e com intenso e descontrolado uso de agrotóxicos não pode de forma alguma se autodenominar sustentável
[/g1_quote]Sendo uma cultura mais susceptível a pragas quando cultivada em monocultura, o algodão é hoje responsável por aproximadamente 10% do volume total de pesticidas utilizados em território nacional. É a quarta cultura que mais consome agrotóxicos, com destaque para o glifosato, que corresponde a mais da metade do volume de agrotóxicos comercializados no país. Sabendo-se que o Brasil é o país que mais consome agrotóxicos no mundo, podemos imaginar o que essas quantidades representam não apenas para o Cerrado, que já perdeu parte importante de sua biodiversidade, como também para os trabalhadores que manipulam o veneno sem qualquer controle ou restrições de quantidades.
É importante reafirmar que um produto que nasce nessas condições de monocultura e extrativismo de natureza e com intenso e descontrolado uso de agrotóxicos não pode de forma alguma se autodenominar sustentável. Muito ao contrário, pois contraria diretamente os princípios dos Direitos Humanos e dos Direitos da Natureza.
Diante da oportunidade da bancada ruralista, em plena pandemia, de fazer aprovar no Congresso Nacional o PL 6299/02, o chamado PL do Veneno, o Rio Ethical Fashion juntou-se ao Modefica e ao Fashion Revolution para criar um movimento setorial da moda que, através de uma petição pública, pudesse levar aos parlamentares nosso repúdio às medidas que tornarão esse contexto no campo ainda mais dramático. Instituições como Anvisa, Comissão de Direitos Humanos, Abrasco e Fiocruz já se posicionaram contra a aprovação do projeto que flexibiliza o processo de aprovação de novos agrotóxicos, muda os critérios de avaliação e bane o termo “agrotóxico”.
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A campanha #ModaSemVeneno já atingiu mais de 40 mil assinaturas com a petição iniciada no final de abril. Portanto, além de contribuir para a luta de setores como o de produtos orgânicos, das associações de agricultores familiares e de entidades ambientalistas como o Greenpeace, nossa iniciativa visa a despertar o setor da moda para mais esse desafio de pensar novas formas de produção e consumo que tenham aderência com as pautas da sustentabilidade, e que possam contribuir verdadeiramente para seus avanços da Brasil.
Convido a todos a acompanharem o Rio Ethical Fashion nos dias 3, 4 e 5 de junho pelo canal do YouTube, ao vivo, gratuito e com tradução simultânea, e fazer uma imersão em tantos temas quentes do momento.