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Um pouquinho menos de metrô no Rio “Não é Disney” de Janeiro

Concessionária encerra serviço que complementava linhas dos trens subterrâneos, em novo capítulo da eterna história de um transporte esquálido

ODS 10ODS 11ODS 17 • Publicada em 25 de julho de 2024 - 07:40 • Atualizada em 30 de julho de 2024 - 10:04

Uma figurinha, dessas que passeiam pelos whatsapps, ensina à perfeição como a banda toca no Rio de Janeiro. “Tu tá no RJ; não é Disney”, avisa a peça (criação de Raphael Brunet), as letras (na heterodoxa conjugação do dialeto nativo) emoldurando um Mickey Mouse com sandálias de dedo, cigarro artesanal na mão esquerda, sinal de V da vitória na direita – e fuzil atravessado às costas. Resumo preciso da cidade de tantos encantos e delícias quanto bizarrices.

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Nesse conjunto cinematográfico de mar, montanha e floresta sob o sol, nasceram as escolas de samba e o pagode, o repique de mão e a Bossa Nova; redefiniu-se o ato de ir à praia em usina de tendências e personagens; prosperou o jogo do bicho; surgiu a primeira facção criminosa do país, o Comando Vermelho; e – a tragédia suprema – inventaram o Bolsonaro.

Figurinha "Não é Disney": resumo preciso de como a banda toca no Rio de Janeiro. Reprodução
Figurinha “Não é Disney”: resumo preciso de como a banda toca no Rio de Janeiro. Arte de Raphael Brunet (@cansadodainternet)

Para seguir nas excentricidades, também por aqui fabricou-se um trenzinho com duas linhas basicamente retas, órfãs de capilaridade, decretaram que são três, batizaram uma delas de 4 e chamaram de… metrô. O esquálido modal do transporte público carioca oferece constrangedoras 41 estações, distribuída em 58 km de extensão. Isso, numa megalópole com 6,2 milhões de habitantes (ou 13,5 milhões na região metropolitana). Merreca, ensina a gíria local.

Agora, para piorar o que nunca foi grande coisa, a concessionária MetrôRio – empresa privada controlada pelo fundo soberano de Abu Dhabi – anunciou o fim das linhas de ônibus que completavam o trajeto dos trens por bairros desprovidos do serviço, como boa parte de Botafogo, Humaitá, Jardim Botânico e Gávea. O marketing chamou de Metrô na Superfície, e, a partir do próximo sábado, será, como se diz hoje em dia, descontinuado, revelou o Tempo Real RJ, site de Berenice Seara, que enfileira informações exclusivas.

Seis linhas comuns vão substituir o finado serviço, com a integração que garante a segunda viagem de graça. Só ali – porque em pleno 2024, século 21 fechando o primeiro quarto, o metrô não dialoga com qualquer outro modal no Rio, rara metrópole sobre a Terra sem integração no transporte público. Não é Disney.

Algo mirrado ficará ainda menor, ratificando o vexame no ranking internacional do setor. Inaugurado em 1979, o metrô carioca apanha do seu congênere paulistano, criado cinco anos antes e hoje com 91 estações e 104 km de extensão. Nem vale comparar com os antediluvianos serviços europeus e asiáticos, a maioria inaugurados na virada dos séculos 19 e 20. Tampouco com Xangai, que criou o seu em 1993 e ostenta 356 estações e 676 km de trilhos – afinal, na China é tudo diferente.

Mas até na vizinhança o Rio toma olé. Imprensada pela Cordilheira do Andes, Santiago do Chile começou seu metrô em 1975 e tem 107 estações (118 km de extensão). A Cidade do México iniciou a operação em 1969 – atualmente são 195 estações, espalhadas por 200 km de linhas. Até em Caracas, na devastada Venezuela, tem um maior: inaugurado em 1983, conta com 49 estações e 63 km de tamanho.

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Tamanha fragilidade se explica em várias camadas. Século atrás, o Rio ostentava eficiente serviço ferroviário urbano, os bondes. Estava tatuado na cultura carioca. “Eu que pego o bonde 12 de Ipanema/ Pra ver o Oscarito e o Grande Otelo no cinema/ Domingo no Rian/ Me deixa eu querer mais, mais paz”, cantou Alcione em “Rio Antigo”, de Chico Anysio e Nonato Buzar. “Peguei o bonde, passei no Boulevard/ E a ‘Confiança’ é doce recordar/ Os três apitos cantados por Noel”, entoou a Vila Isabel, no Carnaval de 1994.

A cidade sobre trilhos era sustentável, antes de a expressão existir – mas, como o resto do Brasil, enveredou, nos anos 1940, no caminho sem volta da opção rodoviária, que mantém o país aprisionado até hoje (e assim será pelos tempos afora). O Rio de Janeiro tornou-se, então, refém dos ônibus, com seus empresários e o baile todo: relações não republicanas com o poder, veículos em estado apocalíptico e o serviço horroroso que virou emblema tão carioca como Copacabana ou o Cristo Redentor.

Com a passagem hoje a escorchantes R$ 7,50, o metrô colabora muito menos do que poderia para mitigar a tragédia, por outra bizarrice: apesar de existir somente no município do Rio, a concessão pertence ao governo estadual. Aí, decisões sobre novas estações, mudanças nos investimentos ou quaisquer outras questões estratégicas jamais chegam à população. A campanha eleitoral, momento para debater assuntos como o transporte de massa, vira, como em todo lugar, plebiscito sobre segurança – dominado pela gritaria monotemática do “prometo dar mais tiro do que meu adversário”.

Aqui, mazela política faz qualquer avanço descarrilar inapelavelmente: não há rigorosamente ninguém pensando a região metropolitana e seus 22 municípios como a verdadeira “cidade” a ser gerida. Todo dia, milhões de fluminenses vão e vêm de Niterói, São Gonçalo, Baixada, regiões Serrana e dos Lagos, para a capital. Passam horas intermináveis nos engarrafamentos e no caos urbano, num calvário sem horizonte de melhoria.

Solitária voz de sensatez em meio ao abandono, a Casa Fluminense defende a urgência da criação de uma Autoridade Metropolitana, para integrar os modais de transporte. “O desafio, principalmente das grandes cidades, é um sistema de transporte bom, barato, seguro e limpo. Numa metrópole como o Rio de Janeiro, é fundamental que planejamento e operação do transporte sejam feitas de forma coordenada”, pregou o economista Victor Mihessen, coordenador-executivo da entidade, no lançamento do relatório “De olho nos transportes”, em 2022.

A estação Cantagalo do metrô: área mais rica da cidade priorizada em transporte historicamente deficiente. Foto Alexandre Macieira/Riotur
A estação Cantagalo do metrô: área mais rica da cidade priorizada em transporte historicamente deficiente. Foto Alexandre Macieira/Riotur

Mas esse e outros debates inadiáveis jazem abandonados, destino igual ao da contribuição valiosa de dois engenheiros, Pedro Geaquinto e Rodrigo Sampaio, que começaram estudantes o blog “Quero metrô”. Ainda no ar, a iniciativa reúne conjunto caudaloso de ideias para o setor: “Esse é um lugar voltado para divulgação, discussão e centralização de propostas para a melhoria definitiva do sistema metroviário carioca. (…) O projeto total idealiza cerca de 315 estações distribuídas em 12 linhas, sendo que sete delas seriam completamente novas:

♦ Deodoro – Carioca

♦ Rodoviária – Recreio Shopping

♦ Ribeira – General Osório

♦ Cocotá – Alvorada

♦ Arariboia – Largo da Batalha

♦ Fundão – Jardim Sulacap

♦ Bosque Marapendi – Vilar dos Teles

Além de buscar a otimização da disposição atual, cria 49 estações para as atuais linhas, Saens Peña – General Osório e Pavuna – Botafogo, além da modernização das linhas da Supervia, Ramal Deodoro, Ramal Saracuruna, Ramal Belford Roxo e variantes, integrando-as ao sistema”.

Um total de zero agentes públicos e inquilinos de cargos eletivos dedicou qualquer atenção às propostas. Ao contrário, riram em silêncio.

Como aliás qualquer morador escaldado do Rio “Não é Disney” de Janeiro.

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