ODS 1
#RioéRua: pensamentos sombrios no outubro carioca
È tempo de revisitar os marcos das histórias de violência - e resistência - de 50 anos atrás
Outubro de 2018 termina no Brasil com um presidente eleito que promete fazer o país voltar a ser como 50 anos atrás – esta foi uma de suas muitas ameaças, em um mês marcado por frases cheias de intolerância, ódio e mentiras. Além de buscar inspiração nas ruas para resistir, agora e nos anos futuros, andei caminhando entre um turno e outro também pelos outubros de meio século atrás, guiado pelas páginas dos jornais do Rio de Janeiro que acompanhavam o avanço do autoritarismo sobre a democracia após o golpe militar de 1964.
Foi em outubro de 1965, depois de candidatos ligados ao ex-presidente Juscelino Kubitschek vencerem as eleições diretas para governador na Guanabara e em Minas Gerais no começo do mês que o governo militar baixou o AI-2 acabando com as eleições diretas para presidente (previstas para 1966), extinguindo os partidos políticos (PSD, UDN, PTB e outros quase sempre literalmente menos votados), ampliando de 11 para 16 o número de ministros do Supremo Tribunal Federal, transferindo para a Justiça Militar os julgamentos de civis acusados de crimes políticos e contra a segurança nacional, outorgando ao presidente o poder de fechar Congresso e intervir em estados e municípios. Os cúmplices do golpe – empresários, jornais, boa parte do Judiciário e até mesmo políticos dos partidos dissolvidos – não reclamaram; alguns até aplaudiram. Os protestos parlamentares ficaram nos gabinetes e no plenário do Congresso.
Só os estudantes foram para a rua. No dia 27 de outubro de 1965, horas depois da assinatura do AI-2, passeata no Rio de Janeiro, organizada por dirigente da União Nacional dos Estudantes, fechada pelo golpe, saiu da Faculdade Nacional de Direito e foi engrossando até a Central do Brasil onde levou bomba da polícia. A manifestação se dispersou mas um grupo foi em direção à Cinelândia onde jovens ligados à Associação Metropolitana dos Estudantes Secundaristas (Ames) fazia seu protesto contra o AI-2 e em defesa da democracia em frente ao busto do ex-presidente Juscelino. O ato também foi reprimido: três manifestantes foram presos.
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Veja o que já enviamosNaqueles tempos de ditadura envergonhada – na classificação do jornalista Elio Gaspari – com a oposição mais combativa cassada e/ou exilada, eram os estudantes que assumiam a linha de frente de contestação ao regime que, por sua vez, intervia seguidamente nas universidades federais e preparava uma reforma criticada por professores e alunos. Outubro de 1966 encontraria a UFRJ em pé de guerra: em setembro, a Faculdade Nacional de Medicina foi invadida por forças policiais e centenas de estudantes em vigília – após protesto contra a ditadura e cobrança de anuidades nas instituições públicas – foram surrados em um episódio que ficou conhecido como Massacre da Praia Vermelha.
No dia 3 de outubro, o Marechal Costa e Silva era “eleito” presidente por um Congresso expurgado por mais algumas cassações, e os estudantes no Brasil promoviam protestos contra o Dia da Farsa; na Guanabara, ainda traumatizada pela violência da Praia Vermelha, as manifestações ficaram restritas a cartazes e pichações nas faculdades. Outubro acabaria com o Congresso em recesso decretado pela ditadura pela recusa em cassar em rito sumário seis deputados federais. Ao decretar o recesso, o governo mandou o Exército cercar o Congresso e censurou a notícia nas rádios e TVs. No Rio de Janeiro, os estudantes driblavam o DOPS para realizar clandestinamente os congressos da Ames e da Umes (União Metropolitana dos Estudantes Secundaristas).
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]As declarações do presidente eleito e seus seguidores neste outubro sombrio deixam claro que as universidades estarão entre os primeiros alvos de seu governo. Os atos arbitrários autorizados pela Justiça Eleitoral reforçam a impressão. E a história de outros outubros indicam que teremos resistência
[/g1_quote]Constituição enfiada goela abaixo de um Congresso mutilado, Lei de Imprensa com censura prévia nos meios de comunicação, nova Lei de Segurança Nacional: em 1967, a ditadura já perdera qualquer vergonha. E os estudantes eram vítimas permanentes do espírito autoritário do regime. Outubro de 1967 começou com censura ao jornal mural do Colégio de Aplicação da Faculdade de Filosofia da UFRJ (futuro Colégio de Aplicação) pela diretora, seguido de protestos e ameaças de boicote a aulas; seguiu com abertura de sindicância na Faculdade de Economia contra estudantes que fizeram cartazes de protesto contra o FMI; agentes do Dops invadiram a Casa do Estudante Secundarista, na Lapa, mais de 20 estudantes do Direito foram suspensos por protestos na faculdade (o diretor queria expulsão). E outubro terminou com uma manifestação dos estudantes contra a ditadura – e contra as anuidades nas instituições públicas – que furou pneus de carros e parou o trânsito no centro.
Se outubro de 1967 foi ruim, outubro de 1968, exatamente 50 anos atrás da ameaça do presidente eleito, foi muito pior. As nuvens pesadas que explodiriam na tempestade de violência e arbítrio do AI-5 estavam formadas. O mês começou com a denúncia do Caso Para-Sar – o major-brigadeiro João Paulo Burnier queria usar tropa da Aeronáutica para matar líderes políticos e estudantis, o que só não aconteceu porque oficiais resistiram a barbárie. A repressão estava mais ativa do que nunca: agentes do Dops interromperam a eleição no Caco (Centro Acadêmico Cândido de Oliveira), da Faculdade Nacional de Direito. Em São Paulo, estudantes de direita da Universidade Mackenzie com reforço do Comando de Caça aos Comunistas e guardas civis atacaram com tiros, pedras e coquetéis molotovs alunos da Faculdade de Filosofia da USP: duas pessoas morreram.
No dia 9, a polícia reprimia com violência manifestação de estudantes no Rio de Janeiro que começou no Largo de São Francisco, onde funcionava então a Faculdade de Engenharia da UFRJ e se espalhou: 83 pessoas presas, cinco baleados. Menos de uma semana, quase mil estudantes – e os principais líderes do movimento – eram presos no congresso clandestino da UNE no interior de São Paulo. No Rio, a violência contra os estudantes prosseguiu com a devassa do Dops no Grêmio Estudantil do Pedro II a pedido do diretor e a invasão e depredação do Caco por integrantes do Comando de Caça aos Comunistas. Antes de outubro acabar, agentes do Dops mataram um estudante da Universidade Estadual da Guanabara durante manifestação em frente ao Hospital Pedro Ernesto; no dia seguinte, mais duas pessoas morreram a bala, durante a repressão na Praça 11 à passeata em protesto pela morte do estudante. Até os últimos dias do outubro, de 50 anos atrás, os dias foram de tensão e policiamento ostensivo nas ruas do Rio para evitar novos protestos. Depois, seria o AI-5, torturas e mortes.
Nesta última semana de campanha, passei nos focos de resistência desses outubros de décadas passadas: há faixas contra o fascismo e a pela democracia no campus da Praia Vermelha, apesar de o prédio histórico da Faculdade de Medicina, invadido em 1966, ter sido demolido em 1973, quando o curso foi transferido para o Fundão. No Largo de São Francisco, adesivos emolduram a entrada do portão do hoje Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Passei pela Cinelândia só para descobrir que o busto de JK ainda está lá – nunca reparei nele, achei que havia sido removido. No Caco, um bandeirão anuncia seu apoio à democracia; “Ditadura, nunca mais”. As declarações do presidente eleito e seus seguidores neste outubro sombrio deixam claro que as universidades estarão entre os primeiros alvos de seu governo. Os atos arbitrários autorizados pela Justiça Eleitoral reforçam a impressão. E a história de outros outubros indicam que teremos resistência. Repito o conselho da minha amiga Flávia Oliveira: protejam-se, envelhecer é revolucionário. Mas resistir é preciso.
Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade
Mimimi. Se reclamar mais a gente bota os militares de volta. Esquerda morreu.